sábado, 31 de dezembro de 2011

Em 2011

Em 2011, tudo se precipitou. Chegou o futuro, que pagou o passado que viveu o presente.

Não é a primeira nem será a última vez que isto acontece. As crises não se abolem por decreto, pelo que o fundamental é saber geri-las.

Sair da crise actual não vai ser fácil, mas nunca é. Não há botão para carregar que resolva, sem mais, os problemas com os quais nos defrontamos.

E a crise vai ser duradoura. Muito duradoura. Depois de bonança prolongada, a tempestade que vivemos mostrou que não há almoços grátis, que não dá para empurrar com a barriga para sempre.

O debate sobre o que fazer vai muito para além das fronteiras portugueses, porque também os problemas as ultrapassam. Ultrapassam as próprias fronteiras europeias.

Não vivemos o pós-1945. Não vivemos o pós-Guerra Fria. Algo novo está a começar. E a História deste novo tempo será determinada por quem a vive. Por todos nós.

No novo ano, vira-se uma página. Cabe-nos escrever a continuação.

segunda-feira, 26 de dezembro de 2011

Reformas Constitucionais

Em Portugal, propor reformas ao nosso Estado é um convite a receber um conjunto de ataques «ad hominem» ininterrupto. Mesmo ataques absurdos, como «neoliberal fascista», que só demonstram que quem os utiliza não tem a mínima noção daquilo que está a dizer.

Em Portugal, propor que a nossa Constituição tenha um limite para o défice e para a dívida atrai ataques de quem diz que isso poderia bem pôr em causa, tornando inconstitucionais, os programas financeiros de quem queira propor ao país ir para além desse défice e dessa dívida (ou não propor nada e simplesmente fazê-lo, como vem sendo hábito).

Ao mesmo tempo, a nossa Constituição inclui um conjunto de normas programáticas que são usadas precisamente pelos mesmos para garantir que medidas de que não gostam são inconstitucionais. E quem defende que a Constituição deve deixar de prever várias dessas normas é imediatamente apelidado de «reaccionário» ou pior.

Neste momento de crise, em que a insustentabilidade financeira do Estado Social que se construiu está à vista, em vez de um debate sobre as várias alternativas à reforma do Estado, temos trocas de acusações, sendo a mais ridícula a acusação a de que uma certa proposta é «ideológica» (quando todas as propostas políticas o são). E a Constituição vai continuar essencialmente na mesma, podendo no limite passar a ter as tais normas sobre défice e dívida.

No caso do BE e do PCP, é constante a tentativa de retirar legitimidade às propostas de outros quadrantes políticos com base na noção de que apenas e só as propostas do BE e do PCP podem ter legitimidade democrática. Curiosamente, ao mesmo tempo que o fazem, ficam-se pelos «slogans» e pelos chavões já tradicionais a ambos os partidos.

Urge rever a Constituição portuguesa e o debate constitucional que é necessário na União Europeia é também necessário em Portugal. Um dos nossos problemas estruturais é também o mau funcionamento das nossas instituições políticas, que se deve, em parte relevante, a regras constitucionais que deviam ser alteradas (com a reforma do sistema eleitoral à cabeça, mas com muito mais a rever).

Mas esse debate constitucional não pode ser tido nos moldes de uma troca de insultos num café. É preciso deixar de lado pseudo-acusações como «esta proposta é ideológica!» e começar a debater o mérito de cada proposta e os seus fundamentos. Só assim podemos, de facto, reformar o nosso Estado e fomentar uma cultura de debate democrático em Portugal.

domingo, 25 de dezembro de 2011

Uma questão de escala (IV)

A importância da tecnologia na capacidade que os seres humanos têm de se atravessar distâncias cada vez maiores e relacionarem-se com outros seres humanos cada vez mais distantes geograficamente significa que o desenvolvimento tecnológico ao nível dos transportes e comunicações tem impacto relevante na formação de comunidades. Ora, as tecnologias relativas a transportes e comunicações, para funcionarem, precisam de energia. O que torna o desenvolvimento tecnológico na área da energia extremamente relevante, bem como o acesso a recursos naturais utilizados para fins energéticos.

Ter acesso a energia barata significa ter a capacidade de fazer funcionar a Internet e, também, ter a capacidade de percorrer grandes distâncias de forma financeiramente pouco custosa. Isto favorece o intercâmbio cultural e económico. Por outro lado, no entanto, um debate sobre energia não pode ignorar o problema das externalidades negativas (em particular, da poluição). Também neste contexto a inovação tecnológica é importante, permitindo tornar mais eficientes novos métodos de produzir energia menos poluentes e mais sustentáveis (colocando-se a questão de saber qual o papel do Estado a este respeito).

Por outro lado, toda a importância da tecnologia na alteração da escala a que os problemas políticos se podem colocar significa que o acesso às próprias tecnologias de transportes e comunicações mais avançadas vai ter impacto decisivo na capacidade que cada um de nós tem de aproveitar ao máximo as potencialidades da globalização. Aliás, não basta apenas ter a capacidade de aceder, em abstracto, à tecnologia, é necessário ainda ter a capacidade de a utilizar. Ou seja, não basta haver infraestructuras como linhas de ferro ou aeroportos ou terminais de Internet. É preciso que haja o nível de conhecimento necessário para as utilizar devidamente.

É neste contexto, então, que se insere, em termos mais genéricos, a questão da transmissão de tecnologias para zonas mais pobres do globo. A falta de qualificações nessas zonas do globo torna difícil que consigam potencializar a tecnologia de que disponham. Por outro lado, barreiras comerciais que os impeçam de aceder a mercados mais abastados impedem a formação de capital para investir no desenvolvimento dessas mesmas qualificações. Portanto, a melhor forma de ajudar as ONG que trabalham no sentido de combater a pobreza extrema não é simplesmente enviando remessas de dinheiro público de regiões mais prósperas para essas zonas, mas sim retirar as barreiras que impedem essas zonas de comerciar com as regiões mais prósperas do globo.

Não por acaso, o proteccionismo agrícola no Ocidente tem tido impactos extremamente negativos e perversos nas negociações da ronda de Doha. Não por acaso ainda, a questão da transmissão de tecnologia tem sido um ponto importante no debate sobre a adopção de energias menos poluentes por países mais pobres. Infelizmente, no entanto, nenhuma destas questões, verdadeiramente globais, é assim geralmente tratada no debate público nacional - isto assumindo que as questões são levantadas, o que quase nunca acontece.

Um debate público sobre energia e sobre política de transportes e comunicações, bem como sobre o desenvolvimento tecnológico, tem de ser um debate integrado e inserido no contexto nacional, europeu e global em que está, verdadeiramente, a ter lugar. Não basta falar do que decidiu o Governo nacional em abstracto, como se nós vivêssemos numa redoma. É preciso ir mais além.

sexta-feira, 23 de dezembro de 2011

Acções que definem o PCP

O PCP enviou votos de pesar ao povo da Coreia do Norte pela morte de Kim-Jong-Ill. O PCP não se identifica com «fenómenos e práticas da realidade coreana», tem o comunicado o cuidado de referir, mas demonstra solidariedade com uma brutal ditadura militar com culto de personalidade que condena o povo norte-coreano a morrer de fome (salvo os militares e gente próxima do regime). Afinal, respeita muito a soberania da Coreia do Norte e condena o terrível imperialismo americano na península da Coreia. 

Entretanto, o PCP foi o único partido a opor-se (os Verdes abstiveram-se) a voto de pesar por Vaclav Havel na Assembleia da República. Vaclav Havel bateu-se, de forma pacífica, pelo fim da União Soviética. Contrariamente a Kim-Jong-Ill, esse herói, Vaclav Havel bateu-se contra o «imperialismo soviético». O que, é bom de ver, não é minimamente aceitável para o PCP.

O soberanismo nacionalista do PCP, bem visível na forma como fala de «ocupação estrangeira» da Troika, com a palavra «estrangeiro» a soar a insulto, mostra o pendor fortemente conservador desse partido, ao qual se alia um feroz anti-americanismo. Um pendor fortemente conservador e, também, populista, bem patente nos cartazes com os quais o PCP nos tem vindo a presentear, bem como na retórica de Mário Nogueira, da FENPROF, e Carvalho da Silva, da CGTP.

Este tipo de actuação nada tem de «progressista». Aliás, o PCP pouco tem de «progressista», embora de demagógico tenha muito. E estas perguntas, como se pode ver pelas atitudes acima descritas, ainda se mantêm bem actuais.

quinta-feira, 15 de dezembro de 2011

O PS não é um partido de protesto?

Há pouco tempo, António José Seguro afirmou que o PS não é um partido de protesto. Hoje, Pedro Nuno Santos, Vice-Presidente da bancada parlamentar do PS, fala da dívida de forma leviana e populista (e, no Parlamento, temos troca de «galhardetes»).

Se o PS não é um partido de protesto, então António José Seguro tem de fazer pelo menos duas coisas, a saber: desautorizar Pedro Nuno Santos e tornar claro que este não fala pelo PS e abandonar a sua proposta de que os Estados Membros com excedente orçamental sejam penalizados se não subsidiarem outros Estados Membros da União Europeia (porque já seria pedir muito que não andasse com um discurso absurdamente nacionalista e soberanista para quem se diz adepto de uma federação europeia).

Enquanto pelo menos estas duas coisas não forem feitas, António José Seguro pode dizer o que quiser, mas o PS não passará de uma tentativa de partido de protesto.

quarta-feira, 14 de dezembro de 2011

Rui Tavares, Hitler e política monetária: uma argumentação nada útil

Após períodos de hiperinflacção com consequências trágicas para os seus cidadãos, a Alemanha aprendeu às suas próprias custas que manipular o valor da moeda não resolve, mas pode piorar e muito, os problemas da economia no médio prazo. Aplicou o resultado dessa lição ao longo dos dois últimos terços do século passado e, como prémio, teve a moeda mais estável e respeitada do Mundo; com os benefícios económicos inerentes.

Não quero apresentar este ponto como uma verdade absoluta. Mas para uma análise e discussão útil, é desejável que ele seja debatido na base de argumentos sãos. Ao ler o texto de hoje, na última página do Público, do jornalista e deputado europeu Rui Tavares, senti amargamente que foi prestado um mau serviço a esse debate na ordem do dia.

