[Aviso: artigo longo.]
Só hoje reparei que Ricardo Reis tinha mencionado o blogue num seu artigo sobre a decisão do Tribunal de Portalegre (ver aqui o artigo original e aqui o artigo com a referência).
Gostaria de esclarecer que no meu artigo tentei explicar a decisão do tribunal e critiquei a forma como tinha sido apresentada na imprensa. Ou seja, explicar a interpretação jurídica do tribunal sobre o que estava em causa, porque me pareceu que estava a haver uma simplificação do que se tinha decidido por parte da imprensa (dava a ideia que bastava ir ao banco entregar a casa e já estava, sem dar conta de todo o contexto subjacente).*
Tive a oportunidade de entretanto estudar de forma ligeiramente mais aprofundada a decisão e gostaria então de dar a minha opinião sobre a mesma, bem como sobre uma decisão espanhola que vai no mesmo sentido.
Começo pela decisão do Tribunal de Portalegre. O tribunal invoca abuso de direito por parte do banco (na modalidade de desequilíbrio de exercício do direito), enriquecimento sem causa por ter sido realizada uma prestação sem se ter atingido o objectivo visado por causa superveniente e que existiria uma descaracterização da correspondência entre dever de prestar e direito à prestação.
Não me parece que tenha existido abuso de direito, embora compreenda porque é que o tribunal usou este instituto (na prática, permitiu-lhe chegar à decisão que pretendia obter no final). O banco pediu que lhe fosse imediatamente paga a dívida (direito que lhe assistia no âmbito do processo de inventário) após reconhecimento da mesma. Não existindo dinheiro suficiente, procedeu-se à venda de um bem da relação de bens, neste caso o imóvel. O imóvel foi colocado à venda por € 82.250 e apenas existiu uma proposta: a do banco. Por isso, o imóvel foi-lhe adjudicado.
O tribunal considerou que existiu abuso de direito por parte do banco. Embora este se tivesse limitado a exercer um direito que lhe assistia por lei, e embora esse exercício fosse, de uma perspectiva literal, sancionado por essa mesma lei, o tribunal considerou que o exercício contrariava a boa fé. Isto porque, segundo o tribunal (e esta parte é crucial para a decisão), o banco sempre tinha avaliado o imóvel por mais, pelo que deveria agora abater esse valor superior à dívida total.
O tribunal não avaliou a situação, no entanto, numa perspectiva de análise de por quem corre o risco numa situação de empréstimo como esta. Na prática, da decisão decorre que o risco correu por conta do banco, mas essa análise nunca é feita pelo tribunal - o que inquina desde logo a decisão, a meu ver. O tribunal, já que queria inovar, devia ter justificado qual a razão para o risco, na sua perspectiva, dever correr por conta do banco. Porque, segundo a lei como tem sido aplicada até hoje, não corre.
Há duas razões que têm sido apontadas para que o risco deve correr por conta do banco, ambas interligadas. A primeira é que o banco se encontra numa melhor posição para fazer uma análise de risco relativamente ao empréstimo. A segunda é que o crédito para habitação própria devia ter tratamento especial por, precisamente, permitir às pessoas adquirir casa para habitação própria.
Se o objectivo for facilitar a compra de casa própria através de crédito (daí o tratamento especial a conferir ao crédito à habitação), no entanto, uma regra como esta só serve para encarecer esse mesmo crédito (o Duarte escreveu um artigo sobre o tema da análise de risco por parte dos bancos aqui no blogue cuja leitura recomendo), o que não serve esse propósito. Não estou a dizer que este deva ser o objectivo (pessoalmente, penso que não deve ser incentivada com estímulos públicos a compra a crédito, e vi com bons olhos o fim dos benefícios fiscais que existiam nesse sentido), mas estou a dizer que se for, não é por aqui que os preços dos empréstimos ficam mais baixos. Antes pelo contrário - ficam mais elevados.
Quanto aos bancos estarem numa melhor posição para fazer a análise de risco de crédito, de facto estão. E correm o risco por esse mesmo crédito não ser pago por, por algum motivo, o devedor não o conseguir pagar. Mas daqui não retira pura e simplesmente que devem também correr o risco de desvalorização da garantia - especialmente quando esta regra sobre risco não tinha sido tida em consideração aquando do empréstimo, por pura e simplesmente não existe - e que portanto devam correr o risco da desvalorização do imóvel.
