segunda-feira, 7 de novembro de 2011

A curva de Laffer

Há um par de semanas, pouco depois do anúncio das linhas gerais do OE12, ouvia eu dois ilustres opinion makers da nossa praça a dizerem um para o outro qualquer coisa como isto:


- Com este nível brutal da carga fiscal, vamos claramente ultrapassar o pico da curva de Laffer, blá-blá-blá.


- Acha? Pois eu tenho a certeza que já o ultrapassámos há muito tempo, yadda-yadda.


O que é afinal, basicamente, a curva de Laffer? A curva de Laffer é uma construção teórica, uma relação hipotética entre o nível (taxa) dos impostos sobre o rendimento, e o total da receita obtida através deles.


A hipótese é a de que com o aumento da taxa, a receita só aumenta até certo ponto, t*, a partir do qual se tem uma situação, no mínimo, paradoxal: um aumento da taxa gera, mesmo no curto prazo, uma diminuição da receita total, até ao caso extremo, em que, com uma taxa de 100 por cento, a receita obtida seria 0.


A ideia é que uma alteração na taxa tem dois efeitos associados, um “aritmético”, correspondente à alteração na dimensão da porção a ser taxada do rendimento e um “económico”, associado à repercussão que tal alteração, positiva ou negativa, tem nos incentivos à participação na actividade económica, ou seja, no rendimento obtido depois de impostos, seja do trabalho, seja do capital. Já para não falar no putativo efeito sobre a fuga de capitais para paraísos fiscais, incentivos à economia informal/fraude fiscal, and so on.


Até aqui tudo parece bastante razoável. Contudo, voltando um parágrafo atrás, vejamos: se num ponto em que a taxa é maior que o t*, um aumento da taxa gera uma diminuição da receita, tal implica logicamente que uma diminuição da taxa geraria... um aumento da receita total? A sério?


Pensarmos que, por cá, o peso relativo do Estado na actividade económica é um factor decisivo para a sua actual situação de fragilidade, não justifica ter a desfaçatez de aventar algo deste género. Uma coisa é afirmar que o aumento da carga fiscal poderá ter associada uma diminuição numa parte dessa actividade (no fundo, o tal “efeito económico”), sobretudo no contexto actual em que em conjunto com o aumento dos impostos temos uma redução maciça no investimento público e nalgumas transferências.


Outra é pensar-se que esse impacto seja tal que uma escalada marginal da taxa de imposto faça descer a receita obtida no total! Isso quereria dizer uma de duas coisas: ou que o rendimento/actividade decresceria de tal forma, ou que a malta começava a fugir de tal modo, que compensasse o aumento da taxa. Melhor ainda: se se diminuísse a carga fiscal para o próximo ano, a receita do Estado crescia por magia...


Obviamente que isto poderia hipoteticamente ter alguma ligação com a realidade, em casos extremos, com taxas impossivelmente grandes, que a existirem não estão documentados. Obviamente que a nossa carga fiscal é enorme, mas até há, imagine-se, maiores.Obviamente que a receita do Estado no próximo ano será menor que no corrente, tal como a neste será menor que em 2010. Esta evolução é, portanto, inversa à do nível de imposto sobre o rendimento, com os sucessivos pacotes de austeridade. O que não significa que haja uma relação significativa de causalidade entre as duas.


Reza a lenda que esta ideia foi apresentada a figuras como Dick Cheney pelo sr. Laffer, esboçando a tal curva num guardanapo de cocktail no Washington Hotel, tendo depois vindo a fazer parte do rationale por detrás das políticas supply-side que Reagan levaria a cabo sobretudo nos seus primeiros anos de mandato. Se os resultados dessas políticas foram positivos, é uma questão que ainda hoje é alvo de debate. Que a teoria ou “técnica” serviu de desculpa às intenções políticas, e não como justificação ou sustentação real, é ponto assente.


