terça-feira, 25 de dezembro de 2018

A diversidade que nos enriquece

Cada um de nós, seres humanos, é um indivíduo, único e irrepetível. Cada um de nós tem as suas ideias, as suas preferências, as suas necessidades, os seus interesses, os seus valores, e a sua vontade. E a nossa individualidade deve ser, em princípio, reconhecida e respeitada.

As comunidades humanas são feitas de diversidade. Por muito homogéneas que aparentem ser, são sempre formadas por vários grupos, e esses grupos são sempre constituídos por indivíduos. E esses indivíduos são sempre diferentes. Cada um de nós integra vários grupos. Mas nem por isso perde a sua individualidade.

Ao mesmo tempo que todos somos diferentes, e devemos reconhecer e respeitar a individualidade de cada um, todos partilhamos algo em comum: a nossa humanidade. Por muito diferentes que sejamos enquanto indivíduos, e quaisquer que sejam os outros grupos a que pertençamos, todos somos seres humanos. E a nossa humanidade comum deve ser reconhecida e respeitada. Todos devemos, em princípio, ver as nossas liberdades respeitadas de igual modo, sem distinções arbitrárias.

As democracias liberais reconhecem e respeitam a liberdade individual, por um lado, e a humanidade comum de todos os seres humanos, por outro. Ambos servem de limites à soberania popular. O povo, o conjunto dos cidadãos, é soberano, mas não pode arbitrariamente violar a liberdade de cada um de nós viver a nossa vida como entender melhor. Essa intervenção deve ser validamente justificada, e proporcional ao objetivo que pretende atingir.

Claro que entre o indivíduo e a humanidade como um todo existe uma miríade de grupos. Podemos subdividir a humanidade em grupos segundo o género, a idade, a etnia, a raça, a orientação sexual, a nacionalidade, a cultura, a classe social, a família, o tipo de emprego, a licenciatura, o QI, vários tipos de personalidade (segundo vários testes diferentes), a ideologia política, os interesses artísticos, musicais ou desportivos, entre muitos, muitos outros (incluindo interseções entre os vários grupos). Não faltam formas de nos catalogarmos em grupos, se quisermos.

No entanto, a forma de todos os indivíduos conseguirem viver em comum, apesar das suas diferenças, passa por respeitar a sua liberdade individual, enfatizando a sua humanidade comum. Passa por reconhecer que todos somos diferentes, mas todos somos iguais. Passa pelo reconhecimento de que estamos todos juntos, no mesmo barco, à procura de um futuro melhor, e que todos temos, em princípio, o direito de o fazer. Passa por adotar uma perspetiva cosmopolita, aberta e dialogante.

As ideologias identitárias, à esquerda e à direita, destroem este terreiro comum, absolutamente crucial ao bom funcionamento das nossas democracias liberais. Abolem o indivíduo do discurso político, focam-se naquilo que nos distingue, e não naquilo que nos une, e negam o direito à divergência dentro dos respetivos grupos. O mundo humano é dividido em grupos absolutamente homogéneos e estanques (e aqueles que se desviem do preconceito grupal são tratados como apóstatas). O diálogo com outros grupos é considerado uma traição. A liberdade de consciência e de expressão cedem perante o pensamento único e o controlo do discurso (incluindo censura com base na moral e bons costumes, ou no que certo grupo entende como sendo politicamente correto).

Os discursos identitários, à esquerda e à direita, promovem o medo, a intolerância, o preconceito, os estereótipos, a diabolização do outro, a incompreensão mútua, e a inexistência de compromissos. São discursos marcados por apelos à pureza ideológica e ao ódio a grupos vistos como rivais a aniquilar. O objetivo é a criação de um paraíso terrestre, sempre ao virar da esquina se toda a gente pensar como os membros do grupo. E, entre os mais extremistas, este objetivo vem acompanhado de uma justificação ampla para a utilização da violência física.

A xenofobia é um problema. O ódio assente em preconceito, em geral, é um problema. Odiar a civilização ocidental, os valores asiáticos, os americanos, os alemães, os franceses, os gregos, os muçulmanos, os ateus, os cristãos, os judeus, os negros, os brancos, os asiáticos, os capitalistas, os sindicalistas, os heterossexuais, os homossexuais, os liberais, os socialistas, os conservadores, os comunistas, os homens, as mulheres, e um sem número de outros grupos não vai ajudar a resolver problema nenhum.  Antes pelo contrário. É esse ódio que cria o problema, tornando impossível dialogar.

O diálogo é uma parte importante da solução. Um diálogo vigoroso, assente na liberdade de expressão, que permite criar pontes, ultrapassar problemas, atingir compromissos, e unir-nos em torno de objetivos comuns. Um diálogo que permita uma troca acesa de ideias, em que tudo seja passível de crítica, e em que o discurso não seja toldado e limitado, incluindo em nome do chamado “politicamente correto”. As pessoas devem ser tratadas como adultos, como pessoas autónomas e responsáveis. E deve ser ponto assente que, numa comunidade livre, é bem possível que encontremos discurso que consideramos ofensivo, sem que isso nos dê motivo válido e objetivo para o censurar.

A forma de lidar com a diversidade numa comunidade é o compromisso. O compromisso permite a pessoas muito diversas viverem em conjunto em comunidades abertas, vibrantes inovadoras, que aproveitam ao máximo a diversidade existente. O cosmopolitismo, o individualismo (que não deve ser confundido com o egoísmo) e o humanismo são os alicerces destas comunidades, e também das democracias liberais saudáveis.

São também estes os princípios que nos devem orientar sobre a forma como lidar com a questão das migrações, incluindo as migrações em massa. Devemos encarar os migrantes como os indivíduos que são, como seres humanos, tal como nós. Pessoas em busca de uma vida melhor para si e para as suas famílias, demasiadas vezes porque fogem de situações de guerra, ou de carência económica extrema.

É essencial desenvolver, promover e implementar políticas que promovam a integração dos imigrantes na nova comunidade, com todos os benefícios advenientes. Para o efeito, não devemos nem fechar fronteiras e dificultar arbitrariamente a entrada legal (o caminho indicado pelo nacionalismo, especialmente o nacionalismo exacerbado), nem aceitar ou promover a formação de comunidades imigrantes paralelas estanques, que funcionem de acordo com regras diferentes do resto da comunidade (o caminho indicado por uma certa esquerda identitária).

