domingo, 30 de janeiro de 2011

Sócrates Rei

«Édipo – (...) E faço votos solenes para que o assassino, quer tenha sido um só, que passou despercebido, quer tenha tido cúmplices, consuma infeliz a sua vida no infortúnio e na desgraça. Desejo, também, se ele viesse habitar no meu palácio com meu conhecimento, sofrer eu mesmo os castigos que agora anunciei.», Sófocles, Rei Édipo, tradução de Maria do Céu Zambujo Fialho, 4ª ed., Lisboa, Edições 70, 1999, vv.246-251.

  Édipo, rei de Tebas, sabe que para expiar a sua cidade maculada pelo homicida de Laio, o anterior rei da cidade e primeiro marido da rainha Jocasta, agora sua mulher, o deverá encontrar e forçar ao exílio. Mas ainda não sabe que o procurado é ele próprio. As personagens da trama do destino, Laio, Jocasta e Édipo, têm dele um conhecimento parcial, e pelo desenrolar da peça, descobrimos que sempre actuaram em sua função para o evitar. Porém todas as tentativas de o fazer concretizaram os mesmos desígnios que procuraram desviar. Não demorará muito tempo, o detective descobrirá ser ele mesmo o criminoso. Resta-lhe cumprir a palavra e se exilar.
  Em que se relaciona esta peça com o nosso primeiro-ministro? Agora que acabaram as presidenciais e a nossa política nacional normaliza, olhemos de novo para ele, para a face da crise, da incompetência, da pobreza da actividade política. Repetidamente ouvimos dizer que estão a fazer tudo, que o governo procura fazer tudo o necessário para retirar o país da situação. Reformas, que seriam “estruturais”. Estímulos à economia. Liberalização das leis laborais, dos despedimentos... It's bullshit and you know it. E ainda é mais insultuoso tendo em conta a maioria absoluta que de reformas necessárias nada, e de complicar toda a situação muito.
  Assim declaro uma premissa: ou o governo e o primeiro ministro ou são necessariamente mal-intencionados (e portanto tiveram interesse em não mudar a situação) ou são simplesmente uns incompetentes (foram honestos em achar que as suas medidas eram o certo a fazer, dado o conhecimento parcial do destino nacional), e por isso trágicos. De qualquer forma, se procuram agora expiar o país do mal, terão de se exilar?
  Tomemos por exemplo as posições sucessivas com a “crise”: 1- Não existia, uma vez que não chegará (porque Portugal é um oásis) e que o governo vencera a crise anterior (e portanto toca a baixar impostos); 2- Existe, mas não chegará (porque Portugal está preparado); 3- Chegou a crise, mas Portugal resistirá (porque o estado social “funciona”); 4-Chegou, o estado social falhou, mas toca a fazer medidas duvidosas de estímulo à economia (porque temos as contas públicas em ordem); 5-Afinal não temos as contas públicas em ordem, mas este esforço chegará; 6-Afinal este primeiro esforço não chega e são necessárias novas medidas e temos de por as contas públicas em ordem (porque esse malvados mercados recusam-se a emprestar dinheiro a um governo tão honesto como nós). Esta é claramente uma situação em que o governo ou é incompetente ou tem simplesmente interesse em que tudo falhe.
  Eu sou dos que acha que o governo não é “malvado”, mas sim trágico. A incompetência é de tal maneira grave, de tal maneira constante, de erros em todas as áreas, que não pode ser maldade. O ministério da administração interna é um bom exemplo. No caso dos blindados que não chegaram, de dúbia necessidade, e que podem levar os contribuintes em tempo de crise fiscal a pagar uma indemnização muito maior que o preço de compra se rejeitar a transacção, conforme o contracto que assinaram, e que se assim for, nem leram. Nas eleições domingo passado, puseram em causa o direito de voto de muitos portugueses. É que este governo nem eleições é capaz de organizar. (o mínimo necessário?)
  Apesar de também existirem exemplos que sustentam a tese da maldade do governo, como as mentiras à assembleia no caso da PT e nos voos da CIA ou as revisões do código de processo penal a meio do processo casa pia e o seu resultado prático, sou um adepto da tese do governo trágico. De um bando de incompetentes, que não sabem o que fazem, que procuram o poder, e que são os culpados da situação que o país espera que eles mesmos solucionem. Ou seja, o governo-Édipo, eleito para limpar combater essa direita-esfinge de Santana Lopes e Paulo Portas, acabou por trazer a mácula à lusa Tebas, que agora suplicantes, esperamos que Sócrates Rei resolva. Estará ele consciente que poderá ele mesmo ser a crise política que tanto se diz procurar evitar? Que enquanto ele lá estiver falar-se-á da capacidade do governo em gerir a crise que ele provocou, não impediu, negou, mentiu?
  E nós, devemos ter pena destes pobres coitados, que estavam mesmo convencidos que não havia crise? Coitados dos pobres ministros que acham que o país das autoestradas para nenhures necessita de um TGV para todo o lado. Sócrates pode não ser o responsável por tudo o que o seu governo fez de mal, mas como ele se tornou na caricatura de toda a comicidade deste governo, de tudo o que está mal no país e na política, e que acima de tudo se chama... Sócrates, não há apologia que o salve. Mas por outro lado como podíamos esperar uma verdadeira reforma na educação de um homem que não teve de estudar para tirar um curso, ou uma verdadeira preocupação com o desemprego de alguém que de carreira foi tacho e tacho dentro do partido? A própria mitologia do primeiro ministro joga contra ele.
  Pois será que vez alguma mito de primeiro ministro, ouvindo os avisos de inúmeras personalidades políticas e da sociedade civil sobre o mau caminho que guiava o país, ignorou e criticou tais vozes porque ele é o Rei e os outros dizem mentiras, são loucos, querem tomar o poder e dizem e conspiram seja o que for para o conseguir? Estará cego? E mais importante: devemos aceitar um primeiro ministro que erra porque não sabe o que faz, e tolerar o homem exactamente porque não sabe o que faz e é desinteressado no erro?

