[Aviso: artigo longo.]
Só hoje reparei que Ricardo Reis tinha mencionado o blogue num seu artigo sobre a decisão do Tribunal de Portalegre (ver aqui o artigo original e aqui o artigo com a referência).
Gostaria de esclarecer que no meu artigo tentei explicar a decisão do tribunal e critiquei a forma como tinha sido apresentada na imprensa. Ou seja, explicar a interpretação jurídica do tribunal sobre o que estava em causa, porque me pareceu que estava a haver uma simplificação do que se tinha decidido por parte da imprensa (dava a ideia que bastava ir ao banco entregar a casa e já estava, sem dar conta de todo o contexto subjacente).*
Tive a oportunidade de entretanto estudar de forma ligeiramente mais aprofundada a decisão e gostaria então de dar a minha opinião sobre a mesma, bem como sobre uma decisão espanhola que vai no mesmo sentido.
Começo pela decisão do Tribunal de Portalegre. O tribunal invoca abuso de direito por parte do banco (na modalidade de desequilíbrio de exercício do direito), enriquecimento sem causa por ter sido realizada uma prestação sem se ter atingido o objectivo visado por causa superveniente e que existiria uma descaracterização da correspondência entre dever de prestar e direito à prestação.
Não me parece que tenha existido abuso de direito, embora compreenda porque é que o tribunal usou este instituto (na prática, permitiu-lhe chegar à decisão que pretendia obter no final). O banco pediu que lhe fosse imediatamente paga a dívida (direito que lhe assistia no âmbito do processo de inventário) após reconhecimento da mesma. Não existindo dinheiro suficiente, procedeu-se à venda de um bem da relação de bens, neste caso o imóvel. O imóvel foi colocado à venda por € 82.250 e apenas existiu uma proposta: a do banco. Por isso, o imóvel foi-lhe adjudicado.
O tribunal considerou que existiu abuso de direito por parte do banco. Embora este se tivesse limitado a exercer um direito que lhe assistia por lei, e embora esse exercício fosse, de uma perspectiva literal, sancionado por essa mesma lei, o tribunal considerou que o exercício contrariava a boa fé. Isto porque, segundo o tribunal (e esta parte é crucial para a decisão), o banco sempre tinha avaliado o imóvel por mais, pelo que deveria agora abater esse valor superior à dívida total.
O tribunal não avaliou a situação, no entanto, numa perspectiva de análise de por quem corre o risco numa situação de empréstimo como esta. Na prática, da decisão decorre que o risco correu por conta do banco, mas essa análise nunca é feita pelo tribunal - o que inquina desde logo a decisão, a meu ver. O tribunal, já que queria inovar, devia ter justificado qual a razão para o risco, na sua perspectiva, dever correr por conta do banco. Porque, segundo a lei como tem sido aplicada até hoje, não corre.
Há duas razões que têm sido apontadas para que o risco deve correr por conta do banco, ambas interligadas. A primeira é que o banco se encontra numa melhor posição para fazer uma análise de risco relativamente ao empréstimo. A segunda é que o crédito para habitação própria devia ter tratamento especial por, precisamente, permitir às pessoas adquirir casa para habitação própria.
Se o objectivo for facilitar a compra de casa própria através de crédito (daí o tratamento especial a conferir ao crédito à habitação), no entanto, uma regra como esta só serve para encarecer esse mesmo crédito (o Duarte escreveu um artigo sobre o tema da análise de risco por parte dos bancos aqui no blogue cuja leitura recomendo), o que não serve esse propósito. Não estou a dizer que este deva ser o objectivo (pessoalmente, penso que não deve ser incentivada com estímulos públicos a compra a crédito, e vi com bons olhos o fim dos benefícios fiscais que existiam nesse sentido), mas estou a dizer que se for, não é por aqui que os preços dos empréstimos ficam mais baixos. Antes pelo contrário - ficam mais elevados.