Passos na direção certa incluem: (i) facilitar a sua entrada legal no país, lutando-se assim contra a clandestinidade advinda de uma entrada ilegal; (ii) uma economia com poucas barreiras à entrada (o que permite aos imigrantes facilmente criar e encontrar empregos); (iii) escolas inclusivas; (iv) regras simples e claras para a aquisição da cidadania (em princípio, quem vive num determinado território e integra, de facto, uma determinada comunidade soberana, deve ser titular de direitos civis e políticos, assim se promovendo a sua efetiva integração na comunidade). Como bónus, facilitar a imigração legal contribui para combater as organizações criminosas, com destaque para as especializadas em tráfico de seres humanos, e que se aproveitam da situação de carência e de ilegalidade dos imigrantes para os explorar.

Não presumo que todos os imigrantes são boas pessoas, ou más pessoas. Sei, simplesmente, que são pessoas. Sei que são seres humanos, como eu. E defendo que devem ser tratados como tal. Se eu cometer um crime, devo ser punido. Se um imigrante cometer um crime, deve ser punido. E não vejo motivo para presumir que a vasta maioria dos imigrantes imigra para cometer crimes, porque não tenho dados credíveis que apontem nesse sentido. Antes pelo contrário.

Lidar com a diferença não é fácil. Mas é essencial. A diferença temperada pelo cosmopolitismo (numa aceção humanista e universalista), e pelo diálogo, é um motor de adaptabilidade, de melhoria, de inovação, e de progresso. A homogeneidade fechada sobre si mesma é um motor de incapacidade de adaptação, de degeneração, de estagnação, e de retrocesso.
A união pode bem fazer a força. Mas fá-lo, especialmente, quando acompanhada de diversidade. É essa a diversidade que nos enriquece.

terça-feira, 17 de fevereiro de 2015

Federalismo em tempo de Colisão de Democracias

O Governo grego anunciou que ia rasgar o Memorando de Entendimento. O Primeiro-Ministro e o Ministro das Finanças passearam-se pela Europa a explicar que queriam um empréstimo sem contrapartidas. Sucede que o Memorando que Tsipras e Varoufakis tão avidamente rasgaram era pressuposto da credibilidade grega como Estado cumpridor. Ao anunciar aos sete ventos que iam rasgar o Memorando, essa credibilidade, já abalada, esfumou-se. E, cumprindo as regras estabelecidas, o BCE deixou de aceitar dívida grega como colateral, dificultando a vida à banca grega.


Agora, Tsipras veio reiterar que o seu programa é para cumprir. Que não vai honrar os compromissos anteriormente assumidos pelo Estado grego. E quer ser premiado por isso por aqueles perante quem esses compromissos foram assumidos. Naturalmente que esses, em especial a Alemanha, que tem aliás direito a acusações especiais só para si, fizeram o que se esperava, e, com tanta legitimidade democrática como a de Tsipras, mandaram Tsipras dar uma curva. Só que, quando os Governos democraticamente legitimados de certos países mandam Tsipras dar uma curva, o que aliás se coaduna com a atitude dos respectivos eleitorados, há quem pareça achar que só um lado está democraticamente legitimado. Ora, o Governo alemão e o Governo grego têm ambos legitimidade democrática. Como já vem sendo apontado por outros, encontramo-nos perante uma colisão entre democracias.


Alexis Tsipras e Yanis Varoufakis querem governar outros países europeus a partir da Grécia. Querem forçá-los, através da ameaça de desagregação da Área do Euro, a transferirem dinheiro para a Grécia sem qualquer contrapartida. Ao mesmo tempo, piscam o olho à Rússia para meter medo. Podem piscar o olho à Rússia, empobrecida e economicamente esclerótica, o que quiserem. Mas não têm legitimidade democrática para forçar outras democracias a entregar-lhes dinheiro. O Estado grego não controla o dinheiro alemão. O Estado alemão controla o dinheiro alemão. E a maioria do eleitorado alemão tem preferências diferentes das do eleitorado grego quanto ao que fazer a esse dinheiro, que têm igual legitimidade democrática às do eleitorado grego. E se o Governo grego as quiser alterar, pode bem ter começado a fazê-lo: para pior.


E essa mudança de atitude para pior não é um problema apenas por causa da Grécia. É um problema que vai além da Área do Euro. É um problema que deve preocupar todos os federalistas. O futuro da União Europeia joga-se agora. O avanço ou o recuo na criação de uma verdadeira democracia europeia joga-se agora. E a Grécia, sob o manto da ‘solidariedade’, está a jogar cartas nacionalistas e soberanistas. Ao rasgar os compromissos que assumiu e tentar forçar a Alemanha e outros Estados a simplesmente entregar-lhes dinheiro, está a dar trunfos a quem no Norte da Europa defende que uma federação europeia apenas serviria para institucionalizar a subsidiação eterna, e sem regras, do Norte ao Sul. E isto, para quem defenda uma federação europeia, deve fazer soar alarmes.

quinta-feira, 15 de janeiro de 2015

Charlie d'outre-mer

Um jovem saudita foi condenado pelo que escrevia no seu blogue a mil chicotadas. O The Guardian traduziu alguns excertos. Worth a read.


segunda-feira, 20 de outubro de 2014

Em defesa dos Orçamentos Sombra

O Governo apresentou um Orçamento do Estado para 2015 na linha dos seus anteriores orçamentos. A Oposição veio opor-se também na linha habitual: dizendo umas coisas que soam bem na televisão. Afirmou-se apoiante e defensora de pensionistas, de crianças, de pobres, de gente em dificuldade, e deixou os ‘slogans’ e chavões habituais. Substantivamente, no entanto, pouco ficámos a saber acerca das alternativas ao Orçamento do Estado para 2015.

É fácil fazer propostas na Oposição. Nunca ninguém pergunta quanto irão custar, como irão ser financiadas, se de facto fazem sentido ou não, quais os pressupostos de que essas propostas partem. Basta uma linha num discurso suficientemente engraçada para atrair as atenções e já está. Ou uma linha genérica num ‘programa político’. Essas linhas serão acriticamente reproduzidas, e os comentários que sobre elas incidirão não poderão ser muito substanciais: na verdade, têm pouca substância para comentar.

