segunda-feira, 23 de dezembro de 2013

A Teoria do Coitadinho

De acordo com a Teoria do Coitadinho, há três tipos de pesssoas: os coitadinhos, os mauzões e os heróis épicos. E diz, em suma, que os coitadinhos são maltratados pelos mauzões e salvos pelos heróis épicos. Sendo que, naturalmente, quem usa a Teoria do Coitadinho é sempre candidato a herói épico.

Através da Teoria do Coitadinho, os candidatos a heróis épicos, seres impolutos e de fina estirpe ética (como poderia ser de outra forma?), reduzem uma quantidade impressionante de pessoas a supostas vítimas, quase que tolinhas e irresponsáveis, que necessitam de ser salvas das maldades dos mauzões, cujas únicas motivações são a maldade, a crueldade e o desprezo pelo próximo.

A Teoria do Coitadinho serve para desresponsabilizar as pessoas individuais de toda e qualquer responsabilidade, ao mesmo tempo que se cria um demónio malévolo (ou um conjunto de demónios malévolos) para arcar com todas as culpas de todos os horrores que acontecem no mundo.

A Teoria do Coitadinho trata adultos como crianças e as crianças como imbecis. Infantiliza e reduz o debate público à propagação constante de um conjunto de chavões, de teorias da conspiração e de insinuações torpes. Tenta reduzir os lados contrários no debate a 'radicais' com uma 'agenda extremista' guiada por 'cegueira ideológica' contra um conjunto de vítimas que nada conseguem fazer por si.

Quando os proclamados coitadinhos e vítimas não vão na conversa da Teoria do Coitadinho, e por acaso até concordam com medidas que os candidatos a heróis épicos consideram erradas, então é porque engoliram "propaganda" - palavra com conotação pejorativa que apenas se aplica ao que os mauzões dizem. Aquio que os candidatos a heróis épicos dizem quando defendem o que pensam não é "propaganda". É simplesmente espalhar a Verdade para aqueles que estejam preparados para a receber.

A Teoria do Coitadinho é popular em todo o espectro político, da Esquerda à Direita. A narrativa que constrói, de um conjunto de paladinos a salvar inocentes de terríveis demónios, é fácil de apreender. E é muito tentadora quando se tem de lidar com crises sérias num mundo que não é assim tão simples.

A Teoria do Coitadinho conta uma história muito apelativa, e nunca vai deixar o debate político e mediático. Os coitadinhos vão variar, os candidatos a heróis épicos e os mauzões também (embora haja mauzões que surjam amiúde, como por exemplo os bancos ou os partidos políticos), mas a lengalenga vai ser sempre a mesma. E vai sistemática e ironicamente (dado que é suportada por auto-proclamados paladinos da ética) ajudar a revelar o pior que há nos seres humanos, enlameando constantemente o debate público.

sábado, 21 de dezembro de 2013

Maria do Rosário Mattos & Associados

Quando vi o anúncio da Maria do Rosário Mattos & Associados, ri-me. Ri-me por vários motivos. Os principais: achei piada ao anúncio e achei piada ao contraste que o anúncio fazia com a ideia-tipo da advocacia propagada em Portugal. Mas sabia também o que poderia acontecer. Sabia que a Ordem dos Advogados poderia bem receber participações sobre aquele anúncio. E sabia que o único riso que isso justificaria seria o riso nervoso de quem não sabe bem como reagir a uma situação absurda.

Como era expectável, a Ordem abriu um inquérito. Houve gente ofendida com o anúncio que considera que, como ficou ofendida, aquelas advogadas devem ser punidas. Devem ser punidas porque, apesar do anúncio se referir a elas, e apenas a elas, e à sua sociedade de advogados, o anúncio é uma afronta a todos os advogados do país. Porque o anúncio deixa algumas pessoas desconfortáveis. Porque o anúncio não segue o padrão cinzento que algumas pessoas consideram como o único possível para advogados. Porque a corporação se sobrepõe à possibilidade de haver diferenças, e porque o incómodo de alguns se sobrepõe à liberdade de quem quer ser diferente.