«Creonte – Será que não compreendes?
Édipo – Governar é o que devo!
Creonte – Não decerto governar no erro!», Idem, ibidem, vv.628-629

  A nossa democracia, o nosso sistema, Portugal-Tebas como nação cívico-política está doente. Mas esse diagnostico não é apenas consequência da elevada abstenção e suas intermináveis análises. Não é apenas porque temos a percepção que os competentes fogem e são afastados da política para darem lugares a talking heads e seus capangas. Não é apenas porque a consciência democrática e ética republicana estão totalmente ausentes dos nossos valores. Em parte, o nosso sistema também criou mecanismos e protocolos, formais e informais, que esconde atrás da retórica da estabilidade uma tolerância e uma incapacidade de lidar com corruptos, incompetentes e mentirosos no poder. E enquanto isto acontecer, o voto será desvalorizado, os bons encontrarão anticorpos no sistema contra eles, e a ética em que o regime se sustenta torna-se anacrónica perante a praxis que a perverte e claramente não a partilha. Uma democracia disfuncional que é clemente com o erro, trágico ou cómico perde a sua própria legitimidade.
  Deve então um Presidente da República demitir Édipo? A esta questão, que esteve (e bem) numa parte da campanha, a resposta desses recém-descobertos apologistas da estabilidade é negativa. O absurdo desta resposta é simples: o Presidente da Républica é o garante da estabilidade exactamente porque ele pode demitir o governo que erra constantemente, uma vez que desse modo existe um novo governo e o poder não cai num vazio, e não pela ideia absurda que a estabilidade é conseguida exactamente por ter um poder e propositadamente não o usar para impedir a incompetência, a mentira e a corrupção. Não faz sentido algum o não exercer o poder da estabilidade ser de momento "estabilidade". Senhor Silva, acha que colaborar com a incompetência é o garante da estabilidade?
  Sócrates esteve em estado de graça e caiu. E o seu estado levou-nos com ele. Da justiça à educação, finanças à saúde, tudo falhou. Tivemos uma péssima campanha eleitoral, mas não, o governo não admitiu que toda a incompetência fosse hegemonia dos candidatos. Aparentemente não foi possível serem políticos a sério por um só dia. É mais forte que eles! Férreo destino. Foi necessário provar que eles também não sabem governar Tebas, e que o seu plano tecnológico pôs em causa um direito fundamental. "Estabilidade". Bravo.

«Tirésias - De verdade? Exorto-te a que mantenhas a proclamação que anunciaste e que a partir deste dia não dirijas a palavra nem a estes anciãos nem a mim, pois desta terra tu foste a poluição sacrílega», Idem, ibidem, vv.350-353.

1 comentário:

  1. Excelente texto, sem dúvida. Destaco em suma ( e sem querer desconsiderar de forma alguma a riqueza do texto ) que as sementes do veneno estão dentro do próprio sistema.

    Mais do que «reinventar» a estabilidade recorrendo quase sempre e só ao menos mau de todos os males possiveis, será necessário uma profunda mudança da própria democracia, que das duas uma ou evolui durante a actual década ( 2010-2020), para uma Democracia 2.0, com uma reforma profunda do sistema eleitoral, governativo / constitucional, ou acabará por perecer ás «mãos» das forças tão vivas quanto impacientes, desorganizadas e frágeis da sociedade que somos.

    Uma sociedade cada vez mais dividida entre os «haves» e os «havenots».

    Uma certeza eu tenho. O futuro não pertence a DEUS. Está nas nossas mãos, no que somos, na nossa atitude, na coerência entre os valores que apregoamos e defendemos e os que «usamos» no nosso dia a dia. Os governantes que temos são o espelho do que somos. Não temos os governantes que queremos temos os que merecemos.

    Que a razão nos ilumine, a coragem nos incentive, e a sensatez não nos abandone.

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