Este problema é bastante claro durante as campanhas eleitorais. Não é por acaso que sistematicamente se ouve a crítica que as campanhas são vazias e desprovidas de ideias. A verdade é que, com poucas excepções, poucos têm sido aqueles que têm exigido mais. Poucos têm sido aqueles a fazer perguntas, a exigir explicações, a querer verdadeiramente saber o que está por trás da proposta apresentada e se ela é efectivamente exequível. A reprodução acrítica das propostas, nos exatos termos em que são formuladas, é constante.

O Orçamento Sombra seria clarificador. Permitiria aferir da viabilidade, da credibilidade e da coerência das propostas do partido de quem o apresentasse. Forçariam a que se discutissem os pressupostos das várias políticas alternativas em confronto. Em vez de se partir do Orçamento do Estado apresentado pelo Governo, teríamos, de facto, competição entre duas (ou mais) visões possíveis, que poderiam ser devidamente escalpelizadas e comparadas.

Claro que para produzir um Orçamento Sombra, a Oposição teria de ter uma equipa preparada para o fazer. Teria de, ela própria, dedicar-se a estudar os problemas do país, quer utilizando números oficiais, quer chegando a números próprios, ou de organizações não-governamentais credíveis. E teria de ter a coragem de assumir que as suas propostas, também elas, teriam custos, e explicar porque são, apesar desse facto, melhores que as do Governo. E tudo isto é, convenhamos, bem mais difícil que dizer coisas bonitas na TV.

Em termos substantivos, o debate mediático sobre o Orçamento nunca tem assentado numa competição entre diferentes estratégias orçamentais. O insulto, o jogo de intenções, a alegada paixão assolapada por certos grupos de pessoas, nada disto forma a base de uma visão coerente para as finanças do Estado Português. E a verdade é que, enquanto tudo se exige do Governo, nada se exige das Oposições. Mas talvez se exigíssemos mais das Oposições, o Governo seria também forçado a melhorar. E a nossa Democracia melhoraria também.

sábado, 9 de agosto de 2014

Leituras de Verão

As férias de Verão são sempre uma boa altura para pôr algumas leituras em dia ou fechar aqueles livros que vamos acumulando na mesinha de cabeceira e que se vão arrastando temporada a dentro, sem que os consigamos tocar, durante a rotina diária. Venho por isso partilhar o livros em papel e electrónicos que me acompanham nestas férias.

Portugal 2015: uma segunda oportunidade
Autor: Lino Fernandes,
Editora: Gradiva

É raro acedermos hoje em dia, a um livro com uma tónica optimista e positiva acerca do futuro do país, mas é precisamente isso que Lino Fernandes nos faz com a sua tese de que Portugal tem hoje, finalmente, resolvidos, a generalidade dos problemas estruturais que o afectaram durante décadas (séculos), isto é que podemos dar continuidade ao terceiro D de Abril, o de Desenvolvimento. A principal mensagem do livro é a que não devemos "naufragar com a praia à vista" ou seja, !! baseando-se a análise estatística de 300 empresas, mostra um trabalho de casa bem feito, em que expõe uma realidade dura, as maiores empresas portuguesas não exportam ou exportam menos de 5% do total da facturação, e que não têm inovado porque vivem das rendas quasi-monopolisticas do mercado interno, que a I&D tem sido realizada essencialmente por PME e multinacionais a operar em Portugal, e que enquanto for mais fácil importar do que fazer I&D a economia portuguesa continuará dominada por empresas importadoras. Ainda assim, o autor diz que o ano de 2015 poderá ser, para Portugal, de re-encontro com a sua geografia, ao re-adquirir uma centralidade, entres os mercado Europeu e Americano, com a abertura da expansão do canal de Panamá que fará do Porto de Sines um dos mais interessantes da Europa.

Mossad, Os Carrascos do Kiddon
Autor: Eric Frattini
Editora: Bertrand

"A execução de um terrorista é uma ferramenta do Estado para evitar ataques e reforçar a dissuasão" - Meir Dagan, director da Mossad (2002-2010)

Há uns anos estive a visitar um familiar meu que trabalhou em Angola durante os anos 80, em plena guerra civil angolana, e me contava a sua estupefação em relação à capacidade inventiva do ser humano para arranjar novas formas de destruir. A força criativa destrutiva dos guerrilheiros da UNITA que usavam RPGs às quais amarravam cabos de aço, para deitar abaixo os cabos eléctricos de alta tensão... destruindo valiosa infra-estrutura governamental. Ora, é precisamente este pensamento que me ocorre ao ler este livro, a capacidade criativa dos inimigos de Israel e as respostas igualmente criativas que a Mossad tem vindo a desenhar para os eliminar. O autor, o jornalista Peruano Eric Frattini fala-nos sobre a unidade dos Kiddon da Mossad, responsáveis pelos assassinatos selectivos dos inimigos do estado de Israel. E se o estado português tivesse um unidade destas, quem seriam os seus alvos?

Crossing the Chasm. Edição de 2013
Autor: Geoffrey Moore

A edição revista de 2013 traz uma necessária e refrescante actualização deste clássico. Lembro-me que tomei contacto com este livro quando um colega numa empresa onde trabalhei em 2009 o tinha deixada em cima da mesa, apercebi-me que este livro era guardado como se tratasse de uma bíblia sagrada, e uma única cópia da empresa passava de mão em mão, qual rito iniciático -  ainda, assim um exemplo de cultura corporativa, que me marcou. Esta nova versão traz sobretudo casos mais adaptados à realidade de produtos de software as a service (SaaS), visto que o livro original de 1991 se focava essencialmente em software stand alone, ainda assim continua a ser a leitura obrigatória de referência para quem quer perceber como comercial produtos tecnológicos inovadores.