Quem comprou o imóvel não foi o banco - foi a pessoa. Foi essa pessoa que tomou a decisão de investir no imóvel e se tornou proprietária do mesmo. O banco emprestou-lhe fundos para o efeito, é verdade. Mas isso não significa que o risco do investimento da pessoa deva correr por conta do banco. O risco do investimento do banco deve correr por conta do banco - e esse risco foi de emprestar uma determinada quantia, a juros, àquela pessoa. O banco deve correr risco da pessoa não conseguir pagar o que lhe deve, mas não o risco da desvalorização do imóvel (por qualquer motivo, incluindo falta de compradores em caso de venda judicial).
Voltando à decisão, o tribunal considerou que decorria da boa fé que o único valor pelo qual o banco alguma vez poderia aceitar o imóvel tinha de ser €117.500,00, porque era esse o valor que estava na base da relação jurídica conforme determinada no seu início. Mas, de novo, não procedeu a uma análise sobre alocação de risco de desvalorização do imóvel e por conta de quem é que este devia correr, nem levou em devida consideração que tinha havido uma venda judicial e que o imóvel em questão apenas tinha conseguido obter uma proposta pelo 70% do valor de base quando colocado à venda.
Na prática, isto redundaria numa espécie de obrigação do banco sistematicamente proceder a reavaliações do imóvel e a informar o devedor de que o imóvel se tinha vindo a desvalorizar, ou caso contrário deveria considerar-se que o banco correria o risco da desvalorização do imóvel - o que não só aumentaria os custos dos empréstimos, como não faz grande sentido. Não tinha ficado no contrato que o valor do prédio ficaria fixado para todo o sempre em € 117.500,00 - esse era o valor do prédio no ano em que teve lugar o empréstimo.
Não vejo que tenha existido qualquer enriquecimento sem causa (em qualquer modalidade), nem que tenha sido quebrada a correspondência entre a prestação e a contra-prestação. A pessoa pediu um empréstimo ao banco e comprometeu-se a pagá-lo de volta com juros - é este o negócio jurídico que se encontra aqui em causa. E a pessoa recebeu o empréstimo e tornou-se proprietário da casa. Mais tarde, a casa passou para o banco por um valor inferior do que aquele pelo qual tinha sido avaliada originalmente. Mas isso, só por si, não transfere o risco do investimento na casa para o banco.
Simpatizo com o juiz de Portalegre e compreendo porque é que tomou a decisão que tomou. Mas por muito bem escrita, de um ponto de vista retórico, que esteja a decisão, ela não tomou em conta uma série de questões jurídicas e económicas relevantes. Sendo que, já agora, não considero por princípio errado que existam regras que facilitem o pagamento em casos especiais - tudo depende das regras concretas que sejam definidas.
Um breve apontamento ainda sobre a decisão espanhola. Nessa decisão, um tribunal de 2.ª instância de Navarra considerou que, mesmo não existindo abuso de direito (contrariamente ao juízo de execução espanhol em 1.ª instância, que considerou que esta tinha existido), porque o banco tinha exercido um direito que legalmente podia ter exercido, o valor do imóvel a considerar para abater à dívida deveria ser o valor aquando do empréstimo (por, tal como em Portugal, ser o único valor constante dos autos). Usou como argumento uma suposta interpretação das normas em causa tendo em atenção o contexto de crise económica e financeira existente em Espanha (em Espanha rebentou uma bolha imobiliária, contrariamente a Portugal), muito causada pelos bancos - na prática, no entanto, não justificou a decisão juridicamente, apenas politicamente.
Resta dizer que estão neste momento em discussão no Parlamento diversos projectos de lei sobre a questão do crédito à habitação e da dação em cumprimento, mas que, de acordo com a informação que tenho recolhido, a situação relativa à entrega de casas aos bancos não é tão dramática como possa parecer pela imprensa (os números habitualmente apresentados incluem entrega de casas nunca completadas, pelo que percebi). Esses projectos de lei têm em comum a ideia de que, existindo uma situação extrema, em que haja um súbito decréscimo do rendimento do agregado familiar, o que torne o pagamento do crédito à habitação mais difícil, existam procedimentos especiais para lidar com essa situação.
Na prática, segundo creio, trata-se de criar uma lei para fazer algo que os bancos já se têm visto forçados a fazer mesmo sem lei. Penso, no entanto, que serão estes projectos de lei que, quando se tornarem lei, terão impacto a longo prazo, mais do que a decisão do Tribunal de Portalegre. Importa, portanto, seguir os debates em torno destes projectos.
