segunda-feira, 28 de novembro de 2011

Todos somos estrangeiros



O conceito de «nação» impregna o nosso debate político. Os seres humanos são divididos de acordo com tradições culturais «comuns» e assim divididos em «nações».

Cada «nação» tem os seus mitos. Em Portugal, ligamos os portugueses aos lusitanos, por exemplo, e elementos da nossa História são depurados e transformados em histórias que servem para afirmar as características intrínsecas do «povo português».

A noção de que cada «nação» deve ter o seu «Estado» vê-se também em todo o lado como um ideal a atingir. Assim, cada conjunto de seres humanos culturalmente homogéneo deve gerir-se a si próprio. É nisto que redunda a «auto-determinação dos povos».

E assim surge o mito do «Estado-Nação», cujo objectivo último é «proteger» os seus membros e defendê-los dos outros. Esses «outros» são, claro, os «estrangeiros». E a vivência humana reduz-se a um confronto entre os «nacionais» e os «estrangeiros» por riqueza.

Nesta concepção do mundo, há uma guerra permanente e a paz é algo de estranho. Afinal, para que os «nacionais» tenham algum coisa, os «estrangeiros» têm de a perder, e «vice-versa». As diferenças entre estes grupos são inultrapassáveis e portanto conduzem inevitavelmente ao conflito.

Nesta visão do mundo não há grande lugar para os indivíduos enquanto tal. Estes são consumidos pela «nação» e pelo «Estado» que a suporta. São peões no grande confronto entre «nações» que ocorre a uma escala mais ou menos global.

Mas mesmo nesta visão do mundo, em que todos os seres humanos são considerados intrinsecamente diferentes por questões culturais, há algo que os une a todos: todos são «estrangeiros». Para um americano, um português é «estrangeiro». Para um português, é o americano que é «estrangeiro».

Não subscrevo esta visão do mundo que divide os seres humanos desta forma. Mais: considero o Estado Nação (e outros parecidos) um ideal nocivo, que gera, ele próprio, conflitos. Porque é um conceito que nos faz esquecer que, no fundo, todos temos algo que nos une, mesmo que seja sermos «estrangeiros».

Mas mais do que isso, o conceito de «Estado Nação» é profundamente anti-individualista e «standardiza» os indivíduos, agrupando-os de forma estanque, e colocando acima de tudo um conjunto de tradições idealizadas e não a possibilidade de cada um se definir a si próprio. É um conceito que ignora a forma orgânica como estabelecemos relações uns com os outros, independentemente da «nação» a que supostamente pertençamos.

Ontologicamente, todos os seres humanos são iguais em dignidade. E por serem todos iguais em dignidade, as diferenças que os definem enquanto indivíduos devem ser respeitadas. Cada indivíduo deve ser o mais livre possível de viver de acordo com as suas preferências e de estabelecer relações com quem bem entender.

A função do Estado não deve ser proteger um conceito abstracto de «nação», mas sim a liberdade individual de cada um dentro de uma certa comunidade. Esta liberdade deve, em particular, ser garantida a nível global, permitindo que cada um de nós estabeleça relações com quem quiser e seja parte das comunidades que quiser.

Ao Estado-Nação e à noção do «nós contra os outros» vem muitas vezes associado proteccionismo de várias estirpes, defendido para que «nós» enriqueçamos. O passo seguinte varia: ou simplesmente enriquecemos e os outros empobrecem, ou então temos de subsidiar outros «povos» mais pobres.

Eu não penso em «nós contra os outros». Sou, claro, acusado de ser «ingénuo», de não saber como funciona o mundo, de não ser «patriota». Acusações que me passam ao lado. No fim de contas, o que eu penso é que são as políticas proteccionistas que causam empobrecimento e nível global e um sem número de conflitos, não o livre comércio.

Mais: apesar de sistematicamente se acusar os liberais de promoverem o egoísmo (geralmente confundindo «egoísmo» com «individualismo»), a verdade é que eu defendo que quem vivem em África ou na América Latina deve ter a mesma hipótese de enriquecer que eu e quero implementar políticas nesse sentido, quem me chama egoísta acha que isso não é nada com ele e que os «outros» é que têm de fazer pela vida (através de medidas proteccionistas e estatistas, geralmente, claro).

Enquanto eu defendo cooperação a nível global fomentada pela existência de fácil intercâmbio comercial e cultural, outros ou defendem o conflito ou então «cooperação» através de enormes barreiras. Auto-proclamam-se «realistas», o truque habitual de quem quer apresentar as suas opiniões em algo de objectivo, e chamam-me «idealista», como se isso fosse um insulto.

Pois bem, eu sou um idealista. Um idealista pragmático. Não me escondo atrás de um manto de fingida objectividade, confundindo as minhas ideias com a realidade, ou confundindo o «ser» com o «dever ser».

Não tenho também ilusões de que o meu ideal nunca será atingido. Afinal, é um ideal. Mas isso nunca me impedirá de me bater por ele. Por muito ridículo que possa parecer.

domingo, 27 de novembro de 2011

Todos somos políticos

Numa democracia liberal, todos somos políticos. Não somos todos profissionais da política, mas todos somos políticos. Cada um de nós, individualmente, enquanto cidadão, é chamado a participar no debate público e no processo de tomada de decisão público. Esse chamamento inclui o direito de voto mas vai para além dele. Inclui o exercício de muitos outros direitos e encontra-se assente na garantia da liberdade de pensamento.