The Entrepreneurial State: Debunking Public vs Private Myths in Risk 
Autor: Mariana Mazzucato

É um debate de uma nova era que agora, a esquerda procura inaugurar, a autora, tenta demonstrar com a força exemplificativa, de alguns dos avanços tecnológicos que actualmente temos como garantidos, que uma parte muito significativa do seu esforço de desenvolvimento assentou em investimento público e que o investimento de capital de risco privado, apenas veio muito mais tarde - o caso em exemplo é o iphone, e os seus constituintes, desde o chipset GPS aos módulos de rádiofrequência e claro está a Internet. A autora também alerta para o risco que o "endeusamento" dos mercados poderá limitar o investimento público em I&D e que muito do capital tecnológico que ainda estamos a usar, resulta de investigação feita durante a guerra fria e que se está esgotar, levando ao risco de entrarmos numa fase de "plateau" tecnológico sem invenções disruptivas.

Um Milionário em Lisboa
Autor: José Rodrigues dos Santos
Editora: Gradiva

Depois de ter lido o primeiro livro desta série de dois tomos,  esta é a única leitura de ficção que ainda assim, se pretende um romance histórico, que nos traz a história de Caloust Gulbenkian, um personagem tão próximo e ao mesmo tempo tão distante dos portugueses, sobretudo no que concerne à sua história de vida e às razões da relação do Arménio com Portugal. Este segundo livro, conta-nos o período de entre guerras em que decidiu vir para Portugal, e o impacto que a sua vinda trouxe a um país que se mantinha, e queria manter, longe dos holofotes das grandes decisões internacionais.

sábado, 5 de julho de 2014

O “ultraje” de bandeiras não deve ser crime

Élsio Menau, que não conheço pessoalmente, criou uma obra artística que consiste numa Bandeira Nacional na forca. Por isto, vai a tribunal, acusado de ultraje a símbolo nacional. Mas descansemos – o próprio Ministério Público pede a absolvição. E descansemos duplamente – é bem provável que seja absolvido. Mas mesmo duplamente descansados quanto a Élsio Menau, julgo que não podemos suspirar de alívio.

A República Portuguesa tem uma Bandeira Nacional, aliás constitucionalmente prevista. É a bandeira da República instaurada em 5 de outubro de 1910. Segundo o art.º 11.º, n.º 1 da Constituição, é um “símbolo da soberania da República, da independência, unidade e integridade de Portugal”. E, segundo o Código Penal, é crime ultrajar a República, as Regiões Autónomas e símbolos nacionais e regionais, incluindo a Bandeira Nacional, ou mesmo “faltar ao respeito que lhes é devido” (sic!). A pena pode ser de multa ou ir até dois anos de prisão no caso de “ultraje” a símbolos nacionais ou à República.

Em Portugal, teoricamente, alguém pode ir preso por “ultrajar” a Bandeira Nacional. Alguém pode ir preso por exercer a sua liberdade de expressão de forma que um determinado tribunal considere um “ultraje” ou uma “falta de respeito”, o que quer que isso signifique. Face a isto, eu disse que não podemos suspirar de alívio. E insisto. Querendo uma sociedade livre, não podemos ficar aliviados apenas porque Élsio Menau deve ser absolvido.

É razoável que a lei ordinária regule a simbologia nacional e regional por questões protocolares. Mas o significado desses símbolos varia de pessoa para pessoa. Estamos a decretar o que não é verdadeiramente decretável. A bandeira, o hino e a própria República significam coisas diferentes para cada um de nós. E a sua verdadeira defesa é feita pela atuação idónea e credível das instituições. De pouco serve existir uma lei que condene o “ultraje” de bandeiras se os cidadãos sentem a bandeira maculada pela falta de confiança que sentem na Assembleia da República, no Governo ou nos tribunais. E se o quiserem expressar utilizando para o efeito essa mesma bandeira, isso não deve ser proibido.

A República não precisa de crimes de lesa-majestade. Não precisa, não pode e não deve criminalizar, ou sequer proibir, que os seus símbolos sejam usados de forma chocante e crítica ou mesmo de forma chocante e gratuita. O crime de “ultraje a símbolo nacional ou regional” é uma ingerência inaceitável na liberdade individual dos cidadãos. Numa sociedade que se quer livre, esses símbolos são património de todos, para utilizar como entenderem.

O verdadeiro ultraje em todo este caso é que a lei sequer preveja que se gastem recursos a acusar pessoas como o Élsio Menau. O respeito pela bandeira não se decreta: obtém-se através de uma atuação idónea das instituições republicanas.

O “respeitinho”, ao contrário do que alguns dizem, não é bonito. O respeito que vem pelo exemplo, esse, é precioso.

sexta-feira, 23 de maio de 2014

As Universidade Ulisses do Candidato Livre, já têm programa curricular!

Ano 1

Semestre 1
Plano Quinquenal I
Introdução ao Planeamento central
Doutrina Soviética
Dinamização Sócio-Cultural
Associativismos Culturais e Infiltração

Semestre 2
Narrativa Historica - As verdadeiras causas da Crise
Os ciclos económicos capitalistas de Kitchin a Kondratiev
História do Socialismo
Teoria Marxista
Socialismo Cientifico

Ano 2

Semestre 1
Plano Quinquenal I!
Economia centralizada
Economia Emergentes
Os Não Alinhados
Comunismo Chinês

Semestre 2
Comunismos Exóticos (de CUBA à FRELIMO)
Movimentos de Libertação Anti-Capitalistas
Leninismo I
Estalinismo I
Anti-Trotskismo e Eliminação de Rivais


Ano 3

Semestre 1
Plano Quinquenal III
O Capitalismo e o Fim da História
O Grupo de Bilderbeg e a Reacção
Actividades Anti-Maçonicas
Grandes Cabalas do Capitalismo

Semestre 2
Neo-Liberalismo e os Chicago-Boys
Conspiração de Bretton Woods
Meios de Produção Industriais
Comunidades Trabalhadoras Rurais
Técnicas de Dinamização Sindical

Ano 4 - Mestrado Integrado

Semestre 1
Plano Quinquenal IV
A via operária socialista
Socialismo Moderno
Euro Socialismo
Tese - Comunismo Norte Coreano (Juche)
Tese - Inimigos Eternos do Socialismo

Semestre 2

Socialismo Urbano (Caviar)
Os Avanços Sociais da Esquerda
Inclusão, Diversidade e Fracturização das Causas
Estado Nação e Re-unificação operária
Luta de Classes I
Tese - Estalinismo Avançado (Manipulação e Gulag).

