sexta-feira, 28 de janeiro de 2011

Da liberdade

A discussão é recorrente: alguns meses antes das eleições, os candidatos começam a pedir aos eleitores que votem. A poucos dias da coisa, o pedido – repetido ad náusea – assume carácter de súplica. No dia das eleições, uma boa porção do País não vai às urnas. E em todas as eleições, os comentadores políticos, os cientistas políticos e os próprios políticos alertam para a necessidade de reflectir sobre os resultados da abstenção. Já para o povo em geral, os resultados da abstenção são claríssimos e resultam de uma categorização social simples: enquanto quem se desloca à Junta de Freguesia é pouco menos que um santo, sobretudo se estiver a chover, se fizer frio ou se jogar o Benfica, a trupe de bandalhos desinteressados que prefere ficar “com os cornos na cama”, que passa o Domingo na praia ou que escolhe ficar em casa “porque sim” merece mais do que o mais profundo desprezo a que é votado: merece inclusão imediata na categoria de “cidadão de segunda”.
A história parece surreal, mas uma rápida passagem pelas redes sociais demonstra, com atroz rapidez, que a realidade não anda longe. Aqueles que ousaram admitir ter ficado em casa foram besuntados com o sermão da cidadania. E os que confessaram, ajoelhados sobre milho, não ter ido votar por considerarem os candidatos miseráveis, foram rapidamente exortados a interessar-se, a participar e – tenho provas – a pensar nos pobrezinhos africanos e asiáticos que não vivem em regimes democráticos [pausa para uma Nobre lágrima]. Curiosamente, quem se deslocou à respectiva Junta para colar uma fotografia do Chuck Norris no boletim de voto, dessa forma ridicularizando o acto de votar e, por inerência, o processo que lhe dá azo, passou por inteligente, brilhante e, até, genial.
Bem sei, bem sei: as redes sociais não fornecem uma amostra razoável da sociedade portuguesa, no que se parecem muito com as empresas de sondagens. Mas revelam, com notável acuidade, como se entende a liberdade entre pares. Não interessa a qualidade dos candidatos. Não importa que o voto seja um direito, que pode, ou não, ser exercido consoante escolha individual. Interessa votar. Mais do que votar, ir. E, se possível, caricaturar o processo, fotografar a caricatura e esperar pelos elogios virtuais.

Não se pretende negar aqui a importância do voto, mas – sobretudo - rejeitar a radicalização do mesmo. Numa sociedade cada vez mais “higienizada”, é fundamental que um cidadão continue a sê-lo, mesmo que decida não dobrar o papelinho. Seja por que razões for. Trata-se de uma decisão assente na liberdade individual de cada um, cujas consequências por cada um devem ser assumidas. E quando assim deixar de ser, francamente, vale mais darmos um tiro na cabeça.

3 comentários:

  1. Caro João, se quiser poderei fornecer-lhe a dita arma que necessita para cumprir o seu desígnio.
    Naturalmente a frase acima é apenas uma brincadeira.
    Mas brincar com o voto e com o valor desse instrumento é de facto brincar com o fogo. Clamar a liberdade de não votar como essencial para valorizar a de votar, é u mesmo que valorizar a ignorância para valorizar o conhecimento, ou seja aprofundar um para demonstrar o outro, quando o caminho é sempre para fazer crescer o primeiro encolher o segundo.
    Ninguém é obrigado a concordar com as candcidaturas apresentadas a uma eleição, mas se existe uma sistematização do comportamento abstencionista existem perguntas a levantar e não nos podemos contentar com a constatação de que é um exercício de liberdade. Afinal em extremo iremos estar a advogar a liberdade de fazer tudo o que nos dá na real gana.

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  2. Caro Sérgio,

    Não disse que, para valorizar a liberdade de votar, é importante exaltar a de não votar. Disse que os que não votam também têm direito a uma existência livre de execuções públicas e de julgamentos contínuos, assentes única e exclusivamente no preconceito de que quem não vota é calão ou desinteressado. O que não é - de todo - verdade. E, para que fique claro, desde que a minha liberdade não interfira com a de terceiros, entendo que posso fazer o que me der na real gana.

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  3. Caro João
    Aqui ficou claro o que está implícito no meu comentário, é o facto de ser urgente reflectir até que ponto o acto de não votar está a interferir na liberdade de voto, pelo facto de diminuir, amesquinhar e empobrecer a democracia. A minha dúvida - e sublinho dúvida, não certeza, mas dúvida - é até que ponto é que a liberdade de não votar não está a prejudicar - e assim a condicionar - a liberdade de voto, pelo inquinar da própria democracia?

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