Só que o problema aqui não é o anúncio - é uma questão de gosto a apreciação que se faz do anúncio, e quem o vir decidirá livremente se vai ou não contratar a sociedade de advogados tendo em conta aquilo que viu.

Não, o problema aqui não é o anúncio. O problema aqui é a abertura do inquérito e uma eventual punição.

A Maria do Rosário Mattos & Associados deve ter direito a promover-se como quiser, a ter a estratégia comercial que quiser, dentro das regras gerais sobre o tema. Aquele anúncio não coloca em causa a dignidade de qualquer profissão. E o pensamento corporativo que acha que um anúncio de uma sociedade de advogados específica coloca em causa todas as outras sociedades de advogados e, em particular, as advogadas portuguesas, é parte dos nossos problemas. Numa sociedade plural, há que saber conviver com a liberdade de pensamento, de expressão, com o direito à diferença e com o facto de, muitas vezes, termos de ver coisas de que não gostamos e que até consideramos ofensivas. A ideia de que as advogadas em causa devem ser punidas por fazer aquele anúncio é incompatível com a ideia de uma sociedade livre e plural, com o problema acrescido de, enquanto se causa escândalo sobre este não-problema, não se discutem e resolvem verdadeiros problemas relativos à advocacia portuguesa.

domingo, 15 de dezembro de 2013

Dez minutos sem piada nenhuma



Já quando esmiuçaram os sufrágios, aquilo a que assisti pareceu-me o resultado de muita preguiça à solta e pouca preocupação em fazer alguma coisa com a mínima qualidade ou relevância. 

Mais recentemente, os Gato Fedorento decidiram, com pompa e circunstância, apresentar ao país dez minutos deprimentes. Nesses dez minutos, somos presenteados com uma única piada, que atravessa todo o programa, e que não tem piada nenhuma: toca a dar pancada ao PM e ao Vice-PM. 

Sim, de facto, como não achar piada a isto? Como não achar piada à forma forçada (e requentada) com que os quatro senhores demonstram uma impressionante falta de coisas para, de facto, dizer?

São dez minutos sem qualquer inteligência mas com muita preguiça. Depois de tanto alarido, os Gato Fedorento não foram além da conversa de café, sem qualquer "twist" relevante. 

Não é obrigatório, claro, que o humor tenha um ponto. O humor pelo humor é legítimo. Há imensas coisas engraçadas, e mesmo muito engraçadas, precisamente pelo seu absurdo, e por não terem qualquer propósito.

Mas isto? "A Solução"? Isto foram 10 minutos sem interesse. Algo a que já se está habituado quando se vê e ouve comentário político em Portugal. Mas enfim, já agora, podia ter tido piada...

P.S.: Quanto à participação de Rodrigo Guedes de Carvalho, que tem suscitado reacções críticas, não vejo qualquer problema em um jornalista participar num programa satírico, da mesma forma que não vejo problema em ver jornalistas a aparecerem, como eles próprios, em séries como a série "House of Cards", ou em filmes. Claro que este programa em particular não tem piada nenhuma. Mas isso é uma questão de gosto, subjectiva, e que em nada coloca em causa o princípio de que este tipo de intervenção é perfeitamente razoável, e em nada põe em causa a dignidade de quem quer que seja - e muito menos da "profissão de jornalista".

domingo, 8 de dezembro de 2013

Tea Party, este Governo, José Manuel Pureza e Pedro Marques Lopes

Outro dia li este artigo de José Manuel Pureza, na qual o referido senhor professor disserta sobre o Tea Party e o Governo. Hoje li este artigo de Pedro Marques Lopes em que o referido senhor faz precisamente o mesmo. E encontrei também este artigo.