Rui Tavares descreve um discurso de Hitler de 1941 em que este declara guerra aos Estados Unidos. Após tecer diversas considerações sobre a natureza da personalidade de Hitler e das intenções que nessa altura já existiam acerca do tratamento horrível que iria dar aos judeus, cita um trecho do discurso em que Hitler critica as políticas de emissão de moeda de Franklin Roosevelt nos EUA e autoelogia as suas próprias políticas de estabilização da moeda. Rui Tavares conclui finalmente que “Já na altura os EUA tiveram sorte em ter um Roosevelt em vez de um Hitler. E ainda bem que ninguém se lembrou (então) de proibir o keynesianismo, nem de levar políticos a tribunal por políticas de expansão da economia".

A Escola Austríaca da Economia desenvolveu-se no início do século XX, precisamente o mesmo local onde Hitler nasceu e cresceu. O que esta corrente advogava era uma lógica consequência da teoria que desenvolveu (que pode ser discutida) e da sua aderência à realidade, muito em particular a do momento e local em que foi desenvolvida. O fato do governo de Hitler ter aplicado princípios económicos que se alinhavam com esta corrente não foi mais do que a natural consequência deste contexto. Um dos grandes pensadores da Escola Austríaca, Ludwig von Mises, sendo judeu, já tinha fugido da Europa para os Estados Unidos um ano antes daquele discurso.

Sem mais explicações sobre a necessidade de realizar discussões com argumentação sã e de como isso não acontece quando se cola uma determinada corrente económica a ideias macabras de Hitler sobre judeus, resta-me repetir que este é um exemplo de mau serviço à informação do público, e que infelizmente neste campo específico me parece ser recorrente entre diversos críticos daquilo a que apelidam de “neo-liberalismo”. Quanto a Rui Tavares, que respeito e gosto de ler, talvez tenha tido ele também um momento de “divisão de personalidade”, ao vestir o casaco de político populista e demagogo.

terça-feira, 13 de dezembro de 2011

O Duro Inverno Russo

Lembro-me que na minha primeira participação aqui no Cousas Liberaes preconizava o ano de 2011 como um ano de mudanças, desejadas e indesejadas. Entre as primeiras destacam-se obviamente as revoluções da chamada Primavera Árabe (que se prolongou pelas restantes estações) e, quanto às do segundo grupo, é inevitável não se pensar na Europa - que ou opta (e bem) por uma integração económica e política mais profunda ou se desagrega (a escolha do verbo não foi propositada).

Depois dos últimos acontecimentos na Rússia, questionamo-nos se poderemos também incluir uma eventual mudança no rumo político deste país no actual lote das mudanças desejadas.

Apesar de o capitalismo na Rússia estar mais do que enraizado e a população viver razoavelmente melhor do que há vinte anos atrás, a verdade é que não podemos adjectivar o maior país do mundo de democrático. Os actos de contestação nas grandes cidades de Moscovo e São Petersburgo, denunciando múltiplas ilegalidades no último acto eleitoral, não nos chamam à atenção por denunciarem alguma irregularidade escandalosa até então desconhecida, mas porque são a prova de que o povo russo quer mudar.

Os jovens russos de hoje pouco ou nada se lembram dos tempos de Gorbatchev ou Yeltsin e têm como termo de comparação não a história, mas o espaço. A penetração e massificação da internet na Rússia, assim como o crescimento das universidades permitiram a criação de uma geração jovem mais educada, crítica e de espírito livre que certamente sonha com modelos de democracia mais próximos do ideal europeu e/ou norte-americano.

A concretização desta possível Primavera Russa está agora muito dependente do grau de ambição dos seus cidadãos: pretendem eles uma verdadeira revolução ou apenas melhorar o sistema, tornando-o mais democrático? Outro aspecto importante resume-se ao facto de a real Rússia ser muito diferente dos seus grandes centros – Moscovo e São Petersburgo. Na Rússia rural não há acesso a fontes de informação independentes e a resistência a novas correntes pró-democráticas é imensa. A popularidade da Rússia Unida e de Putin nestas regiões é mantida pela compra de votos, a subsidiação e um sistema de controlo de informação que quase pode ser apelidado de censura. A figura de Putin é mesmo associada à restauração do antigo poderio soviético. A resposta mais ou menos repressiva das autoridades russas será também determinante no desenrolar dos acontecimentos.

Os duros invernos russos foram determinantes ao longo de toda a história deste país. Esperamos, assim, que também este em particular marque o começo da construção de algo novo e, sobretudo, melhor.

segunda-feira, 12 de dezembro de 2011

«Depois de sexta-feira continuamos a ser europeus?»

Hoje foi o último dia do debate «online» que a Fundação Francisco Manuel dos Santos promoveu relativamente à questão: «Até que ponto somos europeus?»

 Queria deixar aqui a segunda e última intervenção de Miguel Poiares Maduro no debate (com parágrafos, para facilitar a leitura; o negrito é também meu): 

«Também longo... Inevitavelmente este debate transformou-se numa discussão sobre a cimeira (o que apenas confirma que, quer queiramos quer não somos parte da Europa e o que temos de discutir é que Europa...infelizmente ou não os custos de deixar de cooperar num contexto de tal interdependência são muito superiores a ter de aceitar coisas com que não estamos de acordo; ou muito me engano ou Cameron irá descobrir isso). Estou menos pessimista que o Rui (ou se calhar quero ajudar a construir uma narrativa mais otimista com medo do que os mercados façam se a narrativa é pessimista...).

É verdade que a cimeira oferece pouco no que concerne o problema fundamental da Europa no momento: liquidez! (como o Rui acredito que isto é fundamental, embora existam várias alternativas e a minha preferência não vai para a proposta simples do Stuart Holland que não acho tão simples...). Mas (e é por isso que os mercados na sexta nos pouparam embora não esteja seguro que por muito tempo) a suposição é que esta declaração anunciando um novo tratado é parte de um acordo que leva a Alemanha a aceitar ou um outro tipo de intervenção do BCE (para ser honesto como jurista, complicado à luz dos tratados) ou Eurobonds etc. Na verdade, lendo bem a declaração muito fica em aberto (seguramente, ao contrário do Rui, não creio que o caminho seja necessariamente intergovernamental – na verdade a Comissão está muito presente no pouco que a declaração concretiza - e espero bem que não seja).

Acho que o fundamental está para vir e três coisas são fundamentais:

1) Que a nova disciplina não seja tal que elimine o espaço da política (eu só um defensor de que os défices orçamentais exigem alguma disciplina externa pois colocam problemas democráticos intergeracionais mas isso não deve ser levado ao ponto de cristalizar uma determinada visão política; este é o aspeto em que a declaração é mais preocupante); 


2) Que se defina não apenas um governo do euro mas um modelo democrático de governo do euro (não no sentido retórico mas no sentido de uma igual legitimidade e responsabilidade perante todos os cidadãos; paradoxalmente quanto menos intergovernamental for melhor para esta circunstância; o pior que nos trouxe o Tratado de Lisboa é aquilo que, quando ainda se negociava o Tratado Constitucional, eu designei de intergovernamentalismo maioritário! A expressão política deste sistema institucional é o que se designa vulgarmente de diretório; o que é paradoxal é que aqueles que mais defenderam a soberania nacional são os que mais contribuíram para ele... na verdade, um sistema institucional (repito institucional) federal era bem melhor para os cidadãos dos pequenos e médios Estados (esperemos que o debate em Portugal e, em consequência, a nossa participação se faça de forma mais informada...);

3) Para que o 2 se possa atingir é fundamental mudar (e criar) o discurso político europeu.

Para isso já fiz no passado algumas propostas. Já no contexto desta crise vejam mas há uns meses (temo que em inglês): http://www.project-syndicate.org/commentary/maduro1/English Ainda mais antigo vejam as propostas sugeridas em http://www1.ionline.pt/conteudo/5973-eleicoes-europeias-tudo-menos-europeias

domingo, 11 de dezembro de 2011

CULTURA

Recentemente, com o frenesim que rodeou, no meio dos vários graves problemas que vamos vivendo, a nomeação do Fado como património imaterial da humanidade foi-se falando mais uma vez das políticas do actual governo em relação à produção artística e cultural que incluíram cortes bastante significativos nos apoios e a decisão de reduzir o Ministério da Cultura a uma mera Secretaria de Estado, um acto com relevância financeira, administrativa e simbólica do ponto de vista daquilo que o actual governo parece achar serem as prioridades do estado. Naturalmente que do sector e de várias outras fontes as críticas têm sido significativas. Aponto aqui apenas para um pequeno artigo de opinião publicado pelo Bloco de Esquerda que me parece resumir em grande medida a posição que tem vindo a ser defendida em relação a este sector, tanto por razões ideológicas como por questões de clientelismo. No referido artigo, o governo é acusado de querer eliminar a autonomia das entidades criadoras para manter a produção artística e cultural longe do “povo” para além de criar mais desemprego e negar o acesso à cultura e à arte a milhões.

É preciso perguntar de que autonomia é que estas entidades dependentes de apoios pagos com o dinheiro dos contribuintes verdadeiramente usufruíam. A liberdade de criação, que a autora parece achar estar aqui em jogo, já estava totalmente comprometida à partida já que a selecção de beneficiários estaria invariavelmente dependente do Ministério da Cultura e suas entidades subsidiárias que não possuindo recursos infinitos teriam de proceder a uma selecção de uns em detrimento de outros. Esta escolha está naturalmente exposta aos caprichos dos burocratas que gerem estas entidades e a toda à espécie de pressões a que estes estão sujeitos.

Na ausência de apoios estatais a criação artística tem geralmente duas possibilidades, ou se arrisca no mercado ou tem a sorte de encontrar um mecenas que a sustente. Admitamos que de facto em Portugal o mecenato tem uma expressão bastante reduzida mas o mercado não deixa de ser uma possibilidade real. Naturalmente que mesmo aqui não será possível satisfazer todo e qualquer desejo de expressão artística mas poderemos ao menos estar seguros que a decisão sobre quais as obras a ser financiadas estará em melhores mãos do que se ela residir no estado. Para além de reflectir muito melhor as preferências da população o mercado permite-nos aceder a conteúdos que muito provavelmente nunca seriam produzidos no sistema anterior.

