domingo, 9 de fevereiro de 2014

A Realidade dos Regimes

Num segmento do seu programa Real Time with Bill Maher, o comediante Bill Maher, senhor que aprecio bastante, tanto pelo que costuma defender como pelo seu tom politicamente incorrecto, perguntou a um dos seus convidados se os Estados Unidos estariam melhores com um sistema de governo parlamentar. A convidada, uma deputada no Canadá, não respondeu directamente qual dos sistemas, presidencialista ou parlamentarista, seria melhor mas admitiu apreciar a celeridade do processo de decisão no seu país em comparação com o vizinho a sul. O próprio Maher apresentou algumas das vantagens que via no parlamentarismo. Reconhecendo a validade de muita coisa do que foi dito nessa pequena troca de impressões, devo dizer que considero que este tipo de debates acerca dos méritos de cada sistema não é tão produtivo como seria de esperar.

Considero fundamental que se conheçam as diferenças entre os vários modelos e que se perceba quais as competências de cada órgão tanto como previsto constitucionalmente como na prática, já que é muito provável que estes divirjam bastante. Simultaneamente é fundamental perceber o sistema para conhecer quais os incentivos que gera. No entanto é importante voltar a dizer que não é a organização do sistema que é decisiva na forma como os vários agentes da comunidade política se comportam. O modelo pode criar incentivos nesta ou naquela direcção mas são os hábitos e os costumes dos membros da comunidade que vão ser os principais arquitectos dos meios de funcionamento de um dado regime (claro que estes a longo prazo também serão influenciados pelo modelo). A deputada canadiana provavelmente estará certa quando elogia o regime do seu país mas isso é antes de mais um elogio ao Canadá, não ao parlamentarismo. Muitas das coisas que ela aprecia naquele regime não serão válidas noutros países dotados das suas próprias variantes do parlamentarismo. Muitas das coisas admiráveis no modelo de governo americano, e ainda vai havendo algumas nestes tempos de crise de identidade, são antes de mais coisas que acho admiráveis no carácter da nação americana. O regime e o seu funcionamento reflectem a história de um país mas também os seus hábitos e costumes. Naturalmente que se deve ter cautela com as generalizações mas há padrões e hábitos observáveis em larga escala e estes variam de sociedade em sociedade com efeitos divergentes.

A título de exemplo e já o disse aqui, os americanos tendem a preferir viver com o risco que a liberdade impõe enquanto nós tendemos a tentar restringi-la de modo a evitar comportamentos considerados abusivos. Ambas as posições têm um custo e consequências práticas que vão para além das questões de princípio. No caso português, a realidade e a ficção da constituição estão muito longe uma da outra. Por cá sofremos naturalmente de termos mais uma vez importado lixo reciclado de origem francesa, neste caso o semi-presidencialismo, mas sofremos antes de mais por sermos pobres e somos pobres não porque temos o modelo de regime que temos mas por sermos periféricos e pequenos. De igual modo não somos pobres por termos políticos corruptos, temos políticos corruptos devido sobretudo à pobreza. Podemos e devemos discutir reformas do nosso modelo de governo* mas iludem-se aqueles que depositam a sua fé na importação de modelos como meio de resolver os nossos vícios. Estes últimos, sejam eles quais forem, irão impor-se e subverter qualquer ordem política e jurídica que optemos por criar. Nesse sentido, a asfixia da liberdade torna-se ainda mais perniciosa, já que impede aqueles que não se revêm no sentido tomado pela maioria de se exprimirem e promoverem alternativas, não necessariamente apenas pela palavra, mas por práticas diferentes.

* A mais recente proposta de alteração da lei eleitoral do sempre acéfalo líder do centro de emprego socialista é um óptimo exemplo de irrelevâncias  disfarçadas de reformas.