Ano 5

Semestre 1

Plano Quinquenal V
Planeamento militar soviético
Técnicas de infiltração
Luta de Classes II
Tese- Modelos de Auto-Gestão
Tese - Pós-humanismo

Semestre 2

Pan-Sexualidades
Arnarco-Comunismo
Comunismo Virtual, do Second Life à Bitcoin
AgroComunismo e Cooperativismo
Comunas, dos primitivos aos modernos
Tese- Fim da História
Tese- Meios de produção digitais

sábado, 29 de março de 2014

Coitados dos aristocratas do regime!

O regime democrático português inclui um conjunto de pessoas que se comportam como seus donos. Defensores tenazes do 'status quo', bramam contra qualquer mudança que seja proposta. O que está, tem de ficar, e quem disser o contrário é intelectualmente indigente, além de ter motivos sinistros para discordar. Apenas os aristocratas do regime são virtuosos. Apenas os aristocratas do regime sabem o que é melhor para todos. E portanto, os aristocratas do regime têm o direito a ser honrados, saudados, exaltados e adorados.

Eis que, por vezes, há quem não concorde com os aristocratas do regime. Inacreditavelmente, há quem tenha a distinta lata de contra-argumentar, de defender que o que os aristocratas do regime defendem não é o melhor para o país, de não se prostrar, em êxtase, aos pés dos auto-proclamados salvadores da Pátria. Essas pessoas, naturalmente, são traidores, que querem censurar os aristocratas do regime, para continuarem a destruir o país - ou a defender a destruição do país - por dogmaticamente acreditarem em horríveis ideologias (os aristocratas do regime acreditam na Verdade) e por estarem a soldo de sinistros interesses.

José Pacheco Pereira, barbudo herói pátrio, tem um programa de televisão a título individual, participa na Quadratura do Círculo, escreve num blogue e escreve em jornais, e ninguém o impede de o fazer, mas ai Jesus que a atitude perante ele é censória. Não lhe prestam vassalagem, como deviam. Não anunciam as suas 'ideias' com trombetas. Não levam Manuela Ferreira Leite ou António Bagão Félix em ombros, como deveriam. Não há uma celebração permanente de todos aqueles que se dignaram juntar para anunciar ao mundo que há uma alternativa, sem nunca especificar muito bem como concretizá-la (ou, sequer, sem especificar grandemente no que consiste a alternativa, para lá de umas generalidades que nem alternativa são).

Pobres vítimas que são os aristocratas do regime. Pobres coitados, que quando vêm a público não recebem as palmas unânimes que gostariam de obter. Pobres coitados, que não recebem as alvíssaras que lhes pensam ser devidas. Coitados que são, que há quem não concorde com o que dizem ou com o que fazem. Que não têm o devido respeito pela Verdade aristocrática. Que não dão valor aos Grandes Timoneiros, que nos pretendem guiar a um Amanhã sempre solarengo.

Coitados dos aristocratas do regime.

sábado, 8 de março de 2014

A saída da Troika

O fim do PAEF não vai significar senão isso: o PAEF acaba. Não vai iniciar-se um novo ciclo. Não vai, por magia, mudar tudo de um dia para o outro. Não vamos passar a ter as condições que existiam pré-crise, interna ou internacionalmente. E no entanto, o momento da saída da Troika não deixará de ser um momento importante. Terminando a implementação oficial do programa, pode fazer-se um balanço do que foi feito e do que ficou por fazer. Daquilo que se conseguiu e daquilo que não se conseguiu. Um balanço importante para o período pós-PAEF, em que se terá de partir dessa análise para tentar melhorar em relação ao que se fez até agora.

Uma coisa que não se fez até agora e que toda a gente parece supostamente achar muito necessária é a famosa reforma do Estado. O nosso Vice-Primeiro Ministro fez o favor de apresentar um documento em que lançava umas ideias soltas, sem grande fio condutor, no qual, por entre chavões, se encontravam algumas ideias que poderiam ser mais exploradas. Desde então, o relatório sobre a reforma do Estado parece esquecido. Aliás, parece ter sido redigido e apresentado por mera obrigação. Algo feito à pressão, numas horas, em cima do joelho, apenas e só porque tinha sido anunciado que ia sair um relatório.

Que eu tenha reparado, apenas o Prof. Pedro Pita Barros, no seu blogue, levou a sério o relatório apresentado pelo Vice-Primeiro Ministro. As análises não foram mais além porque o documento não o permitia. E infelizmente não surgiu mais nada para densificar o relatório original. E claro, ninguém exigiu a ninguém que fosse mais além. Nem ao Governo, nem à Oposição. Ninguém exigiu ao Governo, e continuou a exigir, que apresentasse mais do que aquilo que apresentou. E ninguém foi atrás dos partidos da oposição para apresentarem alguma coisa que se visse, além das habituais críticas ocas.

A saída da Troika não vai curar nada disto. Apesar de termos um período exigente, não há exigência com quem nos governa e com quem nos quer governar. Análises como as de Marcelo Rebelo de Sousa continuarão a ser debatidas como tendo conteúdo e continuará a ser dada imensa credibilidade aos Nicolaus Santos deste mundo, talvez em busca do novo Artur Baptista da Silva. Continuaremos a ver "liberalismo" confundido com "fascismo". Continuaremos a não ver um debate mediático alargado sobre a UE, apenas mais insultos à Alemanha por entre exigências de que a "Alemanha pague a crise" (a versão a nível europeu de "os ricos que paguem a crise").