Felizmente, por cá, serve de desculpa só mesmo para dizer mal.


Mais sobre a curva de Laffer (leia-se, num artigo pelo próprio) aqui.

2 comentários:

  1. Há um efeito não considerado no seu texto. A redução dos vencimentos dos funcionários públicos vai causar um efeito imitação no sector privado, sendo que milhares de empresas se preparam para não pagar o 13º mês, porque simplesmente não têem por onde pagar.

    Embora entreguem os 3,5% de IRS extraordinário ao estado, no acerto de contas a ocorrer em 2012 sobre o ano de 2011, os trabalhadores serão ressarcidos de boa parte desse valor, porque a Base Tributável em sede de IRS irá decrescer já em 2011, como já aconteceu em 2010, e em 2012, essa redução será superior, porque as mesmas empresas que não irão pagar o 13º mês, não estarão em condições financeiras de pagar o subsidio de férias e o 13º mês.

    Outro efeito que não está considerado no seu texto é a fuga fiscal por parte dos que obtêm maiores rendimentos, devidamente suportada pelas off-shores ao seu dispor.

    O nível de fiscalidade em toda a Europa, já ultrapassou há muito tempo o pico da curva de laffer. Em Portugal estamos no 4º ano consecutivo de quebra acentuada do investimento privado, e com este nível de carga fiscal iremos entrar em breve no 5º.

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  2. Olá Carlos,

    Muito obrigado por ter lido e pelo pertinente comentário. Antes de mais, convém frisar que este meu artigo entra sem dúvida para a mesma categoria de intervenções que pretende criticar, a das feitas de forma assertivamente sobranceira sem qualquer fundamento para tal. A diferença é que, deo gratias, eu não faço opinião.

    De resto, vou tentar contribuir com os meus dois cêntimos (de euro (-: ) em resposta aos pontos que coloca. Quanto à redução dos vencimentos dos funcionários públicos, é um facto que esse efeito terá lugar, ainda que, tenho para mim, de uma forma relativamente residual, já que boa parte das empresas que actualmente se vêem obrigadas ou por outra, num contexto propício a isso já o fazem.

    Seja como for, isto é, independentemente de se poder considerar, sim, esse "corte" como o que é essencialmente um imposto "encapotado" (isto porque se admite que esse ~1/7 do vencimento será restabelecido assim que possível), e independentemente da redução, sim, da base tributável/IRS devida não só ao efeito que refere, mas mais até à própria diminuição do consumo privado que deriva directamente da redução substancial dos vencimentos - tudo isto já foge ao âmbito da curva de Laffer que, insisto, visa apenas estabelecer a relação entre taxa (média) de imposto sobre o rendimento e o bolo da *receita fiscal*, e nada mais.

    Ou seja: a receita do Estado diminuirá no prox. ano. As taxas associadas ao rendimento aumentarão. No entanto, a receita será certamente maior do que seria se estes impostos não fossem aumentados.

    Aliás, a própria evaporação de capitais para os barbudos Barbados deste mundo, somada à fraude fiscal, fuga ao fisco etc., que hoje acaba por ser o principal argumento que sustenta o tal pico da curva, nem sequer estava presente no mindset de Laffer, que tinha em mente apenas os efeitos na actividade económica do aumento da taxa, até pelo contexto em que a ideia surge, num país com uma cultura, em termos relativos, pouco propícia à economia informal/fraude fiscal, e com uma carga fiscal muito magra pelos padrões actuais.

    De facto, talvez tenha focado muito pouco essa questão, mas no fundo o que penso é que apesar da nossa cultura extraordinariamente permissiva e até indutiva relativamente à fraude fiscal e à economia informal, seria preciso estarmos num nível de taxas de imposto impossível para que uma alteração marginal nestas produzisse um efeito tal na porção das trocas de bens e serviços que o Estado "nem cheira" que levasse a uma variação no sentido inverso no total da receita.

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