Cada um de nós, enquanto cidadão, é um político, que toma decisões que afectam a nossa vida em comunidade. A simples decisão de não ir votar e não participar activamente no debate público é uma escolha política. A simples decisão de não prestar atenção ao que se passa é também ela uma escolha política. E escolher participar mais activamente, mesmo que fora de um partido político, é uma escolha política.

Cada um de nós assumir o nosso dever cívico de prestar atenção à política, de não a deixar aos «outros», aos «políticos profissionais», é dar força à nossa democracia. Uma sociedade civil organizada profissional, forte e consequente serviria não apenas para fortalecer o nosso debate público como também para resolver outros problemas que nos afectam enquanto comunidade

Em vez de nos queixarmos simplesmente, podemos entrar num partido político ou fundar um novo partido político. Os partidos políticos mais não são do que associações políticas às quais a nossa Constituição confere alguns poderes específicos, mormente no que toca a eleições. Ao querer que movimentos de cidadãos possam participar em eleições, aquilo que se está a defender, na prática, é que se facilite a criação de novos partidos políticos e que se facilite a participação em eleições.

Concordo com a ideia de que é preciso facilitar a capacidade das pessoas de intervirem politicamente no nosso debate público. Mas para começar, seria importante que elas aprendessem a utilizar os meios que já existem e que não se demitissem de propor soluções para os problemas que nos afligem. Não faz sentido acusar os políticos profissionais de não serem bons o suficiente mas depois simplesmente exigir que sejam «eles» a resolver os problemas. Também nos compete a nós, enquanto cidadãos, procurar possíveis soluções e promovê-las.

Todos somos políticos e isso não significa apenas direitos, significa também deveres. Aliás, as democracias liberais são regimes exigentes, porque exigem cultura democrática e capacidade de intervenção por parte dos cidadãos. Exigem debate público e a aceitação de pluralismo ideológico. Exigem muito mais do que regimes em que um autocrata qualquer decide e quem se opuser é simplesmente morto. Mas é precisamente por serem exigentes que as democracias liberais devem ser preservadas.

Numa altura em que vemos as atrocidades que são cometidas contra revoltosos que apenas exigem direitos que já nos são garantidos, devemos tentar fortalecer esses mesmos direitos. E isso faz-se, principalmente, exercendo-os de forma substantiva e consequente. Faz-se sendo exigente com o Parlamento e com o Governo, sendo exigente com todos os partidos, exigindo que o debate público seja mais que gritarias de parte a parte.

Essa é parte da nossa responsabilidade política neste regime: sermos exigentes. Porque se não formos, ninguém será por nós. E seremos nós a sofrer as consequências.

Braços de ferro europeus

Enquanto a União Europeia continuar a ter debates assentes na ideia de que esta crise se resolve através de uma luta entre os seus Estados Membros e em que as soluções devem ser adoptadas por auxiliarem os Estados Membros individualmente considerados, não vamos lá. Enquanto cada solução for apresentada e defendida por resolver o problema de quem a propõe, sendo que «os outros» ou «a outra» a têm ou a tem de aceitar «porque sim» não vamos lá.

É preciso que os constantes braços de ferro sejam substituídos por espírito de compromisso e que estivesse a ter lugar um verdadeiro debate europeu sobre o futuro da União Europeia. Um debate que não assentasse em mitos e distorções de ambos os lados e em que os argumentos a favor e contra a soberania nacional fossem passados a pente fino. Mas tendo em conta que a maior parte da população não sabe sequer como funciona a União Europeia actualmente, isto torna-se quase impossível.

A actual crise na União Europeia torna-se muito mais difícil de resolver porque o debate europeu se tem mantido longe da população em geral, até mesmo mais que o debate político em geral. Nas eleições europeias fala-se de assuntos «nacionais» e quem concorre são os partidos «nacionais», apesar de já existirem partidos europeus. Os noticiários (em Portugal, mas imagino que em geral) tratam o que se passa no Parlamento Europeu de forma secundária e focam-se no Conselho.

A Comissão agora retomou a iniciativa, com propostas relativas a impostos sobre transacções financeiras e «eurobonds». Da Alemanha ouvem-se propostas sobre uma união fiscal (também com a França e com o novo Governo italiano de Mario Monti). Penso que as propostas sobre «eurobonds» e sobre união fiscal se complementam e fazem ambas parte do debate mais alargado sobre a federalização da União Europeia. Mas enquanto todo o debate for visto como um braço de ferro entre diversos Estados Membros, em que alguns perdem para outros ganhar, a capacidade de compromisso entre as várias posições diminui.

E diminuindo a capacidade de compromisso por, na minha opinião, haver falta de visão estratégica para a União Europeia, ficamos presos a jogos posicionais que reflectem, à escala europeia, os jogos posicionais de política pura que temos (infelizmente) de aturar em Portugal. Claro que há quem tenha essa visão estratégica para a Europa (ver também, e principalmente, aqui). Também há quem tenha uma visão diferente, mais confederalista, e que a articule de forma intelectualmente honesta.

É esse debate que temos de ter, a uma escala europeia. O «Novo Rumo» de Mário Soares e Cia., certamente inspirado pela «bridge to nowhere» do Alaska, é apenas mais do mesmo e não apresenta quaisquer alternativas concretas, além de passar ao lado do essencial (pelo menos, do que me parece essencial). E aqueles que vão defendendo «soluções» insultando o lado contrário e assentando a sua posição na defesa intransigente de «interesses nacionais» em muito pouco ajudam a que o problema se resolva.

