Há cerca de um mês, um conjunto de figuras que incluem António Bagão Félix e João César das Neves veio apelar a que a Assembleia da República dedicasse algum tempo a discutir que as suas ideias sobre família, casamento e sexo fossem transformadas em lei.
Sobre o tema, deixo umas pinceladas:
(i) Os signatários não parecem ter percebido que o regime de criminalização da interrupção voluntária da gravidez não funcionava. Ajudava a agravar o problema, porque as interrupções existiam na mesma, só que tinham lugar em locais sem quaisquer condições. Não havia números fidedignos sobre o tema porque as interrupções eram feitas a coberto do silêncio. E não era eficaz, o que a tornava potencialmente arbitrária - não há meios para aplicar uma lei daquelas. Finalmente, a lei actual vem permitir saber o que acontece neste domínio de forma bem mais transparente, porque há números concretos sobre o tema, agora que se legalizou. Vem permitir lidar com o assunto porque se sabe o que se está a passar - e ninguém impede aquelas pessoas de promoverem a não realização de interrupções voluntárias da gravidez, de criar organizações para esse efeito, com o propósito de auxiliar nesse âmbito quem de auxílio necessite. Agora, querer voltar a um regime que não funcionava, usando o sistema judicial para algo com que o sistema judicial não estava a conseguir lidar, não me parece «defender o futuro», mas sim «voltar aos erros do passado».
(ii) Os signatários parecem pensar que o casamento civil e o casamento da Igreja Católica são o mesmo, quando não são. O casamento civil é um contrato entre duas pessoas que escolhem partilhar a sua vida, com efeitos relevantes a nível patrimonial. Essas pessoas podem ser do mesmo sexo ou de sexos diferentes, tanto faz, e faz sentido que tanto faça. Porque o nível de comunhão de vida exigido é o mesmo. Porque o casamento civil não serve para o casal ter filhos (e não explicam o que acontece aos casais heterossexuais inférteis - principalmente se levarem a sua avante no que toca a procriação medicamente assistida). E acrescento o seguinte: a lei portuguesa actual peca por escassa. Devia permitir a adopção por casais de pessoas do mesmo sexo (homossexuais solteiros, curiosamente, já podem adoptar). As crianças não perdem com isso, antes pelo contrário: alarga-se o número potencial de casais com condições para as adoptar que as poderiam adoptar.
(iii) Os signatários demonstram que não sabem fazer muito mais do que citar umas frases do Presidente da República sobre as reformas das regras do divórcio do tempo do Governo Sócrates. E isso é insuficiente. Não estudei o assunto a fundo, mas do que tenho visto, há, de facto, alguns problemas com a aplicação dessas reformas. Mas aquela petição nem os explica devidamente, nem mostra soluções - o que aliás seria impossível, não explicando os problemas. E que fique claro o seguinte: o casamento só deve ser para a vida se houver consentimento mútuo de que o casamento é para a vida. Um casamento prolongado por ser restringido ou abolido o divórcio gera problemas para o casal, promove toda a espécie de hipocrisias, e fomenta aquilo que pretende prevenir. As relações mantêm-se por vontade mútua. Não por decreto.
(iv) A procriação medicamente assistida ajuda casais com problemas de fertilidade a ter filhos. Além disso, numa sociedade livre, se alguém quiser ajudar outras pessoas a ter filhos com o seu útero, então deve poder fazê-lo. Não pode ser forçada a fazê-lo. Mas deve ser livre de o fazer. E as regras sobre a filiação devem estar preparadas para isto acontecer. Tentar empurrar a tecnologia para debaixo do tapete e fingir que não existe, com isso impedindo gente de viver a sua vida como preferiria, não funciona. De novo, as restrições ditadas pela moral daquelas pessoas criam mais problemas do que resolvem - porque não impedem verdadeiramente o procedimento de existir, apenas restringem o acesso e tornam as condições piores para quem decida participar.
(v) Não conheço a lei de mudança de sexo. Digo apenas que considero que alguém que mude de sexo deve ter a sua situação reconhecida juridicamente.
(vi) A petição não refere porque razão deve a lei sobre educação sexual ser revogada, na opinião dos signatários. Mas isso é habitual para aquela petição, fundamentada que está com frases feitas e não com argumentos. Lista-se um conjunto de leis, com umas citações avulsas de comentários do actual Presidente da República, enuncia-se um conjunto de proposições, e diz-se que as leis devem ser revogadas ou alteradas. Alteradas como? Mistério. O ónus de fundamentação não foi levado muito a sério por quem preparou aquela petição. Provavelmente achou que não o tinha, por ser «só» uma petição. Tinha de ser rápida de ler, «sexy» e dizer umas coisas que soassem bem ao ouvido ao público-alvo. Esse público-alvo não me inclui, pelo que eu apenas vejo o que descrevi: um conjunto de frases ligadas pela noção de que a moralidade daquelas pessoas deve ser lei em Portugal.
(vii) Os pontos da liberdade de escolha no Ensino independentemente dos recursos e da liberdade dos pais educarem os seus filhos de acordo com as suas opções éticas e valores estão claramente ligados. No fundo, a ideia é a de os pais poderem escolher, independentemente dos seus recursos, colocar os seus filhos numa escola que ensine os valores vertidos na petição. O que me parece implicar, e posso estar enganado, que esta petição o que verdadeiramente quer é dinheiro público a seguir os alunos para escolas religiosas católicas. Acontece que vivemos num Estado laico e secular, e eu não vejo com grandes olhos o Estado a financiar religiões - quaisquer que elas sejam. É que se a ideia for a Igreja de alguma forma subsidiar os estudos de crianças nas suas escolas, ou existirem organizações da sociedade civil que se dediquem a isso, tudo isto já é possível. Por isso, resta a opção do dinheiro público. Esse, tenho dúvidas que deva ser usado para financiar escolas religiosas ou educação religiosa e moral.
(viii) O desemprego aumenta de dia para dia. A economia não cresce. Temos problemas económicos e financeiros graves neste país. Mas estas pessoas decidiram fazer uma petição pública a dizer que a sua prioridade seria que a sua moral fosse imposta à totalidade da população do país, através de um conjunto de medidas que não nos ajudaria a tirar do buraco em que estamos metidos, e tornariam a nossa sociedade menos livre, plural e aberta. Sinceramente, diz muito acerca das pessoas que a subscreveram. Mas de nada serviria para resolver os problemas do país.
Ora lá estamos por uma vez plenamente de acordo!
ResponderEliminara) Tio Luís Filipe