Querer comparar este Governo ao Tea Party americano é um exercício complicado. É difícil (eu diria impossível) de compaginar com os aumentos de impostos e com os impulsos regulatórios do Governo. É difícil de ligar a toda a estratégia de consolidação orçamental e de «reforma do Estado» (termo utilizado de forma muito lata) que o Governo tem seguido desde 2011 até hoje, que não pretende retirar o Estado das áreas da Saúde, da Educação ou da Segurança Social.

Este Governo não tem mostrado qualquer vontade de 'desmantelar o Estado Social'. A Alemanha não tem mostrado qualquer vontade de 'desmantelar o Estado Social'. E eu não concordo com a posição passiva que este Governo tem tomado em relação à Europa (e o actual Secretário de Estado dos Assuntos Europeus não me tem impressionado), mas não encontro paralelo com a posição adoptada pelo Tea Party face ao Governo federal nos EUA. E também não encontro neste Governo o mesmo tipo de posições que membros do Tea Party têm tomado face à relação entre a Religião e o Estado.

Mas nada disso interessa a José Manuel Pureza ou a Pedro Marques Lopes. Nada disto interessa porque José Manuel Pureza e Pedro Marques Lopes não estão interessados em apresentar o Tea Party, os irmãos Koch e as posições que membros do Tea Party têm assumido e verdadeiramente compará-las com a matriz de actuação do Governo português. Estão interessados em pegar na expressão "Tea Party", associada a extremismo radical anti-Estado, e associá-la ao Governo PSD-CDS actualmente em funções, independentemente daquilo que o Governo tenha efectivamente feito ou anunciado que pretende fazer.

Há várias explicações possíveis para esta comparação. Uma delas é a pura e simples desonestidade intelectual. A outra é a pura e simples ignorância. E, claro, uma explicação será uma combinação destas duas, em que assenta a narrativa que diaboliza este Governo, acusando-se de 'fascista' ou 'neoliberal', duas expressões que perderam já qualquer semblante de conteúdo (em particular a segunda, que neste momento já não tem qualquer significado útil).

Eu não concordo com muita coisa que este Governo tem feito. Não concordo com as prioridades que assumiu e com a (falta de) estratégia que adoptou. Mas sei, como qualquer pessoa minimamente informada relativamente ao que se passa nos EUA sabe, ver a diferença entre este Governo e o Tea Party. E José Manuel Pureza e Pedro Marques Lopes e todos os que façam esta comparação em termos similares, ironicamente, ajudam-me mais a qualificá-los a eles do que ao Governo.

EDITADO: Entretanto encontrei este artigo de Pacheco Pereira, em que o insigne comentador faz a mesma comparação espúria, acrescentando mais um artigo ao rol daqueles que me levam a que eu o tenha deixado de levar a sério.

Da impossibilidade de levar a sério Pacheco Pereira

Ninguém duvida que Pacheco Pereira estudou História e Filosofia e Política. Ninguém duvida que Pacheco Pereira tem a experiência para falar de Política com conhecimento de causa. E, no entanto, cada vez me é mais difícil levar a sério e considerar relevante aquilo que Pacheco Pereira vai dizendo, sobre este Governo, sobre o país, sobre a Europa ou sobre o mundo.

Pacheco Pereira limita as suas intervenções actuais a destilar veneno sobre o Governo ou a auto-proclamar-se um arauto dos fracos contra os fortes. A falta de espessura daquilo que diz é apenas ultrapassada pela pompa e circunstância com que o diz. E a falta de relevância e seriedade de Pacheco Pereira apenas foi sublinhada quando se decidiu associar a Mário Soares na Aula Magna.

Pacheco Pereira embarcou nos discursos da "sensibilidade social". No discurso do "coitadinho". Nas previsões sombrias. Nas imputações de motivos mefistofélicos àqueles com que ele não concorda. Na descaracterização daquilo que é feito, e na demagogia dos simplismos que procuram menorizar outras pessoas. Esta última é, aliás, uma das técnicas preferidas de Pacheco Pereira: apresentar aqueles de quem não gosta como inferiores e como intelectualmente indigentes.