A verdadeira vencedora da continuação dos braços de ferro europeus é a crise, que se vai aprofundando. Enquanto não houver verdadeira consciência disso, não vamos sair da espiral de crise em que nos encontramos.

sábado, 26 de novembro de 2011

Acumular dívida faz mal à saúde

Acumular dívida de forma insustentável é um problema. Havia regras a cumprir para tentar garantir estabilidade e crescimento, mas ninguém as levou muito a sério. Hoje vivemos o resultado, em Portugal e na União Europeia.

Não é política liberal, nem nunca foi, a existência de défices sistemáticos que resultam num escalar de dívida. Qualquer liberal exigirá as contas públicas em ordem e exigirá que as gerações futuras não sejam constantemente oneradas com decisões sobre as quais não foram ouvidas (nem poderiam alguma vez ter sido).

Os constantes défices, que resultam numa dívida sempre a crescer até se tornar insustentável, vêm da ideia de que as gerações futuras estarão sistematicamente melhores do que nós por causa dos magníficos investimentos que vão sendo feitos e que portanto terão sempre maior capacidade de aguentar os encargos maiores que resultam deste tipo de políticas (leia-se: mais impostos).

Mais: este tipo de políticas de endividamento constante são defendidas precisamente por aqueles que depois culpam quem emprestou o dinheiro pela espiral de dívida com a qual nos fomos sufocando. Na prática, e em resumo, o argumento dos «fluxos de capital» terem sido excessivos significa, trocado por miúdos, que houve demasiado investimento em Portugal e que nós não aguentámos.

Curiosamente, nos tempos das vacas gordas, ninguém ligou nada a isso. Quem falasse de problemas com encargos futuros era considerado contra o progresso. Agora que os estamos a pagar, é quem nos emprestou o dinheiro que é contra o progresso. Os únicos que não são contra o progresso são aqueles que tomam a decisão de pedir dinheiro emprestado, pelos vistos.

Em Portugal, conjugámos uma política de endividamento constante com um mercado inflexível, baixa produtividade e baixo nível de qualificação. Tivemos vários anos para ir, gradualmente, reformando a nossa política económica e décadas para melhorar, bastante mais, o nosso nível de instrução. Mas não fizemos nem verdadeiras reformas da nossa política económica, nem conseguimos melhorar suficientemente o nosso nível de instrução.

Agora, no meio de uma profunda crise, estamos a fazer todos os ajustamentos ao mesmo tempo. É nisto, em grande medida, que dá o acumular constante de dívida sem pensar que um dia se vai ter de pagar de volta, e gastar dinheiro em investimentos público de rentabilidade (qualquer tipo) dúbia. Mas claro, para alguns, a culpa é dos outros, nunca nossa.

Esta crise serviu para lembrar algo que os liberais sempre defenderam: que acumular dívida de forma insustentável faz mal à saúde. Serviu também para lembrar que incentivar o consumo desenfreado não é sustentável e tem efeitos perniciosos. E com esta crise, chegou o momento de deixarmos de acumular dívida e incentivar o consumo da forma que temos feito e um ajustamento penoso, muito penoso.

Felizmente, parece que muita gente em Portugal não vai na conversa da vitimização e em teorias da conspiração. Mas infelizmente, parece que ao nível da União Europeia, não tem havido coragem para tomar medidas que resolvam o cerne do problema institucional que vivemos na União Europeia neste momento. E portanto, a juntar-se aos nossos problemas nacionais estruturais, temos problemas estruturais europeus que também precisam de resolução para conseguirmos ultrapassar a crise.


sexta-feira, 25 de novembro de 2011

União fiscal e títulos de dívida europeia

A Alemanha (e não só) tem andado a falar de criar uma união fiscal na União Europeia. Pessoalmente, defendo a criação de impostos europeus que sejam a principal fonte de financiamento da União Europeia e penso que parte da solução dos problemas que vivemos actualmente passa por aí. Pela existência de um Orçamento europeu verdadeiramente europeu e que vai buscar as suas receitas directamente aos cidadãos europeus, sem intermediação dos Estados Membros.

Penso que criar um verdadeiro Ministério das Finanças europeu, que não servisse para coordenar ou dirigir os Ministérios das Finanças dos Estados Membros, mas sim para preparar um Orçamento europeu para apresentar a um Senado Europeu (directamente eleito pelos cidadãos europeus) e ao Parlamento Europeu para aprovação simplificaria enormemente o actual processo orçamental e torná-lo-ia também mais transparente.

Os impostos europeus como principal fonte de financiamento da UE teriam o mesmo efeito, pois os cidadãos passariam a conseguir mais facilmente verificar quanto pagam pela UE. Penso ainda que o pagamento de impostos directamente à UE ajudaria a aproximar os cidadãos da própria UE, dado que deixariam de existir os actuais intermediários. Nesse momento, o cidadão europeu saberia que estava a contribuir directamente para o financiamento da UE. Parece-me que isto ajudaria a que as pessoas se sentissem parte da UE enquanto tal.

Isto porque seriam verdadeiramente tratadas como cidadãs europeias. Deixaria de existir a espécie de «coeficiente de Estado» que existe hoje, em que alguns Estados contribuem mais e outros menos com base no seu estatuto enquanto Estado. O que passaria a ser relevante seria a pessoa enquanto tal, individualmente considerada. E isto é necessário se quisermos uma União Europeia mais democrática e uma União Europeia mais focada nos cidadãos e menos nos Estados.