Quanto aos bancos estarem numa melhor posição para fazer a análise de risco de crédito, de facto estão. E correm o risco por esse mesmo crédito não ser pago por, por algum motivo, o devedor não o conseguir pagar. Mas daqui não retira pura e simplesmente que devem também correr o risco de desvalorização da garantia - especialmente quando esta regra sobre risco não tinha sido tida em consideração aquando do empréstimo, por pura e simplesmente não existe - e que portanto devam correr o risco da desvalorização do imóvel.
Quem comprou o imóvel não foi o banco - foi a pessoa. Foi essa pessoa que tomou a decisão de investir no imóvel e se tornou proprietária do mesmo. O banco emprestou-lhe fundos para o efeito, é verdade. Mas isso não significa que o risco do investimento da pessoa deva correr por conta do banco. O risco do investimento do banco deve correr por conta do banco - e esse risco foi de emprestar uma determinada quantia, a juros, àquela pessoa. O banco deve correr risco da pessoa não conseguir pagar o que lhe deve, mas não o risco da desvalorização do imóvel (por qualquer motivo, incluindo falta de compradores em caso de venda judicial).
Voltando à decisão, o tribunal considerou que decorria da boa fé que o único valor pelo qual o banco alguma vez poderia aceitar o imóvel tinha de ser €117.500,00, porque era esse o valor que estava na base da relação jurídica conforme determinada no seu início. Mas, de novo, não procedeu a uma análise sobre alocação de risco de desvalorização do imóvel e por conta de quem é que este devia correr, nem levou em devida consideração que tinha havido uma venda judicial e que o imóvel em questão apenas tinha conseguido obter uma proposta pelo 70% do valor de base quando colocado à venda.
Na prática, isto redundaria numa espécie de obrigação do banco sistematicamente proceder a reavaliações do imóvel e a informar o devedor de que o imóvel se tinha vindo a desvalorizar, ou caso contrário deveria considerar-se que o banco correria o risco da desvalorização do imóvel - o que não só aumentaria os custos dos empréstimos, como não faz grande sentido. Não tinha ficado no contrato que o valor do prédio ficaria fixado para todo o sempre em € 117.500,00 - esse era o valor do prédio no ano em que teve lugar o empréstimo.
Não vejo que tenha existido qualquer enriquecimento sem causa (em qualquer modalidade), nem que tenha sido quebrada a correspondência entre a prestação e a contra-prestação. A pessoa pediu um empréstimo ao banco e comprometeu-se a pagá-lo de volta com juros - é este o negócio jurídico que se encontra aqui em causa. E a pessoa recebeu o empréstimo e tornou-se proprietário da casa. Mais tarde, a casa passou para o banco por um valor inferior do que aquele pelo qual tinha sido avaliada originalmente. Mas isso, só por si, não transfere o risco do investimento na casa para o banco.
Simpatizo com o juiz de Portalegre e compreendo porque é que tomou a decisão que tomou. Mas por muito bem escrita, de um ponto de vista retórico, que esteja a decisão, ela não tomou em conta uma série de questões jurídicas e económicas relevantes. Sendo que, já agora, não considero por princípio errado que existam regras que facilitem o pagamento em casos especiais - tudo depende das regras concretas que sejam definidas.
Um breve apontamento ainda sobre a decisão espanhola. Nessa decisão, um tribunal de 2.ª instância de Navarra considerou que, mesmo não existindo abuso de direito (contrariamente ao juízo de execução espanhol em 1.ª instância, que considerou que esta tinha existido), porque o banco tinha exercido um direito que legalmente podia ter exercido, o valor do imóvel a considerar para abater à dívida deveria ser o valor aquando do empréstimo (por, tal como em Portugal, ser o único valor constante dos autos). Usou como argumento uma suposta interpretação das normas em causa tendo em atenção o contexto de crise económica e financeira existente em Espanha (em Espanha rebentou uma bolha imobiliária, contrariamente a Portugal), muito causada pelos bancos - na prática, no entanto, não justificou a decisão juridicamente, apenas politicamente.
