A decisão do juiz de Portalegre que tem sido discutida recentemente tem sido caracterizada da seguinte forma:
- o juiz decidiu que basta entregar a casa e a dívida está liquidada;
- a decisão pode «fazer jurisprudência».
Quanto ao segundo ponto, basta dizer que não existe precedente em Portugal, e que portanto qualquer interpretação legal de um certo tribunal pode ou não ser acolhida por outro tribunal consoante lhe aprouver. (Os tribunais inferiores têm de respeitar as decisões de tribunais superiores em caso de recurso, mas não é isso que está aqui em causa.)
Relativamente ao primeiro ponto, o juiz de Portalegre não decidiu que basta entregar a casa e a dívida ao banco está liquidada da forma que a cobertura mediática faz crer. Não estava em causa, na decisão, uma simples dação em cumprimento em que a avaliação do banco foi ignorada pelo tribunal e bastou entregar a casa para a dívida ficar saldada. Estava em causa uma venda judicial, em que o banco (credor hipotecário da dívida) adquiriu, nessa mesma venda judicial, o imóvel em causa, por preço inferior ao valor que atribuía à dívida.
Aquando da decisão de vender o referido imóvel, foi decidido que seriam aceites propostas correspondentes a 70% do valor patrimonial do imóvel, decisão da qual o banco não reclamou nem impugnou. Subsequentemente, o banco adquiriu o imóvel em causa, que estava avaliado em € 117.500,00 (valor que o banco nunca colocou em causa), por € 82.500,00 (a dívida total ascendia a um valor ainda superior aos € 117.500,00), precisamente através da venda judicial. O banco veio então dizer que a venda judicial ainda não tinha sido suficiente para ressarcir a sua dívida total e portanto exigir o remanescente.
O juiz veio dizer que é um abuso de direito um credor, neste caso o banco, adquirir em venda judicial um imóvel por preço inferior àquele que originalmente atribuiu ao mesmo, invocando posteriormente que a dívida que se mantinha devia incluir o valor em falta entre o total da dívida e o preço pago pelo imóvel aquando da venda judicial. A venda judicial do imóvel deveria abater, neste caso, os € 117.500,00 à dívida total, e não os € 82.500,00 pagos pelo banco.
O tribunal invoca os seguintes argumentos para suportar a sua posição:
- Para tutela da boa fé, deve ser dada primazia ao valor de € 117.500,00 em relação ao valor mais baixo pago pelo banco. Citando a decisão: «Os inventariados são hoje devedores de uma determinada quantia para aquisição de um bem [o imóvel] do qual já não dispõem e que reverteu ao credor da dívida por um valor substancialmente inferior àquele que configura a sua obrigação e que consubstanciou a materialidade subjacente da relação contratual: o valor patrimonial de 117.500,00€. É a este valor do bem, mercê da aquisição pelo credor hipotecário, que deve ser dada primazia pela materialidade subjacente na tutela judicial.»
- Existiria um enriquecimento em causa (o tribunal chama-lhe «enriquecimento injustificado») caso não se tivesse em causa o valor de € 117.500,00. Citando de novo a decisão: «Julgamos, pois, que, se a responsabilidade obrigacional dos inventariados deriva do mútuo de escopo para aquisição de habitação própria no valor de 117.500,00€; se o Banco …, S.A. é credor dos inventariados em função de mútuo de escopo para aquisição de habitação própria no valor de 117.500,00€; se o incumprimento que funda a qualidade de credor do Banco …, S.A. deriva de mútuo de escopo para aquisição de habitação própria no valor de 117.500,00€; então a perda desse resultado pelos inventariados e a aquisição dessa utilidade pelo credor deve ser considerada e contabilizada para o prosseguimento da dívida, abatendo-se ao passivo global.»
- Existiria «uma descaracterização da correspectividade entre o dever de prestar dos inventariados e o direito à prestação do credor. (...) No caso dos autos, o dever de prestar foi realizado através da acção creditória e da venda coactiva, ainda que enxertada em processo de inventário.»
Em relação ao terceiro ponto, importa citar ainda, em particular, o seguinte (negritos meus):
«Permitir que os inventariados sejam responsabilizados pelo incumprimento da prestação, perdendo a disposição do bem por um valor marcadamente inferior ao valor referencial daquele mesmo incumprimento redundaria, cremos nós, na afirmação de que autonomia privada pode, para o sistema judicial, significar arbitrariedade privada.
De contrário, querendo ter um bem, para exercício de direito constitucionalmente garantido, de um certo valor, acordaram em vincular-se pelo mesmo valor, comprometendo-se à entrega remuneratória desse valor e ao pagamento dos danos do incumprimento, onerando o bem, os inventariados, após tutela executiva, ficariam sem esse mesmo bem, desvalorizado em 30%, sem que a dívida reflectisse essa desconsideração.
Como se sublinhou, o acento tónico deste desequilíbrio no exercício nem está tanto na aquisição por 70% do valor do bem, mas sim pela adjudicação por esse valor ao próprio credor hipotecário do mútuo de escopo, único credor do património comum dos inventariados; conjugado com a sua liberdade de estipulação desse valor no empréstimo e com a conformação desse valor em termos patrimoniais.
Atente-se que não se trata de afirmar que aquele valor se identifica com o valor real, mas sim de acentuar que aquele valor conformou o dever de prestar dos inventariados e, bem assim, o valor do incumprimento.»