A União Europeia passaria a ter de apelar directamente aos cidadãos europeus, sem intermediários, e as suas instituições teriam maior capacidade para se imunizar contra influência indevida de certos Estados. Afinal, o poder passaria a residir mais directamente nos cidadãos e nas instituições europeias enquanto tal, principalmente aquelas que os representassem directamente (Parlamento Europeu e Senado Europeu).

Diga-se, aliás, que a união fiscal é uma condição necessária para que seja possível emitir, de forma razoável, «eurobonds». Aliás, assim seria possível emitir «verdadeiros» «eurobonds»: títulos de dívida europeia de uma União Europeia federal. E a ser emitida dívida europeia, eu defendo que esta deve ser constitucionalmente limitada, em moldes similares às regras que hoje existem na Zona Euro.

Uma verdadeira federação europeia com o verdadeiro Orçamento europeu e impostos europeus seria bem mais transparente do que o actual sistema e aproximaria a União Europeia dos cidadãos europeus, dado que estes passariam a ser tratados enquanto tal e teriam maior capacidade de «sentir» o seu contributo para a União Europeia. O que os tornaria mais capazes de lhe pedir prestação de contas. E tornaria ainda a União Europeia capaz de emitir dívida (com a regra que eu mencionei, de preferência).

Passa por aqui, na minha opinião, parte da solução para a crise das dívidas soberanas. Não basta falar de «eurobonds» ou de «uniões fiscais». É preciso redesenhar o desenho institucional da UE e conferir-lhe os recursos próprios necessários para que se autonomize dos Estados e se aproxime dos cidadãos.

P.S. Recomendo a leitura deste texto da eurodeputada neerlandesa da ALDE Sophie in't Veld: An Alliance for Europe.

quinta-feira, 24 de novembro de 2011

Racionalidade, Reciprocidade, Empreendedorismo

Ser racional, tentar maximizar a nossa utilidade e viver de acordo com os nossos interesses não são o mesmo que ignorar por completo os outros que nos rodeiam. O conceito de racionalidade económica e mesmo o conceito de egoísmo quando encarado neste sentido não é minimamente incompatível com o conceito de reciprocidade. Haverá alturas, muitas alturas, em que nós consideramos que é do nosso interesse ajudar os outros, tanto porque os outros depois nos tenderão a ajudar também a nós, como também por simplesmente nos sentirmos bem em ajudá-os e considerarmos ajudá-los um bem em si mesmo.

Não é de todo surpreendente, aliás, que haja comportamentos altruístas. A capacidade de ajudar os outros, de sentir empatia, de ser solidário com quem tem problemas é a base de uma qualquer comunidade sólida. É essa capacidade que gera entre-ajuda nos membros da comunidade e essa cooperação é perfeitamente racional economicamente, da mesma forma que a concorrência o será. E será ainda importante notar que nada disto coloca em causa o individualismo e a capacidade dos indivíduos se afirmarem enquanto seres específicos, irrepetíveis e autónomos.

É importante lembrar tudo isto num país em que o Estado é excessivamente visto como uma simples fonte de subsídios. É importante lembrar tudo isto perante quem tenha preconceitos contra quem ridicularize a filantropia ou a caridade, imputando más intenções a quem as pratique (geralmente por serem «ricos» e portanto, por definição, de acordo com essas pessoas, serem cínicos e incapazes de sentir verdadeira empatia). É fundamentalmente importante lembrar que a sociedade civil tem um papel importante a desempenhar em situações de crise e que essa função não se resume a organizar pessoas que queiram receber subsídios e, portanto, servir de intermediários entre o Estado e o resto da população.

O que é fundamental no que toca à solidariedade é a capacidade de cada um de nós sentir que existe mais no mundo além do nosso umbigo e que é nosso dever ajudar quem precisa. É este sentimento, é esta cultura solidária que cria comunidades sólidas. Se a esta sentimento acrescer outro, o sentido de que devemos procurar, o mais possível, resolver os nossos problemas de forma autónoma, teremos uma comunidade em que os seus membros tentam resolver os seus problemas «de baixo para cima»: primeiro tentam resolver por si, se não conseguirem falam com vizinho(s), se não der falam com a associação de moradores ou com a junta e aí por diante.

Ao invés, não teremos uma comunidade em que as pessoas tentam resolver problemas que poderiam tentar resolver sozinhas através de uma petição ao Governo ou ao Presidente da República. Uma comunidade na qual se começa a tentar resolver os problemas por cima, em vez de por baixo, e em que as pessoas não confiam umas nas outras o suficiente para pedir ajuda. Depois, ironicamente, também não confiam no Estado e nos políticos (mais ou menos profissionais), a quem, no entanto, exigem a resolução de todos os problemas e mais alguns.

Parte da resolução dos problemas que atravessamos passa por as pessoas tentarem resolver os seus problemas por si e sentirem que têm pessoas à sua volta em quem confiam no caso de precisarem de ajuda, independentemente do Estado central ou de instituições públicas em geral. Se cada um de nós tentar resolver os seus problemas por si, ajudando no que pode os outros a resolverem os deles, menos imputaremos ao Estado e às instituições públicas, que se poderão, então, focar na resolução de problemas que, de facto, seja muito mais eficiente resolver a essa escala.