Esperamos pela saída da Troika e eu assisto a tudo isto. Assisto a tudo isto e não consigo evitar pensar que estou a assistir ao estrebuchar de um regime que vive de ilusões e de fanfarronices, em que o pavão com o melhor chavão tem o poder na mão - geralmente, quando o pavão anterior cai de podre. Vejo muito a ser feito a tentar manter o mais possível aquilo que já existe, mas não vejo uma tentativa de rejuvenescer, revigorar ou mesmo refundar a democracia portuguesa. E penso que, devendo sempre ser esse o ímpeto, poderia ser o que faríamos após a saída da Troika.  

domingo, 9 de fevereiro de 2014

A Realidade dos Regimes

Num segmento do seu programa Real Time with Bill Maher, o comediante Bill Maher, senhor que aprecio bastante, tanto pelo que costuma defender como pelo seu tom politicamente incorrecto, perguntou a um dos seus convidados se os Estados Unidos estariam melhores com um sistema de governo parlamentar. A convidada, uma deputada no Canadá, não respondeu directamente qual dos sistemas, presidencialista ou parlamentarista, seria melhor mas admitiu apreciar a celeridade do processo de decisão no seu país em comparação com o vizinho a sul. O próprio Maher apresentou algumas das vantagens que via no parlamentarismo. Reconhecendo a validade de muita coisa do que foi dito nessa pequena troca de impressões, devo dizer que considero que este tipo de debates acerca dos méritos de cada sistema não é tão produtivo como seria de esperar.

Considero fundamental que se conheçam as diferenças entre os vários modelos e que se perceba quais as competências de cada órgão tanto como previsto constitucionalmente como na prática, já que é muito provável que estes divirjam bastante. Simultaneamente é fundamental perceber o sistema para conhecer quais os incentivos que gera. No entanto é importante voltar a dizer que não é a organização do sistema que é decisiva na forma como os vários agentes da comunidade política se comportam. O modelo pode criar incentivos nesta ou naquela direcção mas são os hábitos e os costumes dos membros da comunidade que vão ser os principais arquitectos dos meios de funcionamento de um dado regime (claro que estes a longo prazo também serão influenciados pelo modelo). A deputada canadiana provavelmente estará certa quando elogia o regime do seu país mas isso é antes de mais um elogio ao Canadá, não ao parlamentarismo. Muitas das coisas que ela aprecia naquele regime não serão válidas noutros países dotados das suas próprias variantes do parlamentarismo. Muitas das coisas admiráveis no modelo de governo americano, e ainda vai havendo algumas nestes tempos de crise de identidade, são antes de mais coisas que acho admiráveis no carácter da nação americana. O regime e o seu funcionamento reflectem a história de um país mas também os seus hábitos e costumes. Naturalmente que se deve ter cautela com as generalizações mas há padrões e hábitos observáveis em larga escala e estes variam de sociedade em sociedade com efeitos divergentes.

A título de exemplo e já o disse aqui, os americanos tendem a preferir viver com o risco que a liberdade impõe enquanto nós tendemos a tentar restringi-la de modo a evitar comportamentos considerados abusivos. Ambas as posições têm um custo e consequências práticas que vão para além das questões de princípio. No caso português, a realidade e a ficção da constituição estão muito longe uma da outra. Por cá sofremos naturalmente de termos mais uma vez importado lixo reciclado de origem francesa, neste caso o semi-presidencialismo, mas sofremos antes de mais por sermos pobres e somos pobres não porque temos o modelo de regime que temos mas por sermos periféricos e pequenos. De igual modo não somos pobres por termos políticos corruptos, temos políticos corruptos devido sobretudo à pobreza. Podemos e devemos discutir reformas do nosso modelo de governo* mas iludem-se aqueles que depositam a sua fé na importação de modelos como meio de resolver os nossos vícios. Estes últimos, sejam eles quais forem, irão impor-se e subverter qualquer ordem política e jurídica que optemos por criar. Nesse sentido, a asfixia da liberdade torna-se ainda mais perniciosa, já que impede aqueles que não se revêm no sentido tomado pela maioria de se exprimirem e promoverem alternativas, não necessariamente apenas pela palavra, mas por práticas diferentes.

* A mais recente proposta de alteração da lei eleitoral do sempre acéfalo líder do centro de emprego socialista é um óptimo exemplo de irrelevâncias  disfarçadas de reformas.

quarta-feira, 29 de janeiro de 2014

Proibicionismo

O tema das praxes, recorrente na nossa imprensa e sempre sem grandes consequências, está de volta. Devo dizer antes de mais que acho a prática um disparate sem grande interesse e discordo do choradinho que as associações académicas fazem sempre que se ataca a sua tradição sagrada e inviolável. Dizem estas que a praxe é importante para integrar o aluno, para lhe interiorizar a hierarquia, que é feito em todo o lado, entre outros disparates. Não me parece que naquelas instituições onde não há praxe os alunos não estejam integrados, que desrespeitem os professores ou sejam em geral inimigos da ordem pública no campus. Falo por experiência própria de ter estado em mais que uma universidade, tanto cá como no estrangeiro.

No que diz respeito à hierarquia entre os alunos mais novos e mais velhos acho um argumento bastante asqueroso, não devo aos outros alunos, com mais ou menos matriculas um respeito especial que não tenha já pelo comum ser humano no dia a dia em sociedade. Até porque no caso português esses ditos “veteranos” são geralmente gente com mau percurso académico que mais se dedica a estas actividades do que ao estudo. Com a introdução de propinas esse fenómeno decresceu, mas como o grosso dos custos do ensino superior ainda está disperso pelo contribuinte e não recai sobre o beneficiário da educação superior, haverá sempre gente que se pode dar ao luxo de ocupar lugares em instituições públicas durante largos anos.

Dito isto, também não me revejo na obsessão do bloco de esquerda em proibir, que em verdade é uma obsessão nacional de proibir ou regular toda a minúcia da vida humana. Tende-se a achar que é pela criação de mais regras ou proibições que as coisas melhoram, entretendo-se a ilusão que se pode obter controlo através de mais detalhados regulamentos e restrições. Os apoiantes destas medidas não parecem preocupados em explicar como se procederia à fiscalização de tal proibição. O que é praxe? Quando os alunos se reúnem aos berros com camisas a anunciar “praxe” não será muito complicado mas o quão difícil é camuflar esta actividade? Veremos a polícia a deter grupos de indivíduos barulhentos no bairro alto por suspeita de actividades praxistas? Eliminar as associações académicas provavelmente seria o suficiente para eliminar, pelo menos de forma aberta, a actividade em questão mas da última vez que verifiquei havia liberdade de associação em Portugal. Imagino que possamos ver em breve mais uma hemorragia legislativa a procurar apaziguar a opinião pública e gerar alguma propaganda positiva para o governo com o único resultado que tudo ficará na mesma. No fim, teremos a lei menos geral e menos abstracta, menos transparente e mais difícil de aplicar.