Neste sentido, conto ter novidades num futuro próximo. Por agora, agradeço a paciência e simpatia de quem leu este artigo até ao fim!
* Editado: Na versão anterior, dizia que Ricardo Reis me atribuía a interpretação do tribunal no artigo do «link», o que na realidade não fez. Fica a correcção feita.
"Deve haver um dia em que a sociedade, como os indivíduos, chegue à maioridade." - Alexandre Herculano
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quinta-feira, 7 de junho de 2012
segunda-feira, 7 de maio de 2012
Tribunal de Portalegre - Versão Não Técnica
[A versão mais técnica deste artigo encontra-se aqui.]
Pareceu-me útil escrever uma versão menos técnica daquilo que, a meu ver, estava em causa na decisão do Tribunal de Portalegre que tanto se tem debatido nos últimos tempos.
De forma simplificada, em causa encontrava-se uma dívida de cerca de € 129.000 que um casal tinha para com um banco. €117.500 dessa dívida tinham sido utilizados para comprar uma casa. [Frase alterada.]
Após diversas circunstâncias, o casal, que se encontrava em processo de divórcio, viu um tribunal decretar que, para o pagamento dessa dívida, deveria ser vendido judicialmente um bem - no caso, a casa.
A casa tinha sido avaliada por € 117.500 pelo banco e o banco, segundo o tribunal, nunca colocou esse valor em causa. O tribunal decidiu que seriam aceites propostas por 70% desse valor aquando da venda judicial e o banco também não protestou.
Procedeu-se então à venda da casa e quem a adquiriu foi o banco, por € 82.500. Depois, reclamou que o casal ainda lhe devia cerca de € 40.000, correspondentes a cerca de € 129.000 (dívida total) menos € 82.500.
O que o tribunal veio dizer foi que o banco não podia fazer isso. Isto porque o banco nunca tinha colocado em causa que a casa valesse € 117.500. Ora, isso significava que o banco estaria a adquirir um bem que tinha avaliado em € 117.500 por € 82.500 e depois a dizer que o casal ainda lhe devia a diferença.
Na prática, o banco estaria a exigir que o devedor lhe pagasse essa diferença como valor «extra», porque tinha acabado de adquirir um bem que o próprio banco, segundo o tribunal, sempre considerou valer € 117.500. E o tribunal considerou que isto era um abuso de direito, que violava a boa fé e constituiria um enriquecimento sem causa do banco (porque iria receber o tal valor «extra» em relação à sua própria avaliação do valor do bem).
Assim, o tribunal decidiu que o imóvel deveria ser considerado como abatendo € 117.500 à dívida total. Mas reconheceu que o casal ainda devia cerca € 12.000 ao banco (a diferença entre o valor do imóvel entregue e o valor total da dívida).
Portanto, o tribunal não decidiu que bastava entregar a casa para pagar a dívida. E não colocou em causa uma reavaliação feita pelo banco - considerou que o banco não tinha feito uma reavaliação, e estava a aproveitar-se da venda ser feita a valor mais reduzido para adquirir um bem que nunca deixou de avaliar em € 117.500 por 70% desse valor, sendo essa conduta considerada ilegítima.
Isto não é a mesma coisa que decidir que no caso de um devedor ir ter com o banco e lhe entregar a casa, isso basta para saldar a dívida. Nem é o mesmo que decidir que os bancos não podem proceder a reavaliações do valor dos imóveis quando executem hipotecas ou quando aceitem receber a casa para saldar pelo menos parte da dívida.
A decisão em causa tem um contexto muito específico e concreto de uma venda judicial que é diferente das situações de que habitualmente se tem falado. Nem se pode considerar que o banco tenha procedido a uma reavaliação do imóvel ao adquiri-lo por 70% do valor original - o banco simplesmente aproveitava as regras estabelecidas pelo tribunal para a venda judicial, optando por fazer uma proposta com o valor mínimo que seria aceite, sem nunca ter colocado em causa o valor do imóvel ser o original.
Como já tenho dito aqui por diversas vezes, não existe precedente em Portugal, pelo que tudo o que se tem dito sobre a criação de «jurisprudência» da decisão tem sido fortemente exagerado. Acontece ainda que a decisão não põe em causa, pelo menos a meu ver, a regra geral que existe actualmente e que é a de que a entrega da casa não ser necessariamente suficiente para saldar a dívida (p.ex. no caso do valor de mercado da casa ter desvalorizado) e prende-se com um contexto muito específico acima explicado.