Criar empregos bem remunerados e aumentar a produtividade do país passa também por aqui. Precisamos de empresas que apostem na formação e na qualificação dos colaboradores, bem como em salários razoáveis para atrair os melhores e conseguir mantê-los, e que valorizem o «know how» como um activo precioso. Precisamos de gente que esteja disposta a sair da sua zona de conforto e de arriscar, independentemente da existência de subsídios estatais e de deixar que essa gente seja capaz de o fazer sem primeiro sufocar em regulamentos desnecessários e impostos.

Tudo isto, parece-me, já existe em Portugal, embora não corresponda ao estereótipo a que nos fomos habituando de Portugal. Acontece que estas pessoas estão demasiado ocupadas a inovar e a trabalhar para terem tempo de aparecer constantemente na comunicação social. Mesmo assim, vamos tendo notícias de bons exemplos em Portugal. São as «pessoas completamente loucas» de que o Hugo Garcia já aqui falou. É muito por essas pessoas que, parece-me, passa o futuro desenvolvimento económico português, aquele que poderá aos poucos ir substituindo a crise em que vivemos (e que irá perdurar). Se lhes retirarmos barreiras e deixarmos explorar todo o seu potencial, quem sabe o nível de progresso que atingiremos?


quarta-feira, 23 de novembro de 2011

Breves apontamentos económicos

Queria falar de Economia sem me alongar muito, pelo que decidi deixar aqui alguns tópicos que incentivem o pensamento sobre o tema. São temas sobre os quais gostaria, se tiver tempo, de escrever mais, mas por agora ficam estes breves apontamentos.

1. A Economia é uma ciência comportamental (veja-se a recente aproximação entre a Economia a Psicologia).

2. A Economia não é uma disciplina normativa.

3. A Economia não é uma ideologia.

4. A Economia não é uma Religião, repleta de dogmas impossíveis de testar empiricamente ou que não possam ser questionados.

5. A Economia não é a Política e não é o mesmo que Política Económica.

6. A Economia não se resume às Finanças.

7. A Economia não é a Moral.

8. A Economia e o Direito não são inimigos.

9. A Economia e a Sociologia não são inimigas.

10. Os mercados financeiros incluem toda a gente que neles participa, incluindo, só por exemplo, toda a gente que tenha um depósito num banco.

11. O mercado, genericamente, inclui-nos a todos, quer enquanto produtores, quer enquanto consumidores de bens e serviços.

12. A Economia, enquanto ciência comportamental, e não sendo uma disciplina normativa, é neutra em relação à relação entre «mercado» e «Estado».

Ficam estes doze pontos como convite à reflexão sobre a natureza da Economia e sobre a sua relação outras áreas. Tema que pode parecer esotérico mas que me parece bastante importante. Saber Economia, ou Direito, ou Sociologia, começa por saber o que é, e o que não é, a área do saber em causa. Sabendo isto, consegue-se verdadeiramente perceber o resto. Sem isso, nada feito.

Mas é relevante ainda por outro motivo. A forma como delimitamos a Economia tem impacto na forma como encaramos a Economia e permite-nos aplicar melhor aquilo que aprendemos com ela. Expressões muito usadas por cá, como «economicista» ou «economês», mais do que críticas à Economia, tendem a revelar, parece-me, um profundo grau de iliteracia económica em Portugal. Iliteracia económica essa que, tal como todas as outras formas de iliteracia, urge diminuir drasticamente. 

E essa redução começa, precisamente, por explicar o que é a Economia e para que serve. De forma a parar com as constantes confusões.

terça-feira, 22 de novembro de 2011

Empobrecimento e Inflação

O Primeiro-Ministro anunciou o óbvio: Portugal vai empobrecer, de forma relativa, como consequência da crise. O Líder da Oposição decidiu criticar o Primeiro-Ministro.

O Governo apresentou na sua proposta de Orçamento para 2012 um corte volumoso em salários de funcionários públicos e em pensões. O Líder da Oposição, mais uma vez, decidiu criticar os cortes, aproveitando a deixa do Presidente da República, que lhes chamou um «imposto».

Eu gostaria de falar do empobrecimento gerado pelo «imposto», bastante regressivo (leia-se, que afecta com particular gravidade os mais pobres), que o Líder da Oposição defende ser a «solução» da crise: a inflação.

Aumentos da inflação geram diminuição de poder de compra. Penalizam quem trabalha e quem poupa porque desvalorizam o dinheiro que essas pessoas recebem. Em particular, penaliza especialmente os mais pobres que trabalham e que poupam, dado que são estes que têm menos dinheiro logo à partida.

Quem beneficia com a inflação? Quem tem dívidas: porque o valor da sua dívida, mantendo-se nominalmente o mesmo, em termos reais baixou. Particularmente, beneficia da inflação quem deve e não quer verdadeiramente pagar a sua dívida.

Os EUA têm sido mestres nesta política de inflacionar o dólar para pagar a sua dívida e esse tipo de actuação tem sido tolerado porque o dólar é a moeda de reserva mundial por excelência. Mas a China, grande credor dos EUA, já tornou claro que não vê este comportamento com bons olhos, e os níveis de dívida americanos explodiram de tal maneira que os EUA vão mesmo ser forçados a fazer reformas estruturais.