Em consequência, o tribunal considerou que o banco não podia exigir € 46.356,91 ao devedor, porque o valor a ter em conta para «abater» à dívida deveria ser o valor de € 117.500,00 e não de € 82.500,00.
E agora vem uma parte particularmente interessante da decisão, que passo a citar (de novo, negritos meus):
«É também por este acervo de razões que a pretensão do Requerente, R…, não pode, proceder, tout court, desde logo pela natureza e estrutura do direito de crédito tal como se encontra positivado no art.º 397.º do C.C., através do qual a obrigação creditícia compreende um vínculo jurídico em virtude o qual uma pessoa fica adstrita para com a outra à realização de uma prestação.
Reconhecendo-se que o credor não tem qualquer direito sobre os bens do devedor, parece claro que tem que se reconhecer-lhe um direito subjectivo à prestação, uma vez que o devedor está vinculado ao seu cumprimento, sendo que a existência de um direito apenas depende do seu reconhecimento por uma norma, independentemente de ser garantido por uma sanção e muito menos por uma sanção com plena eficácia (GOMES DA SILVA, citado em MENEZES LEITÃO, Direito das Obrigações, Volume I, 3.ª Edição, Almedina, pág. 91 e 92, após análise crítica das teorias realista, personalista e mistas da obrigação.).
O objecto desta decisão envolve somente o modo de exercício do direito de crédito pelo credor Banco …, S.A. após a adjudicação em processo de inventário, pelo que não nos cabe sindicar a fonte da dívida e a adstrição dos inventariados ao seu cumprimento.
O que vale por dizer que não vemos razão atendível para que a adjudicação do bem acarrete a extinção da obrigação por completo.
Mais se diga que o passivo compreende o incumprimento do contrato de mútuo oneroso no valor de 3.550,00€, o qual, apesar de garantido com hipoteca sobre o bem imóvel, não partilha da subsunção jurídica que ora se explanou quanto ao desequilíbrio no exercício do direito de crédito face ao contrato de mútuo oneroso pela quantia de 117.500,00€.
Assim, considerando o valor patrimonial do bem adjudicado nos autos – 117.500,00€; o valor da adjudicação – 82.250,00€; a posição do adquirente enquanto credor hipotecário de empréstimo concedido aos inventariados no valor de 117.500,00€ e o valor do passivo aprovado antes da adjudicação –129.521,52€, considerando que não há divergência quanto ao incumprimento mútuo com hipoteca no montante de 3.550,00€ (três mil e quinhentos e cinquenta euros); entendemos que deve ser reconhecida a dívida dos inventariados, E… e R…, ao Banco …, S.A. no valor de 12.021,52€ (doze mil e vinte e um euros e cinquenta e dois cêntimos), resultante da subtracção de 117.500,00€ – valor patrimonial do bem adjudicado, ao passivo anteriormente aprovado de 129.521,52€.
Note-se, porém, que o juiz, no processo de inventário limita-se, no caso considerado [rejeitadas por unanimidade], a reconhecer ou não a existência da dívida (…) reconhecida judicialmente (…), a declaração do juiz de que os credores ficariam com o direito a receber pelos meios comuns, quer significar que, não tendo os credores pedido o respectivo pagamento no inventário, lhes fica assegurado o direito de receberem os seus créditos, mediante execução (…) deve também entender-se que a tais dívidas se aplica a mesma doutrina que, para as aprovadas unanimemente, ficou declarada no art. 1554.º (LOPES CARDOSO, Partilhas Judiciais, Vol. II, Almedina, pág. 155 e 156).
A prova documental dos autos – escritura de fls. 45 a 49; documento complementar de fls. 50 a 55; escritura de fls. 57 a 60 e documento complementar de fls.61 a 67, quanto à natureza solidária e quanto à exigibilidade da dívida não foi, minimamente, posta em crise louvando-nos do seu valor probatório.»
No final, portanto, o juiz reconheceu a dívida do banco no valor de € 12.021,52 acima mencionada.
Em suma, em causa estava uma venda judicial em que o credor comprou, ele próprio, o bem executado. Esse bem encontrava-se avaliado em € 117.500 pelo próprio credor e o credor aproveitou-se da venda judicial se processar por um valor inferior para o adquirir por € 87.500, vindo depois pedir o remanescente da dívida considerando saldado apenas este último valor. O tribunal considerou que, na prática, banco tinha acabado de adquirir um bem que avaliava em € 117.500 por € 87.500 e queria que os devedores pagassem a diferença entre estes dois valores e o remanescente da dívida (e seria este o valor do enriquecimento injustificado) - e considerou esta actuação um abuso de direito. No entanto, no final, abateu os € 117.500 à dívida total, mas reconheceu o remanescente como estando ainda em dívida.
Ou seja, contrariamente ao que por aí tem sido dito, o tribunal não decidiu que basta entregar a casa para que a dívida se considere saldada - antes pelo contrário! Divulgar a decisão de forma deturpada em nada ajudou a esclarecer a opinião pública, tendo aliás o efeito de perverso provável de ter induzido em erro todas as pessoas que a decisão iria «ajudar» (não ajuda) por «poder criar jurisprudência» (não cria).
No caso de uma hipoteca de €256.000,00, sobre um imóvel avaliado pelo banco em €410.000,00, o banco fica com imóvel pelo valor da divida? e não tem que devolver o remanescente ao proprietário??
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