As barbas brancas de Pacheco Pereira não são um posto. O seu pensamento para o país é desconhecido. Aliás, o seu pensamento, em geral, é neste momento essencialmente desconhecido. Porque para dizer e fazer o que Pacheco Pereira vai dizendo e fazendo não é preciso pensar muito. E a sua postura arrogante, de suposta superioridade intelectual, apenas torna mais evidente o puro e simples vazio daquilo que vai dizendo e fazendo por estes dias.

Pacheco Pereira é um exemplo paradigmático de comentador sem conteúdo que alinha pelo discurso anti-crise mais fácil que esteja por aí à mão. O seu historial poderia levar a que se esperasse mais. Mas o seu historial pouco interessa. O que interessa é que, nestes tempos de crise, Pacheco Pereira é um símbolo vivo do 'status quo', do estrebuchar de gente que, mantendo-se alegadamente à margem do regime, acaba por se tornar num seu tenaz defensor. Em mais um a lançar insultos para a praça pública, do trono sobre o qual julga sentar-se.

Por isso me é impossível levar a sério Pacheco Pereira. Porque é impossível debater ideias com Pacheco Pereira. Porque, por estes dias, Pacheco Pereira não tem ideias. Tem bílis.

sábado, 7 de dezembro de 2013

Curtas e breves

1. Discute-se na reforma do IRC a manutenção de um imposto complexo, da manutenção ou da criação de benefícios fiscais, e a criação de derramas estaduais. Podia estar-se a discutir a simplificação do imposto, o fim dos benefícios fiscais e baixar as taxa, mas há quem julgue que o que interessa é ajudar as PME por serem PME, porque as PME é que são boazinhas. Podia estar-se a discutir a abolição do imposto, dado que quem o verdadeiramente o acaba a pagar são pessoas individuais (sob a forma de salários mais baixos ou preços mais altos). Mas o que vamos acabar a ter vai continuar a ser um imposto mais complexo do que o desejável, benefícios fiscais aproveitáveis por alguns, e aposto que mesmo depois da grande reforma, o IRC vai continuar a ser alterado todos os anos, incluindo normas relevantes, apenas contribuindo para gerar incerteza e outros problemas.

2. Ouço pouca gente falar no problema das penhoras bancárias. Será que já é possível usar o sistema informático para se fazer penhoras bancárias?

3. Raquel Varela continua a ser tratada como uma autoridade relevante no que toca ao tema da sustentabilidade financeira do Estado. O que parece interessar é que ela diga o oposto do que gente que de facto estudou o assunto diz, não parece interessar muito que o que ela diga tenha por base confusões de conceitos e erros básicos. 

4. Afirmações de superioridade moral em debates políticos e acusações espúrias de extremismo são uma eficaz forma de perder tempo, mas não resolvem problema nenhum. Mas claro que, em Portugal, o que está na moda é dizer que o outro lado do debate é "extremista", descendente de lacraus, e apostado em destruir o país. Ou então afirmar-se o último reduto da pureza num mundo pantanoso e tóxico. Em termos substantivos, e fora da retórica histérica, discute-se a alteração de pormenores, e reformas mais substanciais são rapidamente colocadas de parte.

5. A rapidez com que eu vi disseminar-se no meu Facebook que Portugal tinha pura e simplesmente votado contra a libertação de Nelson Mandela é inversamente proporcional à rapidez com que eu vi disseminar-se no meu Facebook a informação de que isto era, pura e simplesmente, mentira. Em 1987, Portugal votou contra uma resolução que reclamava a libertação incondicional de Nelson Mandela e votou a favor de outra resolução que reclamava a libertação incondicional de Nelson Mandela. A diferença entre as resoluções estava em pormenores relevantes, como o apoio da utilização da violência. As mesmas pessoas que se sentiram moralmente superiores por ajudarem a espalhar uma mentira podiam agora demonstrar a sua fibra dizendo que o que tinham dito antes estava errado. Mas isso não vai acontecer. Porque o que é "fixe" é dizer mal de Cavaco Silva (de quem eu, diga-se, não sou fã). E dizer o que aconteceu é muito menos fixe.