Até nos EUA, portanto, esta «solução» já não funciona muito bem, mas António José Seguro quer importá-la para a área do euro. Isto apesar da dita «solução» não resolver problema estrutural nenhum da economia portuguesa (ou europeia), retirar um incentivo para aumentar o nível produtividade da nossa economia que neste momento existe e que já tem dado frutos e tem subjacente a lógica de Portugal como um país de salários baixos e empresas de baixo valor acrescentado que ainda torna a economia portuguesa pouco competitiva.

Pior ainda é a forma como António José Seguro defende as suas políticas inflacionistas de «imprimir dinheiro»: diz que são «boas para Portugal». Além das políticas não serem «boas para Portugal», o pendor nacionalista deste tipo de argumentação não devia ter lugar no debate sobre uma moeda que não é só portuguesa. Em nada ajuda o euro que líderes políticos andem a tratá-lo como brinquedo no jogo político nacional, tal como em nada ajuda a construção europeia que problemas europeus sejam tratados sob o prisma da competição nacionalista.

Em resumo, António José Seguro propõe que a saída da crise se faça através da perda de poder de compra de quem trabalha e de quem poupa e através de uma medida que iria ter um impacto particularmente negativo junto dos mais pobres que trabalhem e que poupem. Depois vem criticar o Governo por falar abertamente no empobrecimento do país. E apenas pode fazê-lo de forma tão leviana porque o nível de iliteracia económica em Portugal é tal que ninguém o confronta com isto.

segunda-feira, 21 de novembro de 2011

Pensamentos soltos numa noite fria

1. Dizer que o Governo escolheu cortar fortemente os salários de funcionários públicos por os funcionários públicos não serem a sua base eleitoral é pensar que uma medida extremamente impopular como esta, num país em que toda a gente tem vários funcionários públicos na família ou entre os seus amigos e conhecidos, é tomada com base em cálculo eleitoral poucos meses após eleições e com as próximas eleições ainda a alguma distância. Mas é deste tipo de juízo de intenção que se vai fazendo muito do debate sobre o Orçamento do Estado de 2012.

2. Aliás, este tipo de argumentação com base em juízo de intenção, de ataque «ad hominem», é típica do debate político em Portugal, que se pauta por um nível muito baixo. Raramente se discutem propostas. Discute-se sempre quem as tomou, as segundas intenções que poderão estar por trás de cada decisão e, de vez em quando, carpem-se mágoas pelo terror que é a «ideologia», essa coisa horrível que cega quem toma decisões e os leva a ignorar «as pessoas» (ignorando-se, claro, que todos temos ideologia).

3. É muito fácil escrever meia dúzia de parágrafos a dizer que o Orçamento é terrível, que é iníquo, que declara guerra a funcionários públicos e pensionistas. É ainda mais fácil «surfar» essa onda com propostas do tipo as que o PS tem feito, com base numa suposta folga orçamental que a Troika não encontrou em lado nenhum, mas que o PS nos assegura que existe. Ou propor impostos sobre o luxo. Aliás, parece ser muito fácil propor aumentos de impostos, mas não cortes na despesa, quer da parte da Oposição, quer da parte do Governo.

4. E enquanto tudo isto acontece, há uma crise das dívidas soberanas na Europa que não tem gerado o debate que devia: um verdadeiro debate sobre uma federação europeia (ver aqui ou aqui). As meias decisões vão sendo tomadas, os alemães e os gregos vão sendo insultados, a legitimidade dos próprios Parlamentos vai sendo posta em causa por «indignados», mas um debate público sólido sobre o projecto europeu é algo que não existe.

5. Temos uma crise económica e financeira, a que se junta uma crise social e política, de resolução difícil e que está a levar ao limite todas as instituições que criámos para lidar com estas crises, quer cá na Europa, quer nos próprios Estados Unidos (onde as guerras entre o Presidente e o Congresso, e dentro do próprio Congresso, ajudaram bastante à primeira descida na notação da dívida soberana dos EUA de sempre). Uma crise em que todos saímos prejudicados e da qual sairíamos ainda mais prejudicados se se preferir a via da teoria da conspiração em vez de pensar na interligação que existe entre a Europa e os EUA.

6. No fim de contas, para ultrapassar a crise penso que teremos de aceitar que há problemas em várias escalas e que é preciso começarmos a resolver esses problemas na escala adequada. Enquanto continuarmos a pensar que é cada um por si, não vamos lá. Pior do que isso: enquanto continuarmos a pensar que a escala de hoje é a escala do séc. XIX e dos seus mitos nacionalistas, é precisamente a essa escala que vamos ficar presos, com enormes custos de oportunidade, a nível global, para todos nós.

Eventos

Gostaria de divulgar dois eventos de potencial interesse para os leitores.

O primeiro é a conferência "Crescimento Económico na União Europeia? Perspectivas para a Prosperidade”, mais uma do European Liberal Forum (organização MLS), já esta Sexta 25/11 no ISLA em Lisboa.

No dia seguinte (26/11), realiza-se a "1ª Conferência do Liberalismo Clássico", organizado pela Causa Liberal, em Coimbra.

terça-feira, 15 de novembro de 2011

Função Pública (Artigos a Ler)

O Prof. Luís Fábrica, da Universidade Católica, escreveu três breves contributos para o debate público sobre a função pública que me parecem, os três, muito interessantes, e de leitura relevante.