Veja-se exemplo esta série de propostas de lei do mesmo partido e citadas aqui: A leitura da maioria destas propostas mostra uma total irresponsabilidade na elaboração do texto legislativo sendo este tudo menos geral e abstracto indo desde a criação de um regime de segurança social especial para bailarinos ao apoio à renovação das artes circenses (o futuro da nossa economia!). Estes dois casos exemplificam o tipo de favoritismos a grupos de interesse que mina a capacidade de agir do estado e aumenta ainda mais a complexidade e opacidade do sistema ao criar regimes especiais para tudo e mais alguma coisa. Acresce a isto a insistência em usar o estado como meio de sustento de sectores aparentemente insustentáveis como parece ser o caso da arte circense que segundo o próprio texto é um “sector que debate-se com um conjunto de deficiências estruturais que têm dificultado a sua recuperação e adaptação às novas procuras do público”. Naturalmente, quando uma determinada actividade não encontra públicos é o papel do estado obrigar o contribuinte a financiar a dita cuja.

O esvaziamento dos circos resultaria “numa crise endémica com efeitos sociais e culturais profundos”, mais uma vez uma tentativa de determinar por via legal o que é e deve ser a cultura. Se a própria indústria está devota de público e com tão pequena expressão é de questionar que crise social profunda é essa que se abaterá sobre nós quando os circos se mudarem para pastagens mais férteis. São este tipo de fantasias que ocupam o tempo da Assembleia e apesar de na totalidade os financiamentos à arte e à cultura serem pequenos no total da nossa desgraça orçamental a sua existência levanta questões morais e políticas relacionadas com o modelo de financiamento estatal. Sendo este pago por impostos, assume uma natureza coerciva e implica uma imposição do estado em detrimento da liberdade de cada um de tomar as decisões que bem entende no que diz respeito a esta área. Por último, a própria existência, num estado de direito democrático, de um Ministério da Cultura que define quem é “digno” de financiamento aproxima-se perigosamente de tentações de planificação da identidade e da cultural “nacional” como instrumento de coerção e que é fundamentalmente incompatível com o desenvolvimento livre e espontâneo de uma matriz cultural que origina acima de tudo nos indivíduos ao invés da burocracia.

O corte nos financiamentos à produção artística e cultural não vai negar nem de perto o acesso à cultura a milhões. A cultura e a arte existem sempre sem que seja necessária intervenção do poder político e não são definidas de cima para baixo nem podem ser circunscritas a um ministério ou àquilo que é amigável desta ou daquela ideologia.

sábado, 10 de dezembro de 2011

Uma questão de escala (III)

Na Europa, o processo de integração europeu tem como estágio mais avançado a União Europeia, cuja crise actual tem levado a um debate sobre como reformar as suas instituições. Mas a constante evolução tecnológica vai gerando interdependências a uma escala cada vez maior. O que acontece na União Europeia tem consequências para os Estados Unidos ou na China e vice versa. Da mesma forma que as decisões que tomamos enquanto indivíduos afectam outros indivíduos, também as decisões tomadas por comunidades têm impacto interno mas também têm impacto externo.

Uma manifestação da interdependência actualmente existente são as Convenções Modelo da OCDE (p.ex. esta, numa matéria tão relevante para a soberania como os impostos) ou os «standards» regulatórios do Comité de Basileia. Apesar de nos encontrarmos perante «soft law», a verdade é que a interdependência gerou a necessidade de emergirem «standards» internacionais/globais que depois os Estados (ou a UE) acabam por transpor para os seus ordenamentos jurídicos (transformando-os em «hard law»). Ora, este processo é equivalente a processos muito semelhantes que existem, por exemplo, nos Estados Unidos, nos quais muitas «leis modelo» são desenvolvidas e depois transformadas em lei em vários Estados (à margem do Governo federal e em áreas da competência dos Estados federados).

Como se pode ver, este tipo de processos não põem em causa a soberania dos Estados, embora mostrem que ela funciona de forma condicionada. Mas também a nível global se coloca em causa a soberania dos Estados face à emergência de problemas que afectam todos os Estados e que precisam de uma resposta global (veja-se o terrorismo global, por exemplo, ou até questões migratórias ou comerciais). Por outro lado, o cada vez maior reconhecimento do indivíduo enquanto tal, e não como apenas uma emanação de certo Estado, serve também para minar o poder dos Estados (embora reconheça que ainda há um longo caminho a percorrer). O surgimento de empresas multinacionais e organizações não-governamentais globais têm, por sua vez, efeito semelhante.

Já existe uma comunidade política global, da qual todos fazemos parte, e sobre a qual também importa discutir o modelo de governação. A estagnação e arrastamento das negociações de Doha têm efeitos que se repercutem em cada um de nós, espalhados pelo mundo inteiro. A crise da União Europeia tem efeito nos EUA e a crise dos EUA tem efeito na União Europeia. A política monetária chinesa tem efeitos a nível global. No entanto, todos estes debates continuam a ser tratados e concebidos mediaticamente como conflitos entre Estados e as negociações de Doha nem costumam aparecer fora da comunicação social especializada, o que aliás também acontece com o debate sobre o modelo de governação a nível global.

É preciso inserir a crise que actualmente vivemos na União Europeia no contexto da crise que se vive nos EUA e também da emergência da China, da Índia e do Brasil e do ressurgimento da Rússia, entre outros processos marcantes do nosso tempo, para começar a tentar perceber as implicações do que se está a passar. Não basta pensar na perspectiva puramente interna portuguesa ou mesmo nas quezílias internas da União Europeia, que é tendencialmente aquilo que é feito.

Por outro lado, enquanto a interdependência e os benefícios que traz não forem valorizados como eu, pelo menos, penso que deviam ser, corremos o risco de que comecem a ser desvalorizados e até mesmo culpados pela crise. Daí a começarem a surgir barreiras à livre circulação, em nome da «soberania nacional», vai um passo muito pequeno, com os custos de oportunidade incalculavelmente elevados que isso traria.

Da Direita conservadora não se pode esperar que faça a defesa da liberdade e da interdependência global. Na Esquerda, ouvimos sistematicamente a palavra «estrangeiro» ser utilizada como se de um insulto se tratasse, com referência ao FMI e à UE (instituições das quais Portugal é membro, ainda por cima), bem como a defesa intransigente da «soberania nacional».

Cabe, então, aos liberais democratas fazer a defesa intransigente da interdependência global, do comércio livre, da primazia do Direito nas relações internacionais e da importância do indivíduo na política global. Enfrentando conservadores quer à Direita, quer à Esquerda, em nome da paz, da prosperidade e de um mundo melhor.

sexta-feira, 9 de dezembro de 2011

«Não temos alternativa: somos europeus quer queiramos quer não»

No debate para o qual já chamámos a atenção neste blogue, Miguel Poiares Maduro teve a seguinte intervenção, com me parece extremamente relevante e com a qual tendo a concordar:

«Peço desculpa por só agora intervir mas regressei dos Estados Unidos e ainda estou a recuperar do jet lag e a por a minha agenda em dia. E peço desculpa, igualmente, por fazer uma leitura muito diferente da questão. Até agora, todos se centraram na questão da identidade embora definida de formas diferentes. Eu quero defender que sermos ou não europeus não é uma questão de identidade. Somos Europeus porque as nossas vidas estão hoje profundamente interligadas com os outros europeus (da UE). Por outras palavras, é a interdependência que determina a pertença a uma comunidade política. Uma organização política resulta sobretudo da necessidade de gerir conflitos e cooperar na resolução de interesses comuns (veja-se – e o Miguel sabe melhor isto que eu seguramente – a forma como o Hobbes relaciona o aparecimento de comunidades políticas com conflitos resultantes da proximidade territorial). Ao contrário da visão predominante, uma comunidade política resulta mais da necessidade de regular o pluralismo e diversidade num contexto de interdependência do que de uma suposta identidade pré-existente. Tradicionalmente, a necessidade de organização política resultou da proximidade territorial porque era isso que determinava a interdependência (inicialmente uma cidade). Hoje em dia a interdependência é cada vez mais independente do território. Os fluxos económicos, migratórios, culturais e sociais dentro do espaço europeu é o que nos faz europeus. Neste sentido, a Europa já é uma comunidade política. Isto, independentemente da existência de um demos. A existência de um demos pode ajudar a suportar a construção dos mecanismos de auto-governo necessários a um exercício legítimo do poder nessa comunidade política. Mas isso não deve ser confundido com a existência de uma comunidade política. A forma como estamos hoje todos suspensos do que se está a passar em Bruxelas é a prova de que somos europeus. Quer queiramos quer não... Outra questão é e legitimidade do poder dentro desta comunidade. Começar a responder a esta questão fica para outra vez... »

quinta-feira, 8 de dezembro de 2011

Simplismo, Complexidade e Populismo

Lidar com a complexidade não é fácil. Não é fácil sentirmos que não controlamos o que nos rodeia ou que nem sequer o conseguimos entender completamente. Temos também tendência a desconfiar daquilo que é diferente e a ter medo do desconhecido. Finalmente, temos tendência para procurar padrões de forma a estruturar a realidade num todo coerente e cognoscível.

As mensagens populistas reduzem a realidade a um conjunto de proposições muito simples, fáceis de «vender» e de «captar». Jogam geralmente com o medo que as pessoas têm daquilo que é diferente e daquilo que não conhecem, envolvendo-se muitas vezes em afirmações triviais (ver aqui e aqui), chavões que ninguém questiona e que não precisam de ter grande substância. Depois, apresenta soluções também elas de simples apreensão e que fazem apelo ao «senso comum» (ver aqui e aqui) e à emoção.

Num momento de crise, as mensagens populistas apontam culpados e dizem que castigando esses culpados tudo se resolve. Prometem que, aplicando uma receita muito simples, podemos voltar a ter controlo das nossas vidas, que nos foi retirado, sem culpa nossa, por decisões que não podíamos controlar mas deveríamos poder. Prometem que, aplicando as suas ideias, podemos deixar de ter medo e de nos sentirmos inseguros, porque os problemas que nos dizem serem complexos são, na verdade, extremamente simples e simples de resolver.