A única via que vejo necessária para atacar o problema é a via administrativa. Da minha parte acho inadmissível que instituições do estado (nas privadas a questão é ligeiramente diferente), financiadas em larga medida pelo erário público, tolerem e pactuem com este tipo de actividades. Sim, as praxes são simplesmente empurradas para fora do espaço físico da universidade se as reitorias e os professores fizerem o seu trabalho mas parece-me importante que a instituição dê o exemplo e se distancie não só nas palavras mas pela acção.

quarta-feira, 22 de janeiro de 2014

1914

Em 2014, enquanto o líder do CDS estiver a celebrar e a propagandear a sua vitória sobre a troika e enquanto Portugal estiver entretido a celebrar 25 de Abril sempre, uma boa parte da Europa estará no auge de relembrar a guerra de 14-18. Ao contrário do que nos quis fazer crer Vladimir Putin, este conflito foi verdadeiramente a maior catástrofe geopolítica do século vinte, com o fim de quatro impérios e o (re)nascimento de vários estados no leste europeu, principalmente. Nos principais países participantes, ou estados que lhes sucederam, tem corrido muita tinta sobre a importância da Grande Guerra, com inúmeros livros, artigos de jornal e documentários a descrever em pormenor tanto o próprio conflito como os anos que lhe antecederam. Este centenário chega-nos, com o sentido irónico do destino, na mesma altura em que a Alemanha é por muitos lados desta UE, vilipendiada, achincalhada e acusada de estar, pela terceira vez, ocupada com o “espatifar da Europa”, nas palavras infelizes de João Soares há uns largos meses na SIC Notícias.

Na historiografia actual mais sóbria, longe do barulho mediático da crise do euro, o papel da Alemanha em 1914 já está bem longe daquele que lhe foi atribuído em Versalhes, ou seja, a Alemanha como a única responsável pelo deflagrar das hostilidades. Admita-se que a Segunda Guerra Mundial, muito mais um conflito entre bons e maus (ou algo mais complicado de descrever no choque de titãs Alemanha-URSS) com a Alemanha Nazi verdadeiramente algo que merecia a destruição e derrota totais, acabou por obscurecer a percepção do primeiro grande conflito industrial europeu. Nesta visão, os Alemães de 14 já eram Nazis, já procuravam o domínio do mundo, e muito provavelmente já procuravam o extermínio de povos considerados inferiores.
A realidade contudo não é tão simples e a constelação de poder em Julho de 1914 é mais complexa do que a de 1939. Todos os participantes europeus eram impérios, todos tinham políticas coloniais, todos alimentaram o fogo do nacionalismo enquanto se confrontavam internamente com o alargamento do sufrágio, o sindicalismo e nos impérios multinacionais, forças separatistas variadas.

Todos tinham razões diversas para marchar para a guerra. Gostava que a imprensa portuguesa e as instituições nacionais se debruçassem mais sobre o tema, uma guerra na qual Portugal participou, com consequências internas devastadores, e onde de forma limitada se deu um ensaio de guerra colonial quando Lisboa enviou tropas tanto para Angola como para Moçambique, ambas colónias adjacentes a territórios alemães. Infelizmente talvez isto seja esperar demasiado dos nossos tudólogos e especialistas da táctica política e das Visões História, com os seus artigos mal escritos e de pesquisa pobre e das nossas chefias, para quem a realidade acaba na fronteira ou, quando não é o caso, se circunscreve à diáspora.

quinta-feira, 16 de janeiro de 2014

O individuo

Recentemente fui, juntamente com o fundador deste blogue, ver o filme “Captain Phillips”. Nessa película, Tom Hanks protagoniza o titular capitão Phillips e o drama que este viveu quando o cargueiro americano que capitaneava foi tomado por piratas somalis. Mais tarde, o capitão foi feito refém pelos piratas quando estes se escapuliram no barco salva-vidas do cargueiro. Neste permaneceram durante várias horas antes de forças americanas resgatarem o capitão feito prisioneiro. Apenas um dos piratas sobreviveu e apenas porque tinha aceite encontrar-se com um negociador a bordo do vaso de guerra norte-americano encarregue da operação de salvamento. O filme baseia-se no livro escrito pelo próprio Phillips depois da sua epopeia em 2009. Independentemente das liberdades que tomará no acto de adaptação, o filme é, como o João Mendes comentou à saída da sala de cinema, e estou a parafrasear, uma ode à resiliência do individuo quando este enfrenta situações extremas, um tema especialmente apreciado pela cultura americana.

Mais tarde, fui também com o João ver a mais recente obra-prima de Martin Scorsese, O Lobo de Wall Street, uma “queda do império romano” nas palavras de Leonardo DiCaprio que assume o papel do também real Jordan Belfort e a sua meteórica ascensão e queda como corrector de Wall Street ocupado em defraudar investidores em muitos milhões de dólares, o que lhe permitiu a ele e aos que com ele trabalhavam, usufruir de uma vida de excesso até ser detido e após negociações com a procuração, ter cumprido quase dois anos de cadeia. Desta vez, à saída do filme, comentei que esta obra apresentava o reverso da medalha daquilo que vimos retratado em Phillips. A obra de Scorsese retrata o individualismo desinibido e desprovido de regras, a procura desenfreada de acumulação material e a satisfação hedonística de todos os apetites do homem.

Esta face da moeda será provavelmente parte da justificação dada, geralmente pelo estado, para as variadas limitação à expressão e responsabilização individual. O individuo, egoísta e desprovido de moralidade inata, carece de uma força que o contenha e moralize de modo a que possa coexistir pacificamente em sociedade. O estado, e muitas vezes as autoridades religiosas que com ele pactua ou até se confundem, assumem este “fardo”, justificando assim toda a espécie de restrições à liberdade de acção dos cidadãos. Em Portugal em particular, as corporações e a televisão e rádio públicas, entre outros, são muitas vezes vistas como essenciais baluartes da moral pública. Entre a anarquia e o estado totalitário, ambos formas de tirania, existe mesmo assim amplo espaço de manobra no que diz respeito ao grau de liberdade que cada comunidade política está disposta a permitir aos seus súbditos.