Aqui ficam os «links»:

http://www.dinheirovivo.pt/Estado/Artigo/CIECO020387.html

http://www.dinheirovivo.pt/Estado/Artigo/CIECO021365.html

http://www.dinheirovivo.pt/Estado/Artigo/CIECO022290.html

quinta-feira, 10 de novembro de 2011

Conferência "Direitos Individuais na Europa"

O European Liberal Forum e o Movimento Liberal Social irão até ao fim deste mês realizar três eventos interessantes em Lisboa sobre questões europeias.

O primeiro dos três é a Conferência "Direitos Individuais na Europa", no dia 17.




segunda-feira, 7 de novembro de 2011

A curva de Laffer

Há um par de semanas, pouco depois do anúncio das linhas gerais do OE12, ouvia eu dois ilustres opinion makers da nossa praça a dizerem um para o outro qualquer coisa como isto:


- Com este nível brutal da carga fiscal, vamos claramente ultrapassar o pico da curva de Laffer, blá-blá-blá.


- Acha? Pois eu tenho a certeza que já o ultrapassámos há muito tempo, yadda-yadda.


O que é afinal, basicamente, a curva de Laffer? A curva de Laffer é uma construção teórica, uma relação hipotética entre o nível (taxa) dos impostos sobre o rendimento, e o total da receita obtida através deles.


A hipótese é a de que com o aumento da taxa, a receita só aumenta até certo ponto, t*, a partir do qual se tem uma situação, no mínimo, paradoxal: um aumento da taxa gera, mesmo no curto prazo, uma diminuição da receita total, até ao caso extremo, em que, com uma taxa de 100 por cento, a receita obtida seria 0.


A ideia é que uma alteração na taxa tem dois efeitos associados, um “aritmético”, correspondente à alteração na dimensão da porção a ser taxada do rendimento e um “económico”, associado à repercussão que tal alteração, positiva ou negativa, tem nos incentivos à participação na actividade económica, ou seja, no rendimento obtido depois de impostos, seja do trabalho, seja do capital. Já para não falar no putativo efeito sobre a fuga de capitais para paraísos fiscais, incentivos à economia informal/fraude fiscal, and so on.


Até aqui tudo parece bastante razoável. Contudo, voltando um parágrafo atrás, vejamos: se num ponto em que a taxa é maior que o t*, um aumento da taxa gera uma diminuição da receita, tal implica logicamente que uma diminuição da taxa geraria... um aumento da receita total? A sério?


Pensarmos que, por cá, o peso relativo do Estado na actividade económica é um factor decisivo para a sua actual situação de fragilidade, não justifica ter a desfaçatez de aventar algo deste género. Uma coisa é afirmar que o aumento da carga fiscal poderá ter associada uma diminuição numa parte dessa actividade (no fundo, o tal “efeito económico”), sobretudo no contexto actual em que em conjunto com o aumento dos impostos temos uma redução maciça no investimento público e nalgumas transferências.


Outra é pensar-se que esse impacto seja tal que uma escalada marginal da taxa de imposto faça descer a receita obtida no total! Isso quereria dizer uma de duas coisas: ou que o rendimento/actividade decresceria de tal forma, ou que a malta começava a fugir de tal modo, que compensasse o aumento da taxa. Melhor ainda: se se diminuísse a carga fiscal para o próximo ano, a receita do Estado crescia por magia...


Obviamente que isto poderia hipoteticamente ter alguma ligação com a realidade, em casos extremos, com taxas impossivelmente grandes, que a existirem não estão documentados. Obviamente que a nossa carga fiscal é enorme, mas até há, imagine-se, maiores.Obviamente que a receita do Estado no próximo ano será menor que no corrente, tal como a neste será menor que em 2010. Esta evolução é, portanto, inversa à do nível de imposto sobre o rendimento, com os sucessivos pacotes de austeridade. O que não significa que haja uma relação significativa de causalidade entre as duas.


Reza a lenda que esta ideia foi apresentada a figuras como Dick Cheney pelo sr. Laffer, esboçando a tal curva num guardanapo de cocktail no Washington Hotel, tendo depois vindo a fazer parte do rationale por detrás das políticas supply-side que Reagan levaria a cabo sobretudo nos seus primeiros anos de mandato. Se os resultados dessas políticas foram positivos, é uma questão que ainda hoje é alvo de debate. Que a teoria ou “técnica” serviu de desculpa às intenções políticas, e não como justificação ou sustentação real, é ponto assente.


Felizmente, por cá, serve de desculpa só mesmo para dizer mal.


Mais sobre a curva de Laffer (leia-se, num artigo pelo próprio) aqui.

domingo, 6 de novembro de 2011

Apontamentos sobre o OE 2012 (II)

António José Seguro até queria votar a favor da proposta do Governo para o Orçamento do Estado para 2012, mas ficou tão chocado pelo seu conteúdo que vai pedir a abstenção dos deputados do PS. Independentemente disso, diz também que vai apresentar umas propostas de alteração ao Governo, sendo a mais mediática a proposta de que se corte apenas um subsídio e não dois. É disto que o PS precisa para «viabilizar» o Orçamento.

Acontece que o PS não é necessário para «viabilizar» o Orçamento: a maioria parlamentar de que o Governo dispõe basta para isso. O voto do PS não é necessário para que nada seja aprovado ou viabilizado. O voto do PS e a sua actuação em todo este processo são, isso sim, sinais sobre a viabilidade do próprio PS para se assumir como alternativa à maioria actual. Ou seja, o que está em causa é a viabilização do próprio PS, não a viabilização do Orçamento.