6. Vi a peça "A Noite" de José Saramago há uns dias. A peça era execrável, com personagens bidimensionais e uma história sem qualquer espessura ou interesse. Talvez em 1979 ainda fosse muito espectacular dizer que o Estado Novo era mau e quem o apoiava era tudo gente asquerosa, sebosa e nojenta, mas pelo menos em 2013 aquilo parecia datado e desinteressante. Ainda por cima, sabendo-se o que fez José Saramago no DN, a única ironia da peça vinha do que tinha acontecido na vida real. Não me levantei para bater palmas - aliás, não bati palmas. O Estado Novo foi uma ditadura asquerosa, como todas as ditaduras. Mas só porque uma peça diz mal do Estado Novo e dos seus apoiantes, não a torna uma peça boa, inovadora ou interessante.

7. O documento do Vice-Primeiro Ministro sobre reforma do Estado já parece ter sido esquecido. O Vice-Primeiro Ministro tinha como uma das suas principais tarefas elaborar aquele documento. O que saiu, apesar dos valentes esforços do Prof. Pedro Pita Barros para discutir o documento, parece que não vai ser usado para nada, nem sequer para começar um debate em torno da reforma do Estado. Vamos ficar na mesma. E Paulo Portas continua a revelar, como o já tinha feito enquanto Ministro dos Negócios Estrangeiros, que o CDS-PP teria feito um favor ao país se tivesse aproveitado a demissão surpresa do seu líder para se livrar dele e colocar no Governo alguém que, de facto, quisesse fazer jus à ideia de "partido dos contribuintes".

8. O novo Ministro da Economia não tem a má imprensa do anterior Ministro da Economia. Qual a diferença substantiva entre os dois que ajude a explicar este facto?

segunda-feira, 2 de dezembro de 2013

Partidos políticos - pensamentos soltos

Os partidos políticos são associações. Resultam da livre associação de um conjunto de pessoas quem pretendem, de forma organizada, participar activamente no processo político e, em particular, participar em eleições. Nem sempre existiram, mas rapidamente surgiram em regimes políticos com parlamentos (embora a sua forma moderna tenha surgido essencialmente no século XIX), incluindo aqueles cujo sistema eleitoral assenta em círculos uninominais.

Entende-se que os partidos políticos surjam. Surgem pelo mesmo motivo que todas as associações surgem - para conjugar recursos, de forma a facilitar a prossecução dos objectivos que movem quem forma a associação em causa. Podem ser maiores ou mais pequenos, mais ou menos heterogéneos, mas são sempre uma forma de conjugar recursos para participar no processo político.

Em democracias plurais que garantam a liberdade de associação aos seus cidadãos, é particularmente razoável que surjam e se institucionalizem partidos políticos. São um resultado natural da forma como os seres humanos se agregam para atingir fins comuns, sendo que o surgimento de partidos diferentes está naturalmente relacionada com os objetivos de quem os forma não serem os mesmos, em especial na medida em que as suas concepções políticas sejam diferentes, por qualquer motivo.

Em Portugal, os partidos políticos têm regulação constitucional especial, bem como regulação legislativa relativa à sua formação, organização, funcionamento e financiamento. E ao seu lado surgiram 'movimentos de cidadãos' que podem participar em eleições autárquicas e estão sujeitos a regulação diferente. Isto para alargar as possibilidades de participação a nível autárquico, mas reservando aos 'partidos' a participação em eleições legislativas e europeias (e, que eu saiba, regionais). Corre também um certo discurso anti-partidos, com variadas fundamentações.