Resta dizer que estão neste momento em discussão no Parlamento diversos projectos de lei sobre a questão do crédito à habitação e da dação em cumprimento, mas que, de acordo com a informação que tenho recolhido, a situação relativa à entrega de casas aos bancos não é tão dramática como possa parecer pela imprensa (os números habitualmente apresentados incluem entrega de casas nunca completadas, pelo que percebi). Esses projectos de lei têm em comum a ideia de que, existindo uma situação extrema, em que haja um súbito decréscimo do rendimento do agregado familiar, o que torne o pagamento do crédito à habitação mais difícil, existam procedimentos especiais para lidar com essa situação.
Na prática, segundo creio, trata-se de criar uma lei para fazer algo que os bancos já se têm visto forçados a fazer mesmo sem lei. Penso, no entanto, que serão estes projectos de lei que, quando se tornarem lei, terão impacto a longo prazo, mais do que a decisão do Tribunal de Portalegre. Importa, portanto, seguir os debates em torno destes projectos.
Neste sentido, conto ter novidades num futuro próximo. Por agora, agradeço a paciência e simpatia de quem leu este artigo até ao fim!
* Editado: Na versão anterior, dizia que Ricardo Reis me atribuía a interpretação do tribunal no artigo do «link», o que na realidade não fez. Fica a correcção feita.
Eu li este artigo até ao fim e discordo do pressuposto de uma das tuas análises.
ResponderEliminarE esse pressuposto errado ou falso de onde tu partes é que «as pessoas» que obtiveram crédito para aquisição de habitação própria permanente estariam em condições óptimas de avaliar o compromisso que estavam a assumir - a maioria não estava - ou que o bancos em conluio com agências mediadoras imobiliárias e com o próprio estado ( via benefícios que referes e bem ) socorrendo-se de politicas de marketing agressivas não manipularam uma quantidade enorme de pessoas no sentido de adquirirem casa própria.
Eu não estou com isto a desresponsabilizar totalmente quem adquiriu casa própria imbuído de um espírito de bom pagador, das responsabilidades que assumiu, só não aceito é que sejam estes a suportar o risco de desvalorização do ACTIVO subjacente ao crédito porque quem empresta está à partida em melhores condições de poder prever eventuais desvalorizações futuras do que quem contrai o empréstimo.
Nesse sentido, e no meu entender esse diferencial entre o preço de aquisição e o valor actual de mercado deve ser assumido por ambas as partes, mas pelo banco nunca menos de 2/3.
Que houve incentivos públicos para compra de casa a crédito estamos de acordo, e acrescentaria que o próprio estado do mercado de arrendamento contribuiu para a compra de casa a crédito. Disto não retiro que deva existir uma diferente alocação de risco - quem comprou a casa tornou-se proprietário da casa, não o banco.
EliminarO banco, aliás, não quer a casa - o banco quer dinheiro. O banco investiu no empréstimo, que é garantido em primeira linha pela casa, mas também pelo restante património do devedor.
O risco que o banco corre é da pessoa a quem emprestou dinheiro não lhe conseguir pagar o dinheiro de volta, com juros. Foi esse risco que o banco assumiu com o empréstimo. Foi essa regra, pelo menos, que o banco assumiu quando emprestou dinheiro (parece-me que, no mínimo, fazer o banco assumir um risco não reflectido no preço do empréstimo por decisão do tribunal após o empréstimo é problemático e cria instabilidade).
Quanto às campanhas de marketing, já existem leis sobre publicidade e leis sobre protecção do consumidor. E de qualquer forma, parece-me que a existência de publicidade não deve desresponsabilizar a pessoa das decisões de investimento que toma da forma que sugeres.
João, esclarece-me aqui uma coisa. O tribunal tomou em consideração a desvalorização do mercado em geral ? Parece-me injusto se não o tiver feito. O banco fez a sua avaliação, mas não devia ser penalizado pela desvalorização. Esse risco deve ser tomado pelo proprietário.
ResponderEliminarNão, o tribunal fez o banco correr o risco da desvalorização.
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