É certo que eu concordo que o Orçamento precisa de um consenso mais alargado do que aquele que lhe permitiria passar pelo Parlamento para depois Presidente da República o assinar de cruz, possivelmente exercendo um pouco mais a «magistratura activa» dos breves comentários críticos a que nos foi habituando. Não menos certo é que o Orçamento vai além da Troika (o que aliás já tinha sido prometido) e que António José Seguro é fácil de chocar (ele e o PS são dos poucos que ainda estão chocados com os buracos orçamentais que deixaram ao país).

Mas também é certo que, sendo importante como sinal político, o voto do PS não é necessário para viabilizar este Orçamento. Mais certo ainda é que o PS já devia ter apresentado alternativas ao Orçamento, porque as suas propostas, penso eu, deveriam ser independentes das propostas do Governo. Apresentando publicamente as suas propostas num modelo de Orçamento próprio, poderia então o PS negociar com o Governo a alteração do Orçamento por este proposto.

Claro que isto implica mais trabalho, maior preparação e maior responsabilização do PS por matérias de governação, apesar de estar fora do Governo. E todo este trabalho não tem repercussões imediatas, porque não há eleições. Por isso temos assistido a jogos políticos e a piropos de circunstância nas televisões, em vez de a um verdadeiro debate substantivo. Porque as eleições já lá foram e o programa do PS nessas eleições é indiferente, só tornando a ser relevante ter algumas ideias alternativas quando vierem as próximas eleições.

Finalmente, o Orçamento é apenas um exemplo. O PS (nada espero dos outros partidos, embora todos o devessem, na minha opinião, fazer) devia ter este tipo de comportamento relativamente a todas as áreas de governação, a todos os temas que estejam em debate público. A função do PS vai bem mais além das frases feitas, das perplexidades fingidas e das incompreensões incompreensíveis: a função do PS é apresentar-se como alternativa de Governo.

Infelizmente, no entanto, não é nada seguro que o PS o faça. Porque isso significaria que o maior partido da oposição em Portugal iria, finalmente e, imagino, pela primeira vez, cumprir a sua função.

sábado, 5 de novembro de 2011

Contra o anti-germanismo e anti-helenismo

Na Grécia, a legitimidade democrática para acumular dívida e mentir sobre ela não tem limites. Anunciar referendos depois de duras negociações terem levado a um acordo, sem ter dito nada a ninguém, é de uma majestática democraticidade, uma manifestação portentosa de "soberania democrática". E a Grécia é uma vítima, não de erros próprios, mas de forças para além da sua capacidade de resistir.

Na Alemanha, a legitimidade democrática para não querer emprestar dinheiro à Grécia até pode existir, mas é um exercício claramente ilegítimo e nada solidário da maravilhosa "soberania democrática". A Alemanha querer que haja condições para emprestar o dinheiro também é inadmissível, tal como é inadmissível o Governo alemão ter posições diferentes daquelas defendidas pelos magníficos pensadores da Esquerda radical.

As gritarias anti-Alemanha são tão perigosas e mal pensadas como as gritarias anti-EUA e têm uma origem comum: os «poderosos» só têm responsabilidades, mas os «pobres» só têm direitos. Há nuances, e a posição não tende a ser tão extrema, mas no limite, é esta a lógica. A mesma lógica que leva à defesa de políticas que redundam na criação de «armadilhas de pobreza» em geral, mas aplicada à geopolítica.

Por outro lado, as gritarias contra a Grécia também são perigosas. Transformar os gregos em estereótipos negativos, ignorar os efeitos da crise e o facto de lhes terem, também a eles, mentido tem sido, e será sempre, uma receita para o ressentimento mútuo e para o desastre. Por outro lado, transformá-los em mártires também ignora todas as suas responsabilidades e em nada ajuda o problema a ser resolvido.

Não se pode tudo exigir da Alemanha, gritar com a Alemanha, insultar a Alemanha, culpar a Alemanha e tratar o eleitorado alemão como sendo irrelevante, ao mesmo tempo que se clama pela "soberania democrática grega". Mas também não se pode exigir tudo da Grécia, gritar com a Grécia, insultar a Grécia e culpar apenas a Grécia e tratar o eleitorado grego como sendo irrelevante, ao mesmo tempo que se impede a resolução do problema do euro através de uma muito maior federalização da UE.

«With great power comes great responsability.» Mas tendo a Alemanha «great power», não é a única com «responsibility». A Grécia também a tem: o que acontece na Grécia tem repercussões por toda a Europa e, no limite, por todo o mundo. Todos temos responsabilidades nesta crise, porque estamos num Mercado Único que é importante preservar. As gritarias e os atrasos que têm pautado a tomada de decisão na UE durante esta crise só se vão suceder consecutivamente, parece-me, até a UE simplificar e integrar o seu processo de tomada de decisão numa verdadeira federação.

Mas enquanto isso não acontecer, é importante que não nos deixemos levar por anti-germanismos e anti-helenismos. Não nos deixemos levar por jogadas com referendos na Grécia, desvalorizando e retirando legitimidade, de forma implícita, aos Parlamentos, e desprezando os outros parceiros de negociação da UE, também.

Principalmente, não nos deixemos enganar pelo canto de sereia da «soberania democrática», novo nome mais politicamente correcto da «soberania nacional». É que a crise das dívidas europeias é um problema europeu e global e, para o resolvermos, precisamos de uma resposta europeia e global. Não de gritarias, insultos ou atrasos.