Ou seja, mesmo que existisse precedente (que não existe, por muito que eu preferisse que existisse), esta decisão não ajudaria pessoas nas situações habitualmente descritas pela imprensa. A sua lógica prende-se com questões muito específicas ligadas a este caso e às figuras jurídicas envolvidas. E portanto não poderia ser aplicada por analogia às situações das pessoas que desejam entregar a casa ao banco e considerar a dívida completamente paga, fazendo o risco da desvalorização da casa correr por conta do banco da forma que tem sido difundida de forma massiva.
Por muito técnica que fosse esta decisão (e é-o, de facto), parece-me que houve claramente falta de preparação na cobertura mediática da mesma. Não houve estudo da decisão, que não foi colocada «online» pela grande maioria dos meios de comunicação que a cobriram e sobre ela opinaram.
No final, acabámos a discutir não a decisão em si, mas a imagem que se criou dela a partir da sua cobertura mediática, com implicações várias. O que diz muito sobre o poder da comunicação social para influenciar e balizar os debates públicos, poder esse que devia ser exercido de forma ética e responsável, com preparação e estudo. Mas, infelizmente, demasiadas vezes não é.
[Nota (07-06-2012): Ver também este artigo: http://www.cousasliberaes.com/2012/06/decisao-de-portalegre-resposta-ricardo.html]
Pareceu-me útil escrever uma versão menos técnica daquilo que, a meu ver, estava em causa na decisão do Tribunal de Portalegre que tanto se tem debatido nos últimos tempos.
De forma simplificada, em causa encontrava-se uma dívida de cerca de € 129.000 que um casal tinha para com um banco. €117.500 dessa dívida tinham sido utilizados para comprar uma casa. [Frase alterada.]
Após diversas circunstâncias, o casal, que se encontrava em processo de divórcio, viu um tribunal decretar que, para o pagamento dessa dívida, deveria ser vendido judicialmente um bem - no caso, a casa.
A casa tinha sido avaliada por € 117.500 pelo banco e o banco, segundo o tribunal, nunca colocou esse valor em causa. O tribunal decidiu que seriam aceites propostas por 70% desse valor aquando da venda judicial e o banco também não protestou.
Procedeu-se então à venda da casa e quem a adquiriu foi o banco, por € 82.500. Depois, reclamou que o casal ainda lhe devia cerca de € 40.000, correspondentes a cerca de € 129.000 (dívida total) menos € 82.500.
O que o tribunal veio dizer foi que o banco não podia fazer isso. Isto porque o banco nunca tinha colocado em causa que a casa valesse € 117.500. Ora, isso significava que o banco estaria a adquirir um bem que tinha avaliado em € 117.500 por € 82.500 e depois a dizer que o casal ainda lhe devia a diferença.
Na prática, o banco estaria a exigir que o devedor lhe pagasse essa diferença como valor «extra», porque tinha acabado de adquirir um bem que o próprio banco, segundo o tribunal, sempre considerou valer € 117.500. E o tribunal considerou que isto era um abuso de direito, que violava a boa fé e constituiria um enriquecimento sem causa do banco (porque iria receber o tal valor «extra» em relação à sua própria avaliação do valor do bem).
Assim, o tribunal decidiu que o imóvel deveria ser considerado como abatendo € 117.500 à dívida total. Mas reconheceu que o casal ainda devia cerca € 12.000 ao banco (a diferença entre o valor do imóvel entregue e o valor total da dívida).
Portanto, o tribunal não decidiu que bastava entregar a casa para pagar a dívida. E não colocou em causa uma reavaliação feita pelo banco - considerou que o banco não tinha feito uma reavaliação, e estava a aproveitar-se da venda ser feita a valor mais reduzido para adquirir um bem que nunca deixou de avaliar em € 117.500 por 70% desse valor, sendo essa conduta considerada ilegítima.
Isto não é a mesma coisa que decidir que no caso de um devedor ir ter com o banco e lhe entregar a casa, isso basta para saldar a dívida. Nem é o mesmo que decidir que os bancos não podem proceder a reavaliações do valor dos imóveis quando executem hipotecas ou quando aceitem receber a casa para saldar pelo menos parte da dívida.