Este tipo de mensagem é extremamente apelativo mesmo fora de tempos de crise, mas durante as crises torna-se particularmente sedutor. É difícil combater esta mensagem de forma eficaz sem cair em demagogias ou populismos próprios. A simplicidade atrai enquanto a complexidade afasta, dado que ninguém gosta de sentir que não é inteligente o suficiente para perceber o que lhe está a ser dito. Além disso, uma mensagem complexa que causa problemas de compreensão gera desconfiança, enquanto uma mensagem que se entende terá o efeito inverso.

Dizer que a realidade das relações humanas é uma realidade extremamente complexa e que não existem varinhas mágicas para resolver problemas, com a agravante de que todas as soluções propostas têm, elas próprias, custos não é uma mensagem apelativa. Tentar explicar conceitos complexos de forma simples mas, apesar de tudo, exacta é tarefa muito difícil, especialmente quando se luta por exposição mediática com um bombardeamento constante de mensagens demagógicas, simplistas e populistas.

Um bom debate público em democracia é fundamental para o seu bom funcionamento. Mas um debate público numa democracia liberal terá sempre uma componente populista, demagógica e simplista. Essa componente simplista aliada a elementos extremistas e anti-democráticos numa altura em que o centro não consegue arranjar soluções (e, frequentemente, se degladia com mensagens populistas próprias) mina a própria democracia.

A forma de combater este fenómeno parece-me ser conseguir que os elementos moderados em democracia (que, enfatizo, vão para além dos partidos políticos), sejam capazes de debater de forma substantiva e tenham, de facto, propostas para resolver problemas, não propostas para ganhar jogos de política pura. Isto tem sido, no entanto, aquilo a que sistematicamente temos vindo a assistir.


terça-feira, 6 de dezembro de 2011

Uma questão de escala (II)

A análise da crise europeia não pode passar ao lado da forma como os problemas de um Estado Membro afectam os outros Estados Membros e como as decisões a nível europeu têm impacto nos Estados Membros. Uma afirmação à primeira vista trivial mas que tem consequências relevantes, principalmente ao nível da «soberania nacional» e ao nível da escala do problema que enfrentamos. Resumindo, temos um problema português para resolver, de falta de competitividade, mas também temos um problema europeu para resolver. E os dois problemas estão interligados.

Os Estados Membros não existem num vazio. As decisões que tomam enquanto Estados afectam os outros Estados Membros e as decisões (ou falta delas) a nível europeu afectam a situação interna dos Estados. A interdependência actualmente existente é uma evidência e a forma como tem estado a afectar a crise também. A forma como lidamos com esta interdependência no futuro é a chave para sairmos desta crise específica (não, claro, para eliminar toda e qualquer crise) que é também uma crise institucional europeia.

Uma forma de lidar com a interdependência existente consiste em manter uma UE de Estados, em que a legitimidade da UE venha do facto de nos encontrarmos perante Estados Membros com democracias, além do Parlamento Europeu. Esta fórmula manteria a soberania dos Estados, mesmo que tendencialmente cada vez mais de forma meramente simbólica, admitindo a soberania nacional como um valor a respeitar e bom por si só, que não pode pura e simplesmente ser abandonado.

Não me parece, no entanto, que manter este sistema resolvesse os problemas que pretendemos resolver, como já tenho tido oportunidade de discutir aqui no blogue. Será relevante, ainda assim, que o princípio da subsidiaridade seja escrupulosamente cumprido. Isto porque, apesar de haver, neste momento, problemas que, a terem solução, a têm à escala europeia, continuam a existir questões para as quais a solução deve manter-se nos Estados Membros. As competências da federação europeia devem ser definidas tendo sempre em atenção este importante principio.

Deste modo, Portugal continuaria a ter de resolver o seu problema de competitividade, mas fá-lo-ia dentro de uma federação europeia, mantendo um nível de autonomia razoável para resolver questões nas quais não seria necessário a União Europeia intervir. A União Europeia, por sua vez, seria dotada de meios para resolver os problemas europeus de forma eficiente, prestando contas directamente aos cidadãos europeus. Os problemas passariam a ser resolvidos à escala apropriada e com um sistema de tomada de decisão mais eficiente.

Numa altura em que há mudanças tectónicas relevantes na geopolítica, com a mudança do «eixo» das relações internacionais para o Pacífico, e tendo em atenção os diversos problemas globais com os quais nos deparamos, para os quais haverá que encontrar soluções, é importante que a União Europeia saiba actuar à escala correcta para que a sua voz não se torne progressivamente irrelevante no contexto global.

Não é apenas o modelo de governação da UE que está a ser debatido, afinal. Também o modelo de governação a nível global o está a ser. Se os Estados europeus quiserem contar nesse debate público a nível global não podem, em primeiro lugar, deixar de se unir e, em segundo, não podem ceder a tentações anti-EUA ou mesmo anti-China primárias. Porque não nos podemos esquecer que a escala europeia não é o limite: hoje em dia, funcionamos também à escala global.

segunda-feira, 5 de dezembro de 2011

FFMS: Até que ponto somos europeus?

A Fundação Francisco Manuel dos Santos tem, no seu «site», uma novidade: debates temáticos «online», com participantes convidados (de elevada qualidade), mas nos quais todos os que se registarem podem participar.

Fica o convite para o debate que ocorre neste momento:



António Figueira é licenciado em Direito, mestre em Relações Internacionais e doutorado em História Contemporânea. Durante quase duas décadas, foi funcionário europeu e diplomata, em Bruxelas, Londres e Estrasburgo. Foi ainda docente do ensino superior e director de uma agência de comunicação. Actualmente é assessor do Ministro dos Assuntos Parlamentares e escreve na imprensa sobre assuntos europeus. Tem trabalhos publicados na área dos estudos europeus e, em 2004, pelo seu livro "Modelos de Legitimação da União Europeia" recebeu o Prémio Jacques Delors para melhor estudo académico sobre temas comunitários. 

Miguel Morgado é doutorado em Ciência Política, ensina História do Pensamento Político e Ciência Política no Instituto de Estudos Políticos da Universidade Católica. É também professor visitante da Universidade de Toronto. Em 2010, escreveu o ensaio "Autoridade", que a Fundação Manuel dos Santos incluiu na colecção que tem vindo a publicar. 

Rui Tavares é deputado no Parlamento Europeu, historiador especialista em história e cultura do século XVIII,  escritor, tradutor e colunista na imprensa. 

Miguel Poiares Maduro é Professor no Instituto Universitário Europeu (UIE) de Florença, Professor Convidado da Yale Law School, docente na Universidade Nova de Lisboa, leccionou na University of Chicago Law e na London School of Economics e foi investigador convidado em Harvard. Advogou no Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias. Tem uma comenda da Ordem de Santiago da Espada por mérito literário científico e artístico, venceu o Rowe and Maw Prize e a sua tese de doutoramento valeu-lhe o prémio Objettivo Europa. Em 2006 publicou “A Constituição Plural - Constitucionalismo e União Europeia”.»

domingo, 4 de dezembro de 2011

Uma questão de escala (I)

As comunidades consistem em indivíduos que estabelecem relações uns com os outros, criando uma rede relacional mais ou menos apertada que evolui através da interacção desses mesmos indivíduos. A escala a que estas relações se podem estabelecer é ditada pela tecnologia de comunicação e transporte a que os vários indivíduos têm acesso. A escala será maior ou menor consoante a capacidade que estes tenham de utilizar tecnologia que lhes permita realizar esse mesmo intercâmbio.

O acesso à Internet permite aos indivíduos terem acesso a uma quantidade fenomenal de informação e, também, manterem relações virtuais com outros indivíduos espalhados um pouco por todo o mundo. Por outro lado, a existência de aviões, navios, comboios e automóveis com a capacidade de se descolarem a velocidades cada vez mais elevadas de forma segura significa uma cada vez maior capacidade de nos encontrarmos, presencialmente, em espaços físicos cada vez mais longínquos daqueles em que nascemos.

Mas mais: a própria existência de telemóveis veio fortalecer a capacidade que temos de interagir mesmo com aqueles que nos são mais próximos. Estamos sempre contactáveis, sempre com capacidade de contactar alguém, quer esse alguém esteja próximo ou do outro lado do mundo. Caso seja necessário, podemos usar um meio de transporte adequado para chegarmos, fisicamente, a essa pessoa. E como se isso não bastasse, temos cada vez mais acesso a informação imediata e no preciso instante em que a queiramos.

O acesso a estas tecnologias e a sua efectiva utilização tem um impacto importante na forma de pensar e de agir dos indivíduos. Um indivíduo que tenha acesso a toda esta tecnologia viverá num mundo diferente de um indivíduo que não tenha acesso a esta tecnologia. O primeiro tem o intercâmbio cultural potenciado pelas tecnologias a que tem acesso, tendo ainda a hipótese de pertencer a uma quantidade incrível de comunidades, mais ou menos virtuais, consoante as suas preferências. O segundo, pelo contrário, terá mais tendência a conhecer a comunidade em que nasceu e, no limite, pouco mais.

De qualquer forma, o facto de existirem estas tecnologias e haver quem lhes tenha acesso significa que as tais comunidades, mais ou menos virtuais, que vão de fóruns na Internet ao «World of Warcraft» ou ao «Second Life», vão surgindo e criando as suas próprias instituições formais e formais. E, de novo, cada indivíduo terá acesso às comunidades que desejar, limitado apenas por si próprio e pelas suas preferências. Terá também acesso a mais informação sobre outras comunidades, potenciando todos os tipos de intercâmbio, que vão do intercâmbio cultural e de ideias ao intercâmbio comercial.

As novas comunidades que vão surgindo são, claro, influenciadas decisivamente pelas preferências de quem as vai formando, o que inclui toda a «bagagem» cultural das comunidades de que esses indivíduos provêm e, principalmente, todas as suas idiossincrasias pessoais. Vão ser mais ou menos homogéneas. Vão ser mais ou menos centralizadas na sua gestão. Mas vão agregar pessoas que, geograficamente, provêm de um pouco por todo o mundo. E a rede dessas comunidades vai juntar-se à rede já existente.