O discurso anti-partidos não me atrai minimamente porque eu vejo os partidos como algo que emerge naturalmente, e legitimamente, em democracias plurais e livres. São manifestações da liberdade de associação e, indirectamente, da liberdade de pensamento e de expressão. São manifestações da liberdade de participacão e intervenção política dos cidadãos em democracias. E, por isso mesmo, tendo a defender que devem ser fáceis de formar - uns estatutos, nome, logótipo e gente para os órgãos, e pouco (ou nada) mais. A meu ver, os movimentos de cidadãos são partidos com outro nome e com regulação especial desnecessária. 

(Abra-se aqui um parêntesis para dizer que eu não vejo as eleições autárquicas como inerentemente menos ideológicas que outras - acontece é que em Portugal as autarquias têm menos competências do que poderiam - ou deveriam - ter, mas isso não implica que as diferentes formas de encarar a comunidade não se façam sentir nas autárquicas. E também não vejo os movimentos de cidadão serem inerentemente menos ideológicos que os partidos.)

Em Portugal, não se podem formar partidos regionais nem locais (mas podem formar-se movimentos de cidadãos a nível local para fazer precisamente a mesma coisa que um partido faz a nível local...). Tem de se recolher 7500 assinaturas para formar um partido. E há diversas regras a cumprir e coimas a pagar (que naturalmente têm efeito particularmente nefasto sobre partidos mais pequenos e com menos de recursos), sendo que temos um sistema eleitoral extremamente fechado, que está ligado umbilicalmente ao financiamento partidário. Em suma, sem entrar em detalhes: formar e, principalmente, manter um partido político em Portugal não é nada fácil - o que beneficia, naturalmente, os partidos incumbentes (que ainda para mais têm regulação que os beneficia face aos 'movimentos de cidadãos', que mais não são que partidos locais com outro nome).

Em vez de se permitir a criação de 'movimentos de cidadãos' a nível local, que partem em desvantagem em relação aos 'partidos', devia simplesmente facilitar-se a criação de partidos e permitir assumir que se permite a criação de partidos de âmbito infra-nacional. Estas distinções sem conteúdo que ainda por cima resultam em regras que beneficiam os incumbentos (que, já agora, deviam deixar de existir) apenas servem para retirar clareza ao debate sobre estes temas, criando pseudo-distinções onde elas não existem de forma relevante, não beneficiando em nada a democracia portuguesa.

(Isto para não falar de várias outras reformas políticas relevantes que, também elas, necessitariam de uma reforma constitucional, naturalmente...)

domingo, 1 de dezembro de 2013

Reforma constitucional revisitada

Reformar a constituição é anátema para quem se reveja na dita, o que se compreende. Também se compreende que aqueles que achem que a democracia, para ser democracia, tem de incluir tudo o que está agora na CRP - e provavelmente até mais, em alguns casos.

O mais problemático é a noção de que quem defenda que a CRP tem de ser alterada 'não é um democrata' ou 'não defende o Estado Social'. Primeiro, porque há mais do que uma visão sobre o que é a democracia. Segundo, porque não existe apenas um modelo de Estado Social. E terceiro, pode haver quem não considere que deve ser constitucionalizada muita coisa que está na CRP apesar de concordar com o que lá está.

Naturalmente, há quem queira alterar a CRP e não seja um democrata ou não queira um Estado Social. Mas basta olhar para os programas políticos dos principais, ou mesmo da quase maioria, dos partidos políticos portugueses para se perceber claramente que não são parte do 'mainstream'. O que acontece, isso sim, é ver diferentes concepções de democracia e diferentes modelos de Estado Social em confronto. Porque não é obrigatório concordar com quem concorda com o que está na CRP.

A diabolização de quem defende alterações à CRP com base em teorias da conspiração, em distorções e no aproveitamento do desconhecimento generalizado de realidades diferentes da portuguesa tem sido muito útil para a manutenção do 'status quo'. Tem sido muito útil para tentar impedir que sequer se debata o tema de uma forma não imediatamente inquinada. 