A decisão em causa tem um contexto muito específico e concreto de uma venda judicial que é diferente das situações de que habitualmente se tem falado. Nem se pode considerar que o banco tenha procedido a uma reavaliação do imóvel ao adquiri-lo por 70% do valor original - o banco simplesmente aproveitava as regras estabelecidas pelo tribunal para a venda judicial, optando por fazer uma proposta com o valor mínimo que seria aceite, sem nunca ter colocado em causa o valor do imóvel ser o original.
Como já tenho dito aqui por diversas vezes, não existe precedente em Portugal, pelo que tudo o que se tem dito sobre a criação de «jurisprudência» da decisão tem sido fortemente exagerado. Acontece ainda que a decisão não põe em causa, pelo menos a meu ver, a regra geral que existe actualmente e que é a de que a entrega da casa não ser necessariamente suficiente para saldar a dívida (p.ex. no caso do valor de mercado da casa ter desvalorizado) e prende-se com um contexto muito específico acima explicado.
Ou seja, mesmo que existisse precedente (que não existe, por muito que eu preferisse que existisse), esta decisão não ajudaria pessoas nas situações habitualmente descritas pela imprensa. A sua lógica prende-se com questões muito específicas ligadas a este caso e às figuras jurídicas envolvidas. E portanto não poderia ser aplicada por analogia às situações das pessoas que desejam entregar a casa ao banco e considerar a dívida completamente paga, fazendo o risco da desvalorização da casa correr por conta do banco da forma que tem sido difundida de forma massiva.
Por muito técnica que fosse esta decisão (e é-o, de facto), parece-me que houve claramente falta de preparação na cobertura mediática da mesma. Não houve estudo da decisão, que não foi colocada «online» pela grande maioria dos meios de comunicação que a cobriram e sobre ela opinaram.
No final, acabámos a discutir não a decisão em si, mas a imagem que se criou dela a partir da sua cobertura mediática, com implicações várias. O que diz muito sobre o poder da comunicação social para influenciar e balizar os debates públicos, poder esse que devia ser exercido de forma ética e responsável, com preparação e estudo. Mas, infelizmente, demasiadas vezes não é.
[Nota (07-06-2012): Ver também este artigo: http://www.cousasliberaes.com/2012/06/decisao-de-portalegre-resposta-ricardo.html]
domingo, 6 de maio de 2012
O que decidiu o juiz em Portalegre
[AVISO: Artigo longo.]
A decisão do juiz de Portalegre que tem sido discutida recentemente tem sido caracterizada da seguinte forma:
A decisão do juiz de Portalegre que tem sido discutida recentemente tem sido caracterizada da seguinte forma:
- o juiz decidiu que basta entregar a casa e a dívida está liquidada;
- a decisão pode «fazer jurisprudência».
Quanto ao segundo ponto, basta dizer que não existe precedente em Portugal, e que portanto qualquer interpretação legal de um certo tribunal pode ou não ser acolhida por outro tribunal consoante lhe aprouver. (Os tribunais inferiores têm de respeitar as decisões de tribunais superiores em caso de recurso, mas não é isso que está aqui em causa.)
Relativamente ao primeiro ponto, o juiz de Portalegre não decidiu que basta entregar a casa e a dívida ao banco está liquidada da forma que a cobertura mediática faz crer. Não estava em causa, na decisão, uma simples dação em cumprimento em que a avaliação do banco foi ignorada pelo tribunal e bastou entregar a casa para a dívida ficar saldada. Estava em causa uma venda judicial, em que o banco (credor hipotecário da dívida) adquiriu, nessa mesma venda judicial, o imóvel em causa, por preço inferior ao valor que atribuía à dívida.
Aquando da decisão de vender o referido imóvel, foi decidido que seriam aceites propostas correspondentes a 70% do valor patrimonial do imóvel, decisão da qual o banco não reclamou nem impugnou. Subsequentemente, o banco adquiriu o imóvel em causa, que estava avaliado em € 117.500,00 (valor que o banco nunca colocou em causa), por € 82.500,00 (a dívida total ascendia a um valor ainda superior aos € 117.500,00), precisamente através da venda judicial. O banco veio então dizer que a venda judicial ainda não tinha sido suficiente para ressarcir a sua dívida total e portanto exigir o remanescente.