A forma cosmopolita de lidar com este fenómeno é a aceitação e promoção do mesmo. Fomentar o relacionamento pacífico entre indivíduos de todo o mundo é uma forma importante de fomentar a paz e de enfraquecer a distinção nacionalista entre «nós» e os «outros». Não que seja uma panaceia que acaba pura e simplesmente com o conflito, claro, mas que facilitar a compreensão mútua e diminuir o desconhecimento mútuo (factor importante no fomento do medo do «outro») ajuda a diminuir tensões acho que ninguém duvida muito.

Por outro lado, este fenómeno pode gerar sentimentos de revolta e de entrincheiramento. A globalização e o poder que dá ao indivíduo para escolher os seus próprios valores serão vistos como um atentado à importância das tradições culturais ancestrais ou à organização comunitária a um nível mais local, o que levaria a uma forte resistência à mudança e à globalização e à criação de mais e mais barreiras para tentar impedir que a escala a que as coisas funcionam fique fora do nosso alcance, do nosso controlo e da nossa compreensão.

Parece-me, no entanto, que ou temos retrocesso tecnológico, ou teremos de aceitar, de facto, que a escala a que operamos deixou de ser a escala do séc. XVIII ou do séc. XIX. O mundo em que hoje vivemos está globalizado e a evolução tecnológica terá como efeito torná-lo mais globalizado e não menos. Não acredito, também, que a melhor forma de defender uma cultura que prezemos seja cortar-lhe o acesso a outras culturas. Penso exactamente o contrário: devemos dar a essa cultura a possibilidade de contribuir para o diálogo intercultural a nível global.

Finalmente, não devemos ter medo da complexidade. A evolução das comunidades humanas sempre foi um fenómeno bem complexo em que a interacção entre o indivíduo e os outros indivíduos que formam a comunidade e a interacção das instituições formais e informais de certa comunidade com o indivíduo são complicadas de definir e de explicar com rigor matemático. O facto de vivermos num mundo global deve ser encarado como uma oportunidade a aproveitar, não como algo a temer.

sábado, 3 de dezembro de 2011

Curtas numa noite de Inverno

1. Enquanto a grande preocupação com o Ministro da Economia e Emprego for com ele aparecer ou não o suficiente nas notícias, não vamos a lado nenhum. E enquanto acharmos que o Ministro da Economia «manda» na economia portuguesa e a muda por decreto também não. A economia portuguesa se muda por decreto, com crescimento sustentável a ser criado por lei, mas sim com mais empreendedorismo e maior capacidade de assumir riscos e apostar em novas ideias da parte dos privados. O que deve fazer o Ministro? Acabar com barreiras a que isso aconteça, promovendo uma reforma de cima a baixo da legislação laboral e da legislação relativa ao arrendamento.

2. Os constantes encontros entre França e Alemanha para discutir o futuro da União Europeia têm essencialmente servido para nos trazer propostas coxas que não resolvem os problemas de fundo e causam apenas mais instabilidade, além de que os encontros bilaterais apenas servem de achas para a fogueira do eurocepticismo em países que não sejam a França ou a Alemanha. Mas infelizmente, a Comissão Europeia anda demasiado apanhada por ideias relativas a «impostos sobre as transacções» para dar um contributo mais relevante para o debate sobre o futuro da União Europeia.

3. O Parlamento Europeu é sistematicamente ignorado pela comunicação social apesar da sua importância no actual desenho institucional da União Europeia, especialmente pós-Tratado de Lisboa. Curiosamente, depois, a população em geral tende a considerar o Parlamento Europeu como sendo pouco relevante. Seria importante que começasse a ser dada ao Parlamento Europeu a relevância que deve ter. Afinal, é suposto é a comunicação social manter a população informada de temas relevantes para a sua vida em comunidade, e o que acontece no Parlamento Europeu tem influência muitíssimo relevante (basta ver o que aconteceu ao Acordo SWIFT).

4. A Croácia vai aderir à União Europeia no dia 1 de Julho de 2013. Numa altura em que alguns se parecem esquecer daquilo que a União Europeia nos trás, ou então dar as várias liberdades europeias por garantidas, é importante lembrar que o ideal europeu pode facilmente ser consumido pelas chamas do nacionalismo e do populismo se esta crise se agudizar e os europeístas não tentarem, pelo menos, participar de forma dinâmica no debate público sobre o futuro da União Europeia.

5. Eu não sou daqueles que acham que milagrosamente se conseguiria reproduzir os benefícios da União Europeia sem esta e penso que está na altura de dar um passo em frente. Mas para que esse passo em frente seja um passo sólido, é preciso que haja um debate público europeu sobre o tema que vá para além das meras tricas nacionalistas costumeiras. Infelizmente, a comunicação social e a liderança política dos Estados Membros não parece estar para aí virada e os grupos federalistas não têm ainda voz relevante. É urgente que fortaleçam a sua voz.

segunda-feira, 28 de novembro de 2011

Todos somos estrangeiros



O conceito de «nação» impregna o nosso debate político. Os seres humanos são divididos de acordo com tradições culturais «comuns» e assim divididos em «nações».

Cada «nação» tem os seus mitos. Em Portugal, ligamos os portugueses aos lusitanos, por exemplo, e elementos da nossa História são depurados e transformados em histórias que servem para afirmar as características intrínsecas do «povo português».

A noção de que cada «nação» deve ter o seu «Estado» vê-se também em todo o lado como um ideal a atingir. Assim, cada conjunto de seres humanos culturalmente homogéneo deve gerir-se a si próprio. É nisto que redunda a «auto-determinação dos povos».

E assim surge o mito do «Estado-Nação», cujo objectivo último é «proteger» os seus membros e defendê-los dos outros. Esses «outros» são, claro, os «estrangeiros». E a vivência humana reduz-se a um confronto entre os «nacionais» e os «estrangeiros» por riqueza.

Nesta concepção do mundo, há uma guerra permanente e a paz é algo de estranho. Afinal, para que os «nacionais» tenham algum coisa, os «estrangeiros» têm de a perder, e «vice-versa». As diferenças entre estes grupos são inultrapassáveis e portanto conduzem inevitavelmente ao conflito.

Nesta visão do mundo não há grande lugar para os indivíduos enquanto tal. Estes são consumidos pela «nação» e pelo «Estado» que a suporta. São peões no grande confronto entre «nações» que ocorre a uma escala mais ou menos global.

Mas mesmo nesta visão do mundo, em que todos os seres humanos são considerados intrinsecamente diferentes por questões culturais, há algo que os une a todos: todos são «estrangeiros». Para um americano, um português é «estrangeiro». Para um português, é o americano que é «estrangeiro».

Não subscrevo esta visão do mundo que divide os seres humanos desta forma. Mais: considero o Estado Nação (e outros parecidos) um ideal nocivo, que gera, ele próprio, conflitos. Porque é um conceito que nos faz esquecer que, no fundo, todos temos algo que nos une, mesmo que seja sermos «estrangeiros».

Mas mais do que isso, o conceito de «Estado Nação» é profundamente anti-individualista e «standardiza» os indivíduos, agrupando-os de forma estanque, e colocando acima de tudo um conjunto de tradições idealizadas e não a possibilidade de cada um se definir a si próprio. É um conceito que ignora a forma orgânica como estabelecemos relações uns com os outros, independentemente da «nação» a que supostamente pertençamos.

Ontologicamente, todos os seres humanos são iguais em dignidade. E por serem todos iguais em dignidade, as diferenças que os definem enquanto indivíduos devem ser respeitadas. Cada indivíduo deve ser o mais livre possível de viver de acordo com as suas preferências e de estabelecer relações com quem bem entender.

A função do Estado não deve ser proteger um conceito abstracto de «nação», mas sim a liberdade individual de cada um dentro de uma certa comunidade. Esta liberdade deve, em particular, ser garantida a nível global, permitindo que cada um de nós estabeleça relações com quem quiser e seja parte das comunidades que quiser.

Ao Estado-Nação e à noção do «nós contra os outros» vem muitas vezes associado proteccionismo de várias estirpes, defendido para que «nós» enriqueçamos. O passo seguinte varia: ou simplesmente enriquecemos e os outros empobrecem, ou então temos de subsidiar outros «povos» mais pobres.

Eu não penso em «nós contra os outros». Sou, claro, acusado de ser «ingénuo», de não saber como funciona o mundo, de não ser «patriota». Acusações que me passam ao lado. No fim de contas, o que eu penso é que são as políticas proteccionistas que causam empobrecimento e nível global e um sem número de conflitos, não o livre comércio.

Mais: apesar de sistematicamente se acusar os liberais de promoverem o egoísmo (geralmente confundindo «egoísmo» com «individualismo»), a verdade é que eu defendo que quem vivem em África ou na América Latina deve ter a mesma hipótese de enriquecer que eu e quero implementar políticas nesse sentido, quem me chama egoísta acha que isso não é nada com ele e que os «outros» é que têm de fazer pela vida (através de medidas proteccionistas e estatistas, geralmente, claro).

Enquanto eu defendo cooperação a nível global fomentada pela existência de fácil intercâmbio comercial e cultural, outros ou defendem o conflito ou então «cooperação» através de enormes barreiras. Auto-proclamam-se «realistas», o truque habitual de quem quer apresentar as suas opiniões em algo de objectivo, e chamam-me «idealista», como se isso fosse um insulto.

Pois bem, eu sou um idealista. Um idealista pragmático. Não me escondo atrás de um manto de fingida objectividade, confundindo as minhas ideias com a realidade, ou confundindo o «ser» com o «dever ser».

Não tenho também ilusões de que o meu ideal nunca será atingido. Afinal, é um ideal. Mas isso nunca me impedirá de me bater por ele. Por muito ridículo que possa parecer.

domingo, 27 de novembro de 2011

Todos somos políticos

Numa democracia liberal, todos somos políticos. Não somos todos profissionais da política, mas todos somos políticos. Cada um de nós, individualmente, enquanto cidadão, é chamado a participar no debate público e no processo de tomada de decisão público. Esse chamamento inclui o direito de voto mas vai para além dele. Inclui o exercício de muitos outros direitos e encontra-se assente na garantia da liberdade de pensamento.

Cada um de nós, enquanto cidadão, é um político, que toma decisões que afectam a nossa vida em comunidade. A simples decisão de não ir votar e não participar activamente no debate público é uma escolha política. A simples decisão de não prestar atenção ao que se passa é também ela uma escolha política. E escolher participar mais activamente, mesmo que fora de um partido político, é uma escolha política.