Tendencialmente o Estados Unidos, pelo menos em teoria se nem sempre na prática, favorecem a liberdade individual com todas as vantagens e responsabilidades que isso acarreta. No domínio da liberdade de expressão, são a meu ver ainda a referência a nível mundial. Na Europa, o espírito das leis e das mentalidades tende a vacilar para o outro lado desta equação e prefere-se geralmente restringir fortemente o raio de acção de cada um através de políticas paternalistas que fazem transparecer uma grande desconfiança no individuo, sendo a França um caso particularmente gravoso. Durante o próprio filme comentei que apreciava as possibilidades dadas às empresas quando procuram financiamento, quando este retratava os mercados de participações secundários onde se trocam acções de pequenas empresas, as chamadas “penny stocks”, um fenómeno que em Portugal não ocorre, sendo que temos empresas altamente endividadas e extremamente carentes de capital. Reflectirá provavelmente a atitude geral que mais vale proibir de modo a impedir excessos futuros, do que autorizar e responsabilizar para em caso de abuso fazer uso das instituições de justiça, numa lógica de que os possíveis ganhos que advêm da liberdade acrescida não ultrapassam os custos do policiamento de actividades potencialmente prejudiciais para o interesse público. No entanto, em casos em que a proibição é preferida, a procura poderá ser tanta que contornar a lei se torna rotineiro, algo que em Portugal já se torna habitual.

quarta-feira, 1 de janeiro de 2014

O desencanto ao entrar em 2014

2014 vai ser mais um ano duro. A troika sair (ou não) não vai alterar isso. O cronómetro em contagem decrescente do Sr. Vice-Primeiro Ministro diz mais sobre o Sr. Vice-Primeiro Ministro e o seu amor por golpes publicitários do que sobre o futuro do país. É cronometragem fiada, que interessa tanto como o "novo ciclo", anunciado e, claro, inexistente.

Em 2014, não teremos falta de quem se entretenha a prometer balas de prata. Ou a falar como se o Estado português tivesse poderes mágicos e a capacidade para implementar medidas sem custos, de forma totalmente independente do resto da União Europeia ou do mundo. Ou a dizer que basta fazer voz grossa e os problemas desaparecem. 

Em 2014 continuaremos a ter conjuntos alargados de tudólogos a dedicar o seu tempo a reduzir o mundo a um conjunto de histórias simplistas. E cada Ministro continuará a agir de forma independente e sem coerência entre si, como o "Estado Melhor" do Sr. Vice-Primeiro Ministro (que só o Prof. Pedro Pita Barros parece ter analisado com o máximo de profundidade que aquele pobre documento permitia) apenas veio confirmar que já está a ser feito.

2014 trará eleições europeias, que podiam ser utilizadas para discutir a União Europeia, e serão ao invés muito provavelmente utilizadas para continuar a contar histórias da carochinha sobre "casos mediáticos" sem substância. E isso será considerado irrelevante pelos encartados tudólogos da nossa praça, que serão aliás os primeiros a alimentar ou ajudar a criar os tais "casos mediáticos".

2014 traz a promessa de mais do mesmo. Será mais um ano desencantado de uma crise duradoura, com as mesmas cantilenas e promessas de sempre. Será um ano novo em trajes velhos. E será, é esta a minha razoavelmente emocional previsão, um ano duro.

segunda-feira, 23 de dezembro de 2013

A Teoria do Coitadinho

De acordo com a Teoria do Coitadinho, há três tipos de pesssoas: os coitadinhos, os mauzões e os heróis épicos. E diz, em suma, que os coitadinhos são maltratados pelos mauzões e salvos pelos heróis épicos. Sendo que, naturalmente, quem usa a Teoria do Coitadinho é sempre candidato a herói épico.

Através da Teoria do Coitadinho, os candidatos a heróis épicos, seres impolutos e de fina estirpe ética (como poderia ser de outra forma?), reduzem uma quantidade impressionante de pessoas a supostas vítimas, quase que tolinhas e irresponsáveis, que necessitam de ser salvas das maldades dos mauzões, cujas únicas motivações são a maldade, a crueldade e o desprezo pelo próximo.

A Teoria do Coitadinho serve para desresponsabilizar as pessoas individuais de toda e qualquer responsabilidade, ao mesmo tempo que se cria um demónio malévolo (ou um conjunto de demónios malévolos) para arcar com todas as culpas de todos os horrores que acontecem no mundo.

A Teoria do Coitadinho trata adultos como crianças e as crianças como imbecis. Infantiliza e reduz o debate público à propagação constante de um conjunto de chavões, de teorias da conspiração e de insinuações torpes. Tenta reduzir os lados contrários no debate a 'radicais' com uma 'agenda extremista' guiada por 'cegueira ideológica' contra um conjunto de vítimas que nada conseguem fazer por si.

Quando os proclamados coitadinhos e vítimas não vão na conversa da Teoria do Coitadinho, e por acaso até concordam com medidas que os candidatos a heróis épicos consideram erradas, então é porque engoliram "propaganda" - palavra com conotação pejorativa que apenas se aplica ao que os mauzões dizem. Aquio que os candidatos a heróis épicos dizem quando defendem o que pensam não é "propaganda". É simplesmente espalhar a Verdade para aqueles que estejam preparados para a receber.

A Teoria do Coitadinho é popular em todo o espectro político, da Esquerda à Direita. A narrativa que constrói, de um conjunto de paladinos a salvar inocentes de terríveis demónios, é fácil de apreender. E é muito tentadora quando se tem de lidar com crises sérias num mundo que não é assim tão simples.

A Teoria do Coitadinho conta uma história muito apelativa, e nunca vai deixar o debate político e mediático. Os coitadinhos vão variar, os candidatos a heróis épicos e os mauzões também (embora haja mauzões que surjam amiúde, como por exemplo os bancos ou os partidos políticos), mas a lengalenga vai ser sempre a mesma. E vai sistemática e ironicamente (dado que é suportada por auto-proclamados paladinos da ética) ajudar a revelar o pior que há nos seres humanos, enlameando constantemente o debate público.