O juiz veio dizer que é um abuso de direito um credor, neste caso o banco, adquirir em venda judicial um imóvel por preço inferior àquele que originalmente atribuiu ao mesmo, invocando posteriormente que a dívida que se mantinha devia incluir o valor em falta entre o total da dívida e o preço pago pelo imóvel aquando da venda judicial. A venda judicial do imóvel deveria abater, neste caso, os € 117.500,00 à dívida total, e não os € 82.500,00 pagos pelo banco.
O tribunal invoca os seguintes argumentos para suportar a sua posição:
- Para tutela da boa fé, deve ser dada primazia ao valor de € 117.500,00 em relação ao valor mais baixo pago pelo banco. Citando a decisão: «Os inventariados são hoje devedores de uma determinada quantia para aquisição de um bem [o imóvel] do qual já não dispõem e que reverteu ao credor da dívida por um valor substancialmente inferior àquele que configura a sua obrigação e que consubstanciou a materialidade subjacente da relação contratual: o valor patrimonial de 117.500,00€. É a este valor do bem, mercê da aquisição pelo credor hipotecário, que deve ser dada primazia pela materialidade subjacente na tutela judicial.»
- Existiria um enriquecimento em causa (o tribunal chama-lhe «enriquecimento injustificado») caso não se tivesse em causa o valor de € 117.500,00. Citando de novo a decisão: «Julgamos, pois, que, se a responsabilidade obrigacional dos inventariados deriva do mútuo de escopo para aquisição de habitação própria no valor de 117.500,00€; se o Banco …, S.A. é credor dos inventariados em função de mútuo de escopo para aquisição de habitação própria no valor de 117.500,00€; se o incumprimento que funda a qualidade de credor do Banco …, S.A. deriva de mútuo de escopo para aquisição de habitação própria no valor de 117.500,00€; então a perda desse resultado pelos inventariados e a aquisição dessa utilidade pelo credor deve ser considerada e contabilizada para o prosseguimento da dívida, abatendo-se ao passivo global.»
- Existiria «uma descaracterização da correspectividade entre o dever de prestar dos inventariados e o direito à prestação do credor. (...) No caso dos autos, o dever de prestar foi realizado através da acção creditória e da venda coactiva, ainda que enxertada em processo de inventário.»
Em relação ao terceiro ponto, importa citar ainda, em particular, o seguinte (negritos meus):
«Permitir que os inventariados sejam responsabilizados pelo incumprimento da prestação, perdendo a disposição do bem por um valor marcadamente inferior ao valor referencial daquele mesmo incumprimento redundaria, cremos nós, na afirmação de que autonomia privada pode, para o sistema judicial, significar arbitrariedade privada.
De contrário, querendo ter um bem, para exercício de direito constitucionalmente garantido, de um certo valor, acordaram em vincular-se pelo mesmo valor, comprometendo-se à entrega remuneratória desse valor e ao pagamento dos danos do incumprimento, onerando o bem, os inventariados, após tutela executiva, ficariam sem esse mesmo bem, desvalorizado em 30%, sem que a dívida reflectisse essa desconsideração.
Como se sublinhou, o acento tónico deste desequilíbrio no exercício nem está tanto na aquisição por 70% do valor do bem, mas sim pela adjudicação por esse valor ao próprio credor hipotecário do mútuo de escopo, único credor do património comum dos inventariados; conjugado com a sua liberdade de estipulação desse valor no empréstimo e com a conformação desse valor em termos patrimoniais.
Atente-se que não se trata de afirmar que aquele valor se identifica com o valor real, mas sim de acentuar que aquele valor conformou o dever de prestar dos inventariados e, bem assim, o valor do incumprimento.»
Em consequência, o tribunal considerou que o banco não podia exigir € 46.356,91 ao devedor, porque o valor a ter em conta para «abater» à dívida deveria ser o valor de € 117.500,00 e não de € 82.500,00.
E agora vem uma parte particularmente interessante da decisão, que passo a citar (de novo, negritos meus):
«É também por este acervo de razões que a pretensão do Requerente, R…, não pode, proceder, tout court, desde logo pela natureza e estrutura do direito de crédito tal como se encontra positivado no art.º 397.º do C.C., através do qual a obrigação creditícia compreende um vínculo jurídico em virtude o qual uma pessoa fica adstrita para com a outra à realização de uma prestação.