Cada um de nós assumir o nosso dever cívico de prestar atenção à política, de não a deixar aos «outros», aos «políticos profissionais», é dar força à nossa democracia. Uma sociedade civil organizada profissional, forte e consequente serviria não apenas para fortalecer o nosso debate público como também para resolver outros problemas que nos afectam enquanto comunidade

Em vez de nos queixarmos simplesmente, podemos entrar num partido político ou fundar um novo partido político. Os partidos políticos mais não são do que associações políticas às quais a nossa Constituição confere alguns poderes específicos, mormente no que toca a eleições. Ao querer que movimentos de cidadãos possam participar em eleições, aquilo que se está a defender, na prática, é que se facilite a criação de novos partidos políticos e que se facilite a participação em eleições.

Concordo com a ideia de que é preciso facilitar a capacidade das pessoas de intervirem politicamente no nosso debate público. Mas para começar, seria importante que elas aprendessem a utilizar os meios que já existem e que não se demitissem de propor soluções para os problemas que nos afligem. Não faz sentido acusar os políticos profissionais de não serem bons o suficiente mas depois simplesmente exigir que sejam «eles» a resolver os problemas. Também nos compete a nós, enquanto cidadãos, procurar possíveis soluções e promovê-las.

Todos somos políticos e isso não significa apenas direitos, significa também deveres. Aliás, as democracias liberais são regimes exigentes, porque exigem cultura democrática e capacidade de intervenção por parte dos cidadãos. Exigem debate público e a aceitação de pluralismo ideológico. Exigem muito mais do que regimes em que um autocrata qualquer decide e quem se opuser é simplesmente morto. Mas é precisamente por serem exigentes que as democracias liberais devem ser preservadas.

Numa altura em que vemos as atrocidades que são cometidas contra revoltosos que apenas exigem direitos que já nos são garantidos, devemos tentar fortalecer esses mesmos direitos. E isso faz-se, principalmente, exercendo-os de forma substantiva e consequente. Faz-se sendo exigente com o Parlamento e com o Governo, sendo exigente com todos os partidos, exigindo que o debate público seja mais que gritarias de parte a parte.

Essa é parte da nossa responsabilidade política neste regime: sermos exigentes. Porque se não formos, ninguém será por nós. E seremos nós a sofrer as consequências.

Braços de ferro europeus

Enquanto a União Europeia continuar a ter debates assentes na ideia de que esta crise se resolve através de uma luta entre os seus Estados Membros e em que as soluções devem ser adoptadas por auxiliarem os Estados Membros individualmente considerados, não vamos lá. Enquanto cada solução for apresentada e defendida por resolver o problema de quem a propõe, sendo que «os outros» ou «a outra» a têm ou a tem de aceitar «porque sim» não vamos lá.

É preciso que os constantes braços de ferro sejam substituídos por espírito de compromisso e que estivesse a ter lugar um verdadeiro debate europeu sobre o futuro da União Europeia. Um debate que não assentasse em mitos e distorções de ambos os lados e em que os argumentos a favor e contra a soberania nacional fossem passados a pente fino. Mas tendo em conta que a maior parte da população não sabe sequer como funciona a União Europeia actualmente, isto torna-se quase impossível.

A actual crise na União Europeia torna-se muito mais difícil de resolver porque o debate europeu se tem mantido longe da população em geral, até mesmo mais que o debate político em geral. Nas eleições europeias fala-se de assuntos «nacionais» e quem concorre são os partidos «nacionais», apesar de já existirem partidos europeus. Os noticiários (em Portugal, mas imagino que em geral) tratam o que se passa no Parlamento Europeu de forma secundária e focam-se no Conselho.

A Comissão agora retomou a iniciativa, com propostas relativas a impostos sobre transacções financeiras e «eurobonds». Da Alemanha ouvem-se propostas sobre uma união fiscal (também com a França e com o novo Governo italiano de Mario Monti). Penso que as propostas sobre «eurobonds» e sobre união fiscal se complementam e fazem ambas parte do debate mais alargado sobre a federalização da União Europeia. Mas enquanto todo o debate for visto como um braço de ferro entre diversos Estados Membros, em que alguns perdem para outros ganhar, a capacidade de compromisso entre as várias posições diminui.

E diminuindo a capacidade de compromisso por, na minha opinião, haver falta de visão estratégica para a União Europeia, ficamos presos a jogos posicionais que reflectem, à escala europeia, os jogos posicionais de política pura que temos (infelizmente) de aturar em Portugal. Claro que há quem tenha essa visão estratégica para a Europa (ver também, e principalmente, aqui). Também há quem tenha uma visão diferente, mais confederalista, e que a articule de forma intelectualmente honesta.

É esse debate que temos de ter, a uma escala europeia. O «Novo Rumo» de Mário Soares e Cia., certamente inspirado pela «bridge to nowhere» do Alaska, é apenas mais do mesmo e não apresenta quaisquer alternativas concretas, além de passar ao lado do essencial (pelo menos, do que me parece essencial). E aqueles que vão defendendo «soluções» insultando o lado contrário e assentando a sua posição na defesa intransigente de «interesses nacionais» em muito pouco ajudam a que o problema se resolva.

A verdadeira vencedora da continuação dos braços de ferro europeus é a crise, que se vai aprofundando. Enquanto não houver verdadeira consciência disso, não vamos sair da espiral de crise em que nos encontramos.

sábado, 26 de novembro de 2011

Acumular dívida faz mal à saúde

Acumular dívida de forma insustentável é um problema. Havia regras a cumprir para tentar garantir estabilidade e crescimento, mas ninguém as levou muito a sério. Hoje vivemos o resultado, em Portugal e na União Europeia.

Não é política liberal, nem nunca foi, a existência de défices sistemáticos que resultam num escalar de dívida. Qualquer liberal exigirá as contas públicas em ordem e exigirá que as gerações futuras não sejam constantemente oneradas com decisões sobre as quais não foram ouvidas (nem poderiam alguma vez ter sido).

Os constantes défices, que resultam numa dívida sempre a crescer até se tornar insustentável, vêm da ideia de que as gerações futuras estarão sistematicamente melhores do que nós por causa dos magníficos investimentos que vão sendo feitos e que portanto terão sempre maior capacidade de aguentar os encargos maiores que resultam deste tipo de políticas (leia-se: mais impostos).

Mais: este tipo de políticas de endividamento constante são defendidas precisamente por aqueles que depois culpam quem emprestou o dinheiro pela espiral de dívida com a qual nos fomos sufocando. Na prática, e em resumo, o argumento dos «fluxos de capital» terem sido excessivos significa, trocado por miúdos, que houve demasiado investimento em Portugal e que nós não aguentámos.

Curiosamente, nos tempos das vacas gordas, ninguém ligou nada a isso. Quem falasse de problemas com encargos futuros era considerado contra o progresso. Agora que os estamos a pagar, é quem nos emprestou o dinheiro que é contra o progresso. Os únicos que não são contra o progresso são aqueles que tomam a decisão de pedir dinheiro emprestado, pelos vistos.

Em Portugal, conjugámos uma política de endividamento constante com um mercado inflexível, baixa produtividade e baixo nível de qualificação. Tivemos vários anos para ir, gradualmente, reformando a nossa política económica e décadas para melhorar, bastante mais, o nosso nível de instrução. Mas não fizemos nem verdadeiras reformas da nossa política económica, nem conseguimos melhorar suficientemente o nosso nível de instrução.

Agora, no meio de uma profunda crise, estamos a fazer todos os ajustamentos ao mesmo tempo. É nisto, em grande medida, que dá o acumular constante de dívida sem pensar que um dia se vai ter de pagar de volta, e gastar dinheiro em investimentos público de rentabilidade (qualquer tipo) dúbia. Mas claro, para alguns, a culpa é dos outros, nunca nossa.

Esta crise serviu para lembrar algo que os liberais sempre defenderam: que acumular dívida de forma insustentável faz mal à saúde. Serviu também para lembrar que incentivar o consumo desenfreado não é sustentável e tem efeitos perniciosos. E com esta crise, chegou o momento de deixarmos de acumular dívida e incentivar o consumo da forma que temos feito e um ajustamento penoso, muito penoso.

Felizmente, parece que muita gente em Portugal não vai na conversa da vitimização e em teorias da conspiração. Mas infelizmente, parece que ao nível da União Europeia, não tem havido coragem para tomar medidas que resolvam o cerne do problema institucional que vivemos na União Europeia neste momento. E portanto, a juntar-se aos nossos problemas nacionais estruturais, temos problemas estruturais europeus que também precisam de resolução para conseguirmos ultrapassar a crise.


sexta-feira, 25 de novembro de 2011

União fiscal e títulos de dívida europeia

A Alemanha (e não só) tem andado a falar de criar uma união fiscal na União Europeia. Pessoalmente, defendo a criação de impostos europeus que sejam a principal fonte de financiamento da União Europeia e penso que parte da solução dos problemas que vivemos actualmente passa por aí. Pela existência de um Orçamento europeu verdadeiramente europeu e que vai buscar as suas receitas directamente aos cidadãos europeus, sem intermediação dos Estados Membros.

Penso que criar um verdadeiro Ministério das Finanças europeu, que não servisse para coordenar ou dirigir os Ministérios das Finanças dos Estados Membros, mas sim para preparar um Orçamento europeu para apresentar a um Senado Europeu (directamente eleito pelos cidadãos europeus) e ao Parlamento Europeu para aprovação simplificaria enormemente o actual processo orçamental e torná-lo-ia também mais transparente.

Os impostos europeus como principal fonte de financiamento da UE teriam o mesmo efeito, pois os cidadãos passariam a conseguir mais facilmente verificar quanto pagam pela UE. Penso ainda que o pagamento de impostos directamente à UE ajudaria a aproximar os cidadãos da própria UE, dado que deixariam de existir os actuais intermediários. Nesse momento, o cidadão europeu saberia que estava a contribuir directamente para o financiamento da UE. Parece-me que isto ajudaria a que as pessoas se sentissem parte da UE enquanto tal.