Nisto, quem deseja que tudo fique na mesma tem sido ajudado pela forma como propostas de mudança têm sido apresentadas. Mas claro que essa apresentação é sempre 'contextualizada' de forma negativa, logo á partida. Em todo o caso, urge que se comece a explicar claramente que o ponto não é simplesmente que a CRP é restritiva e não dão dá jeito porque estamos em crise - o ponto não é que se suspenda a CRP em tempo de crise. Antes pelo contrário.

Há uns tempos, escrevi um texto em que tentei explicar (de forma não totalmente conseguida) o que me parece ser um problema na forma como se tem apresentado a reforma da CRP. Parece sempre ser demasiado restrita a 'é preciso mudar a CRP porque me dá jeito'. Ou facilmente apresentável como tal. E é isso que tem acontecido, também, acompanhado de acusações e de questionamento imediato das 'reais motivações' (sempre nefastas) de quem defende as reformas.

Acontece que a nossa CRP não é um texto sagrado escrito por entes divinos omniscientes, necessariamente inquestionável. A CRP é um texto político-jurídico preparado por seres humanos. Político que é, qualquer debate em seu torno terá cariz ideológico (mesmo que as ideologias sejam inominadas). E do confronto e compromisso ideológico surgirão novas respostas, novas ideias e novas soluções possíveis. 

Eu defendo uma democracia em que este debate público e confronto político - e portanto ideológico - estejam no seu cerne. E a nossa CRP retira uma quantidade incrível de temas ao debate público, mesmo eleitoral, que lá podiam, e deviam, estar. E certos grupos buscam na constitucionalização daquilo que defendem uma legitimidade acrescida, ao mesmo tempo que procuram retirar toda e qualquer legitimidade (e, de novo, diabolizar) a quem defenda reformas constitucionais.

Acontece que as ideias de quem defende a manutenção da CRP nos seus moldes actuais são tão questionáveis como as de quem defende alterações. E a forma como se furtam ao debate recorrendo a insultos, a manipulações, a diabolizações, a descaracterizações, a teorias da conspiração e a imputações de motivações memos claras não é um sinal de força. É um sinal de fraqueza. Porque nenhuma dessas invocações na verdade defende a CRP. E ajudam apenas à deterioração continuada do debate público português.

Muitas das pessoas que assim defendem a CRP devem deplorar o Tea Party. Mas as suas tácticas, a sua atitude perante o debate e o seu moralismo lembram-me sistematicamente... O Tea Party.

Debate público em Portugal - texto repetitivo

Fazer interpretações aviltantes e carregar de considerações negativas e pejorativas daquilo e aquilo que alguém escreve ou diz é o pão nosso de cada dia no 'debate público' português. Sistematicamente temos concursos de histeria sobre citações descontextualizadas a que são atribuídas interpretações carregadas de más intençõess sem ter por base o que a pessoa disse, mas sim imputações avulsas de mau carácter.

Demasiadas vezes, os títulos de jornais trazem frases truncadas de forma sensacionalista, que deturpa o que foi dito. Debatem-se os títulos e não o resto. Imensas vezes, discute-se a forma e não o conteúdo. Elevam-se vozes a condenar sumariamente aquilo que supostamente foi dito ou feito, sem preocupação de ir além do insulto torpe e barato.

Isto acontece por todo o espectro político. Acontece por toda a imprensa. Políticos e comunicação social alimentam tudo isto, demasiadas vezes de forma primária e quase amadora. A substância do que se passa é quase irrelevante. A troca de argumentos também. O que é giro e sexy é repetir soundbytes e alimentar indignações que pouco têm de púdicas.

Depois, à margem de tudo isto, complementa-se esta cacafonia com a cacafonia das teorias da conspiração e dos alegados 'puros' da política e da ideologia, das afirmações avulsas de teor moralista, da falsa humildade que deixa transparecer a enorme arrogância daqueles que se entendem de alguma forma 'superiores'. Quando esta cacafonia chega ao 'mainstream', devem começar a soar os sinais de alarme. E isso só é ajudado pelas berrarias a que chamamos 'debate público' actualmente.