Reconhecendo-se que o credor não tem qualquer direito sobre os bens do devedor, parece claro que tem que se reconhecer-lhe um direito subjectivo à prestação, uma vez que o devedor está vinculado ao seu cumprimento, sendo que a existência de um direito apenas depende do seu reconhecimento por uma norma, independentemente de ser garantido por uma sanção e muito menos por uma sanção com plena eficácia (GOMES DA SILVA, citado em MENEZES LEITÃO, Direito das Obrigações, Volume I, 3.ª Edição, Almedina, pág. 91 e 92, após análise crítica das teorias realista, personalista e mistas da obrigação.).
O objecto desta decisão envolve somente o modo de exercício do direito de crédito pelo credor Banco …, S.A. após a adjudicação em processo de inventário, pelo que não nos cabe sindicar a fonte da dívida e a adstrição dos inventariados ao seu cumprimento.
O que vale por dizer que não vemos razão atendível para que a adjudicação do bem acarrete a extinção da obrigação por completo.
Mais se diga que o passivo compreende o incumprimento do contrato de mútuo oneroso no valor de 3.550,00€, o qual, apesar de garantido com hipoteca sobre o bem imóvel, não partilha da subsunção jurídica que ora se explanou quanto ao desequilíbrio no exercício do direito de crédito face ao contrato de mútuo oneroso pela quantia de 117.500,00€.
Assim, considerando o valor patrimonial do bem adjudicado nos autos – 117.500,00€; o valor da adjudicação – 82.250,00€; a posição do adquirente enquanto credor hipotecário de empréstimo concedido aos inventariados no valor de 117.500,00€ e o valor do passivo aprovado antes da adjudicação –129.521,52€, considerando que não há divergência quanto ao incumprimento mútuo com hipoteca no montante de 3.550,00€ (três mil e quinhentos e cinquenta euros); entendemos que deve ser reconhecida a dívida dos inventariados, E… e R…, ao Banco …, S.A. no valor de 12.021,52€ (doze mil e vinte e um euros e cinquenta e dois cêntimos), resultante da subtracção de 117.500,00€ – valor patrimonial do bem adjudicado, ao passivo anteriormente aprovado de 129.521,52€.
Note-se, porém, que o juiz, no processo de inventário limita-se, no caso considerado [rejeitadas por unanimidade], a reconhecer ou não a existência da dívida (…) reconhecida judicialmente (…), a declaração do juiz de que os credores ficariam com o direito a receber pelos meios comuns, quer significar que, não tendo os credores pedido o respectivo pagamento no inventário, lhes fica assegurado o direito de receberem os seus créditos, mediante execução (…) deve também entender-se que a tais dívidas se aplica a mesma doutrina que, para as aprovadas unanimemente, ficou declarada no art. 1554.º (LOPES CARDOSO, Partilhas Judiciais, Vol. II, Almedina, pág. 155 e 156).
A prova documental dos autos – escritura de fls. 45 a 49; documento complementar de fls. 50 a 55; escritura de fls. 57 a 60 e documento complementar de fls.61 a 67, quanto à natureza solidária e quanto à exigibilidade da dívida não foi, minimamente, posta em crise louvando-nos do seu valor probatório.»
No final, portanto, o juiz reconheceu a dívida do banco no valor de € 12.021,52 acima mencionada.
Em suma, em causa estava uma venda judicial em que o credor comprou, ele próprio, o bem executado. Esse bem encontrava-se avaliado em € 117.500 pelo próprio credor e o credor aproveitou-se da venda judicial se processar por um valor inferior para o adquirir por € 87.500, vindo depois pedir o remanescente da dívida considerando saldado apenas este último valor. O tribunal considerou que, na prática, banco tinha acabado de adquirir um bem que avaliava em € 117.500 por € 87.500 e queria que os devedores pagassem a diferença entre estes dois valores e o remanescente da dívida (e seria este o valor do enriquecimento injustificado) - e considerou esta actuação um abuso de direito. No entanto, no final, abateu os € 117.500 à dívida total, mas reconheceu o remanescente como estando ainda em dívida.
Ou seja, contrariamente ao que por aí tem sido dito, o tribunal não decidiu que basta entregar a casa para que a dívida se considere saldada - antes pelo contrário! Divulgar a decisão de forma deturpada em nada ajudou a esclarecer a opinião pública, tendo aliás o efeito de perverso provável de ter induzido em erro todas as pessoas que a decisão iria «ajudar» (não ajuda) por «poder criar jurisprudência» (não cria).
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