Isto porque seriam verdadeiramente tratadas como cidadãs europeias. Deixaria de existir a espécie de «coeficiente de Estado» que existe hoje, em que alguns Estados contribuem mais e outros menos com base no seu estatuto enquanto Estado. O que passaria a ser relevante seria a pessoa enquanto tal, individualmente considerada. E isto é necessário se quisermos uma União Europeia mais democrática e uma União Europeia mais focada nos cidadãos e menos nos Estados.

A União Europeia passaria a ter de apelar directamente aos cidadãos europeus, sem intermediários, e as suas instituições teriam maior capacidade para se imunizar contra influência indevida de certos Estados. Afinal, o poder passaria a residir mais directamente nos cidadãos e nas instituições europeias enquanto tal, principalmente aquelas que os representassem directamente (Parlamento Europeu e Senado Europeu).

Diga-se, aliás, que a união fiscal é uma condição necessária para que seja possível emitir, de forma razoável, «eurobonds». Aliás, assim seria possível emitir «verdadeiros» «eurobonds»: títulos de dívida europeia de uma União Europeia federal. E a ser emitida dívida europeia, eu defendo que esta deve ser constitucionalmente limitada, em moldes similares às regras que hoje existem na Zona Euro.

Uma verdadeira federação europeia com o verdadeiro Orçamento europeu e impostos europeus seria bem mais transparente do que o actual sistema e aproximaria a União Europeia dos cidadãos europeus, dado que estes passariam a ser tratados enquanto tal e teriam maior capacidade de «sentir» o seu contributo para a União Europeia. O que os tornaria mais capazes de lhe pedir prestação de contas. E tornaria ainda a União Europeia capaz de emitir dívida (com a regra que eu mencionei, de preferência).

Passa por aqui, na minha opinião, parte da solução para a crise das dívidas soberanas. Não basta falar de «eurobonds» ou de «uniões fiscais». É preciso redesenhar o desenho institucional da UE e conferir-lhe os recursos próprios necessários para que se autonomize dos Estados e se aproxime dos cidadãos.

P.S. Recomendo a leitura deste texto da eurodeputada neerlandesa da ALDE Sophie in't Veld: An Alliance for Europe.

quinta-feira, 24 de novembro de 2011

Racionalidade, Reciprocidade, Empreendedorismo

Ser racional, tentar maximizar a nossa utilidade e viver de acordo com os nossos interesses não são o mesmo que ignorar por completo os outros que nos rodeiam. O conceito de racionalidade económica e mesmo o conceito de egoísmo quando encarado neste sentido não é minimamente incompatível com o conceito de reciprocidade. Haverá alturas, muitas alturas, em que nós consideramos que é do nosso interesse ajudar os outros, tanto porque os outros depois nos tenderão a ajudar também a nós, como também por simplesmente nos sentirmos bem em ajudá-os e considerarmos ajudá-los um bem em si mesmo.

Não é de todo surpreendente, aliás, que haja comportamentos altruístas. A capacidade de ajudar os outros, de sentir empatia, de ser solidário com quem tem problemas é a base de uma qualquer comunidade sólida. É essa capacidade que gera entre-ajuda nos membros da comunidade e essa cooperação é perfeitamente racional economicamente, da mesma forma que a concorrência o será. E será ainda importante notar que nada disto coloca em causa o individualismo e a capacidade dos indivíduos se afirmarem enquanto seres específicos, irrepetíveis e autónomos.

É importante lembrar tudo isto num país em que o Estado é excessivamente visto como uma simples fonte de subsídios. É importante lembrar tudo isto perante quem tenha preconceitos contra quem ridicularize a filantropia ou a caridade, imputando más intenções a quem as pratique (geralmente por serem «ricos» e portanto, por definição, de acordo com essas pessoas, serem cínicos e incapazes de sentir verdadeira empatia). É fundamentalmente importante lembrar que a sociedade civil tem um papel importante a desempenhar em situações de crise e que essa função não se resume a organizar pessoas que queiram receber subsídios e, portanto, servir de intermediários entre o Estado e o resto da população.

O que é fundamental no que toca à solidariedade é a capacidade de cada um de nós sentir que existe mais no mundo além do nosso umbigo e que é nosso dever ajudar quem precisa. É este sentimento, é esta cultura solidária que cria comunidades sólidas. Se a esta sentimento acrescer outro, o sentido de que devemos procurar, o mais possível, resolver os nossos problemas de forma autónoma, teremos uma comunidade em que os seus membros tentam resolver os seus problemas «de baixo para cima»: primeiro tentam resolver por si, se não conseguirem falam com vizinho(s), se não der falam com a associação de moradores ou com a junta e aí por diante.

Ao invés, não teremos uma comunidade em que as pessoas tentam resolver problemas que poderiam tentar resolver sozinhas através de uma petição ao Governo ou ao Presidente da República. Uma comunidade na qual se começa a tentar resolver os problemas por cima, em vez de por baixo, e em que as pessoas não confiam umas nas outras o suficiente para pedir ajuda. Depois, ironicamente, também não confiam no Estado e nos políticos (mais ou menos profissionais), a quem, no entanto, exigem a resolução de todos os problemas e mais alguns.

Parte da resolução dos problemas que atravessamos passa por as pessoas tentarem resolver os seus problemas por si e sentirem que têm pessoas à sua volta em quem confiam no caso de precisarem de ajuda, independentemente do Estado central ou de instituições públicas em geral. Se cada um de nós tentar resolver os seus problemas por si, ajudando no que pode os outros a resolverem os deles, menos imputaremos ao Estado e às instituições públicas, que se poderão, então, focar na resolução de problemas que, de facto, seja muito mais eficiente resolver a essa escala.

Criar empregos bem remunerados e aumentar a produtividade do país passa também por aqui. Precisamos de empresas que apostem na formação e na qualificação dos colaboradores, bem como em salários razoáveis para atrair os melhores e conseguir mantê-los, e que valorizem o «know how» como um activo precioso. Precisamos de gente que esteja disposta a sair da sua zona de conforto e de arriscar, independentemente da existência de subsídios estatais e de deixar que essa gente seja capaz de o fazer sem primeiro sufocar em regulamentos desnecessários e impostos.

Tudo isto, parece-me, já existe em Portugal, embora não corresponda ao estereótipo a que nos fomos habituando de Portugal. Acontece que estas pessoas estão demasiado ocupadas a inovar e a trabalhar para terem tempo de aparecer constantemente na comunicação social. Mesmo assim, vamos tendo notícias de bons exemplos em Portugal. São as «pessoas completamente loucas» de que o Hugo Garcia já aqui falou. É muito por essas pessoas que, parece-me, passa o futuro desenvolvimento económico português, aquele que poderá aos poucos ir substituindo a crise em que vivemos (e que irá perdurar). Se lhes retirarmos barreiras e deixarmos explorar todo o seu potencial, quem sabe o nível de progresso que atingiremos?


quarta-feira, 23 de novembro de 2011

Breves apontamentos económicos

Queria falar de Economia sem me alongar muito, pelo que decidi deixar aqui alguns tópicos que incentivem o pensamento sobre o tema. São temas sobre os quais gostaria, se tiver tempo, de escrever mais, mas por agora ficam estes breves apontamentos.

1. A Economia é uma ciência comportamental (veja-se a recente aproximação entre a Economia a Psicologia).

2. A Economia não é uma disciplina normativa.

3. A Economia não é uma ideologia.

4. A Economia não é uma Religião, repleta de dogmas impossíveis de testar empiricamente ou que não possam ser questionados.

5. A Economia não é a Política e não é o mesmo que Política Económica.

6. A Economia não se resume às Finanças.

7. A Economia não é a Moral.

8. A Economia e o Direito não são inimigos.

9. A Economia e a Sociologia não são inimigas.

10. Os mercados financeiros incluem toda a gente que neles participa, incluindo, só por exemplo, toda a gente que tenha um depósito num banco.

11. O mercado, genericamente, inclui-nos a todos, quer enquanto produtores, quer enquanto consumidores de bens e serviços.

12. A Economia, enquanto ciência comportamental, e não sendo uma disciplina normativa, é neutra em relação à relação entre «mercado» e «Estado».

Ficam estes doze pontos como convite à reflexão sobre a natureza da Economia e sobre a sua relação outras áreas. Tema que pode parecer esotérico mas que me parece bastante importante. Saber Economia, ou Direito, ou Sociologia, começa por saber o que é, e o que não é, a área do saber em causa. Sabendo isto, consegue-se verdadeiramente perceber o resto. Sem isso, nada feito.

Mas é relevante ainda por outro motivo. A forma como delimitamos a Economia tem impacto na forma como encaramos a Economia e permite-nos aplicar melhor aquilo que aprendemos com ela. Expressões muito usadas por cá, como «economicista» ou «economês», mais do que críticas à Economia, tendem a revelar, parece-me, um profundo grau de iliteracia económica em Portugal. Iliteracia económica essa que, tal como todas as outras formas de iliteracia, urge diminuir drasticamente. 

E essa redução começa, precisamente, por explicar o que é a Economia e para que serve. De forma a parar com as constantes confusões.

terça-feira, 22 de novembro de 2011

Empobrecimento e Inflação

O Primeiro-Ministro anunciou o óbvio: Portugal vai empobrecer, de forma relativa, como consequência da crise. O Líder da Oposição decidiu criticar o Primeiro-Ministro.

O Governo apresentou na sua proposta de Orçamento para 2012 um corte volumoso em salários de funcionários públicos e em pensões. O Líder da Oposição, mais uma vez, decidiu criticar os cortes, aproveitando a deixa do Presidente da República, que lhes chamou um «imposto».

Eu gostaria de falar do empobrecimento gerado pelo «imposto», bastante regressivo (leia-se, que afecta com particular gravidade os mais pobres), que o Líder da Oposição defende ser a «solução» da crise: a inflação.

Aumentos da inflação geram diminuição de poder de compra. Penalizam quem trabalha e quem poupa porque desvalorizam o dinheiro que essas pessoas recebem. Em particular, penaliza especialmente os mais pobres que trabalham e que poupam, dado que são estes que têm menos dinheiro logo à partida.

Quem beneficia com a inflação? Quem tem dívidas: porque o valor da sua dívida, mantendo-se nominalmente o mesmo, em termos reais baixou. Particularmente, beneficia da inflação quem deve e não quer verdadeiramente pagar a sua dívida.

Os EUA têm sido mestres nesta política de inflacionar o dólar para pagar a sua dívida e esse tipo de actuação tem sido tolerado porque o dólar é a moeda de reserva mundial por excelência. Mas a China, grande credor dos EUA, já tornou claro que não vê este comportamento com bons olhos, e os níveis de dívida americanos explodiram de tal maneira que os EUA vão mesmo ser forçados a fazer reformas estruturais.

Até nos EUA, portanto, esta «solução» já não funciona muito bem, mas António José Seguro quer importá-la para a área do euro. Isto apesar da dita «solução» não resolver problema estrutural nenhum da economia portuguesa (ou europeia), retirar um incentivo para aumentar o nível produtividade da nossa economia que neste momento existe e que já tem dado frutos e tem subjacente a lógica de Portugal como um país de salários baixos e empresas de baixo valor acrescentado que ainda torna a economia portuguesa pouco competitiva.

Pior ainda é a forma como António José Seguro defende as suas políticas inflacionistas de «imprimir dinheiro»: diz que são «boas para Portugal». Além das políticas não serem «boas para Portugal», o pendor nacionalista deste tipo de argumentação não devia ter lugar no debate sobre uma moeda que não é só portuguesa. Em nada ajuda o euro que líderes políticos andem a tratá-lo como brinquedo no jogo político nacional, tal como em nada ajuda a construção europeia que problemas europeus sejam tratados sob o prisma da competição nacionalista.

Em resumo, António José Seguro propõe que a saída da crise se faça através da perda de poder de compra de quem trabalha e de quem poupa e através de uma medida que iria ter um impacto particularmente negativo junto dos mais pobres que trabalhem e que poupem. Depois vem criticar o Governo por falar abertamente no empobrecimento do país. E apenas pode fazê-lo de forma tão leviana porque o nível de iliteracia económica em Portugal é tal que ninguém o confronta com isto.

segunda-feira, 21 de novembro de 2011

Pensamentos soltos numa noite fria

1. Dizer que o Governo escolheu cortar fortemente os salários de funcionários públicos por os funcionários públicos não serem a sua base eleitoral é pensar que uma medida extremamente impopular como esta, num país em que toda a gente tem vários funcionários públicos na família ou entre os seus amigos e conhecidos, é tomada com base em cálculo eleitoral poucos meses após eleições e com as próximas eleições ainda a alguma distância. Mas é deste tipo de juízo de intenção que se vai fazendo muito do debate sobre o Orçamento do Estado de 2012.

2. Aliás, este tipo de argumentação com base em juízo de intenção, de ataque «ad hominem», é típica do debate político em Portugal, que se pauta por um nível muito baixo. Raramente se discutem propostas. Discute-se sempre quem as tomou, as segundas intenções que poderão estar por trás de cada decisão e, de vez em quando, carpem-se mágoas pelo terror que é a «ideologia», essa coisa horrível que cega quem toma decisões e os leva a ignorar «as pessoas» (ignorando-se, claro, que todos temos ideologia).

3. É muito fácil escrever meia dúzia de parágrafos a dizer que o Orçamento é terrível, que é iníquo, que declara guerra a funcionários públicos e pensionistas. É ainda mais fácil «surfar» essa onda com propostas do tipo as que o PS tem feito, com base numa suposta folga orçamental que a Troika não encontrou em lado nenhum, mas que o PS nos assegura que existe. Ou propor impostos sobre o luxo. Aliás, parece ser muito fácil propor aumentos de impostos, mas não cortes na despesa, quer da parte da Oposição, quer da parte do Governo.

4. E enquanto tudo isto acontece, há uma crise das dívidas soberanas na Europa que não tem gerado o debate que devia: um verdadeiro debate sobre uma federação europeia (ver aqui ou aqui). As meias decisões vão sendo tomadas, os alemães e os gregos vão sendo insultados, a legitimidade dos próprios Parlamentos vai sendo posta em causa por «indignados», mas um debate público sólido sobre o projecto europeu é algo que não existe.

5. Temos uma crise económica e financeira, a que se junta uma crise social e política, de resolução difícil e que está a levar ao limite todas as instituições que criámos para lidar com estas crises, quer cá na Europa, quer nos próprios Estados Unidos (onde as guerras entre o Presidente e o Congresso, e dentro do próprio Congresso, ajudaram bastante à primeira descida na notação da dívida soberana dos EUA de sempre). Uma crise em que todos saímos prejudicados e da qual sairíamos ainda mais prejudicados se se preferir a via da teoria da conspiração em vez de pensar na interligação que existe entre a Europa e os EUA.

6. No fim de contas, para ultrapassar a crise penso que teremos de aceitar que há problemas em várias escalas e que é preciso começarmos a resolver esses problemas na escala adequada. Enquanto continuarmos a pensar que é cada um por si, não vamos lá. Pior do que isso: enquanto continuarmos a pensar que a escala de hoje é a escala do séc. XIX e dos seus mitos nacionalistas, é precisamente a essa escala que vamos ficar presos, com enormes custos de oportunidade, a nível global, para todos nós.

Eventos

Gostaria de divulgar dois eventos de potencial interesse para os leitores.

O primeiro é a conferência "Crescimento Económico na União Europeia? Perspectivas para a Prosperidade”, mais uma do European Liberal Forum (organização MLS), já esta Sexta 25/11 no ISLA em Lisboa.

No dia seguinte (26/11), realiza-se a "1ª Conferência do Liberalismo Clássico", organizado pela Causa Liberal, em Coimbra.

terça-feira, 15 de novembro de 2011

Função Pública (Artigos a Ler)

O Prof. Luís Fábrica, da Universidade Católica, escreveu três breves contributos para o debate público sobre a função pública que me parecem, os três, muito interessantes, e de leitura relevante.

Aqui ficam os «links»:

http://www.dinheirovivo.pt/Estado/Artigo/CIECO020387.html

http://www.dinheirovivo.pt/Estado/Artigo/CIECO021365.html

http://www.dinheirovivo.pt/Estado/Artigo/CIECO022290.html

quinta-feira, 10 de novembro de 2011

Conferência "Direitos Individuais na Europa"

O European Liberal Forum e o Movimento Liberal Social irão até ao fim deste mês realizar três eventos interessantes em Lisboa sobre questões europeias.

O primeiro dos três é a Conferência "Direitos Individuais na Europa", no dia 17.




segunda-feira, 7 de novembro de 2011

A curva de Laffer

Há um par de semanas, pouco depois do anúncio das linhas gerais do OE12, ouvia eu dois ilustres opinion makers da nossa praça a dizerem um para o outro qualquer coisa como isto:


- Com este nível brutal da carga fiscal, vamos claramente ultrapassar o pico da curva de Laffer, blá-blá-blá.


- Acha? Pois eu tenho a certeza que já o ultrapassámos há muito tempo, yadda-yadda.


O que é afinal, basicamente, a curva de Laffer? A curva de Laffer é uma construção teórica, uma relação hipotética entre o nível (taxa) dos impostos sobre o rendimento, e o total da receita obtida através deles.


A hipótese é a de que com o aumento da taxa, a receita só aumenta até certo ponto, t*, a partir do qual se tem uma situação, no mínimo, paradoxal: um aumento da taxa gera, mesmo no curto prazo, uma diminuição da receita total, até ao caso extremo, em que, com uma taxa de 100 por cento, a receita obtida seria 0.


A ideia é que uma alteração na taxa tem dois efeitos associados, um “aritmético”, correspondente à alteração na dimensão da porção a ser taxada do rendimento e um “económico”, associado à repercussão que tal alteração, positiva ou negativa, tem nos incentivos à participação na actividade económica, ou seja, no rendimento obtido depois de impostos, seja do trabalho, seja do capital. Já para não falar no putativo efeito sobre a fuga de capitais para paraísos fiscais, incentivos à economia informal/fraude fiscal, and so on.


Até aqui tudo parece bastante razoável. Contudo, voltando um parágrafo atrás, vejamos: se num ponto em que a taxa é maior que o t*, um aumento da taxa gera uma diminuição da receita, tal implica logicamente que uma diminuição da taxa geraria... um aumento da receita total? A sério?


Pensarmos que, por cá, o peso relativo do Estado na actividade económica é um factor decisivo para a sua actual situação de fragilidade, não justifica ter a desfaçatez de aventar algo deste género. Uma coisa é afirmar que o aumento da carga fiscal poderá ter associada uma diminuição numa parte dessa actividade (no fundo, o tal “efeito económico”), sobretudo no contexto actual em que em conjunto com o aumento dos impostos temos uma redução maciça no investimento público e nalgumas transferências.


Outra é pensar-se que esse impacto seja tal que uma escalada marginal da taxa de imposto faça descer a receita obtida no total! Isso quereria dizer uma de duas coisas: ou que o rendimento/actividade decresceria de tal forma, ou que a malta começava a fugir de tal modo, que compensasse o aumento da taxa. Melhor ainda: se se diminuísse a carga fiscal para o próximo ano, a receita do Estado crescia por magia...


Obviamente que isto poderia hipoteticamente ter alguma ligação com a realidade, em casos extremos, com taxas impossivelmente grandes, que a existirem não estão documentados. Obviamente que a nossa carga fiscal é enorme, mas até há, imagine-se, maiores.Obviamente que a receita do Estado no próximo ano será menor que no corrente, tal como a neste será menor que em 2010. Esta evolução é, portanto, inversa à do nível de imposto sobre o rendimento, com os sucessivos pacotes de austeridade. O que não significa que haja uma relação significativa de causalidade entre as duas.


Reza a lenda que esta ideia foi apresentada a figuras como Dick Cheney pelo sr. Laffer, esboçando a tal curva num guardanapo de cocktail no Washington Hotel, tendo depois vindo a fazer parte do rationale por detrás das políticas supply-side que Reagan levaria a cabo sobretudo nos seus primeiros anos de mandato. Se os resultados dessas políticas foram positivos, é uma questão que ainda hoje é alvo de debate. Que a teoria ou “técnica” serviu de desculpa às intenções políticas, e não como justificação ou sustentação real, é ponto assente.


Felizmente, por cá, serve de desculpa só mesmo para dizer mal.


Mais sobre a curva de Laffer (leia-se, num artigo pelo próprio) aqui.