segunda-feira, 30 de abril de 2012

Ainda o Tribunal de Portalegre

O leitor Tino Dantas encontrou aquilo que procurávamos - a decisão do Tribunal! - e muito simpaticamente colocou-nos o «link» no Facebook.

Também o vou colocar aqui (caso queira saltar a notícia, clique aqui), para quem tenha interesse.

Ainda não consegui ler tudo como deve ser, mas espero conseguir fazer uma análise em breve (possivelmente, poderei também aproveitar para falar mais das figuras jurídicas mencionadas, de forma a que todos entendam - a área da «divulgação do Direito», ao estilo da «divulgação científica», é um tema de que ando a querer falar mas ainda não falei).

O Apache Luis Naves sobre França!

Prefiro muitas vezes dar a ler os outros, mesmo que não concorde a 100% com eles do que produzir conteúdo inócuo.
Uma boa análise de Luis Naves do Forte Apache sobre a questão da austeridade e as eleições em França.

Aqui.

domingo, 29 de abril de 2012

A sentença de um juiz de Portalegre

Foi publicada ontem no DN um notícia relativa a uma sentença de um juiz de 1ª instância de Portalegre, que terá decidido que a entrega da casa seria suficiente para saldar o empréstimo à habitação que os devedores contrairam.

Leia-se aqui a notícia:

http://www.dn.pt/inicio/economia/interior.aspx?content_id=2446449


e em maior desenvolvimento aqui:

http://economia.publico.pt/noticia/tribunal-diz-que-entrega-da-casa-ao-banco-salda-toda-a-divida-1543931


Esta decisão está a ser considerada importante, pois poderá criar uma nova linha de raciocínio a que outros tribunais podem aderir (como o João C. Mendes já referiu neste blogue, a jurisprudência deste tribunal não vincula outros , ficando para outro dia a minha opinião sobre a forma como a imprensa apresenta notícias de "teor jurídico").

Não tive acesso à sentença, nem conheço alguém que tenha tido. Assim, falta um elemento fundamental para debater o assunto do ponto de vista jurídico, se bem que talvez haja algo que já é possível dizer do ponto de vista económico e das expectativas das pessoas que tenham contraído e/ou que no futuro venham a contrair créditos à habitação.

Na sequência desta notícia, vi surgir uma série de comentários na internet sobre a sentença, todos a favor da decisão deste juiz de Portalegre, por ex:

http://boasnoticias.clix.pt/noticias_Portalegre-Entrega-de-casa-liquida-empr%C3%A9stimo-_10893.html

ou ainda

http://www.dn.pt/inicio/opiniao/interior.aspx?content_id=2447034&seccao=Ferreira%20Fernandes&tag=Opini%E3o%20-%20Em%20Foco

Custa-me a perceber como é que ninguém tentou equacionar os vários lados da questão (isto é: porque deve responder a totalidade do patrímónio dos devedores pela dívida e não apenas a habitação dada como garantia?) e as consequências da adopção generalizada do entendimento do tribunal de Portalegre por outros tribunais.

Na decisão de concessão de crédito tudo se reduz a uma medição de risco. O risco será tanto maior quanto menos garantias os devedores oferecerem.

Ora, o banco, como qualquer credor, procura sempre ter as melhores garantias possíveis do seu lado, designadamente, hipotecas (essencialmente por: a) garantirem dívidas específicas b) dando a certos credores (os credores hipotecários) prevalência em relação a outros créditos, entre outras vantagens.

O banco terá contado (para este e para todos os financiamentos semelhantes), na sua análise de risco, com o restante património do devedor e não apenas com o valor do imóvel (que com a generalização desta decisão passaria a constituir a única e total garantia de ressarcimento do crédito ao banco).

Análises que agora estariam, inelutavelmente, erradas.

O facto de apenas o imóvel responder pelo incumpimento de um financimento para a habitação deverá fazer com que o risco de incumprimento dos empréstimos (concedidos e a conceder) suba consideravelmente (menos património que garanta os empréstimos) e que os bancos tenham de fazer uma de várias coisas:
1) Emprestem significativamente (ainda) menos (ou exigindo entradas maiores ou recusando, tout court, o empréstimo);
2) Aumentem significativamente as taxas de juro cobradas;
3) Exijam mais garantias aos devedores ou a terceiros (cujos custos correrão, certamente, pelos devedores).

Chegados a este ponto vemos um paradoxo interessante na opinião pública:

Ora, por um lado, quer-se que os bancos coloquem liquidez na economia (falta financiamento às empresas, às famílias, etc...), por outro, diminuem-se as garantias do crédito cuja análise de risco tinha em conta a totalidade do património dos devedores (e que neste caso, possivelmente, significaria não ter emprestado os montantes em causa ao casal).

Parece, por tudo isto, que este é um problema sensível e complexo.

De um lado, a possibilidade de amenizar, em casos limite, as dificuldades sociais que resultam da incapacidade das pessoas cumprirem as obrigações de financiamento contratadas numa altura de crise, e por outro, que acautele também as preocupações das instiuições financeiras de forma a que continue a existir um certo financiamento à economia (e se garanta a solvabilidade dos bancos que, todos sabemos, se tiverem problemas financeiros terão de ser pagos pelos contribuintes).

Parece-me, por tudo isto, que a complexidade e as ramificações deste tipo de situações carecem de uma reflexão pelo poder legislativo, não parecendo correcto imputar ao poder judicial essa responsabilidade.

O que mais me surpreendeu, confesso, foi certeza e a facilidade com que vi tratar este assunto nos media. Tratar um assunto complexo e potencialmente com capacidade para abalar maior sector de crédito do país com palavras de ordem é, geralmente, mau sinal.

PS- Este é o meu primeiro post no Cousas Liberaes, blogue que acompanho desde o seu início. Agradeço o convite para contribuir, o que tentarei fazer com a assiduidade possível.

sábado, 28 de abril de 2012

Entregar a casa - III

[DESACTUALIZADO - não vou retirar o artigo, mas está totalmente desactualizado neste momento, visto que finalmente, devido ao leitor Tino Dantas, finalmente tivemos acesso àquilo de que está a tratar.]

http://expresso.sapo.pt/tribunal-decide-que-entrega-de-casa-ao-banco-salda-divida=f722228

Parece que não é preciso criar um sistema de precedente em Portugal. Segundo os nossos jornais, já existe. E mais - basta um tribunal de primeira instância de decidir de uma maneira e «faz jurisprudência».

Espalha-se tudo isto, mas em Portugal não há sistema de precedente. E mesmo que houvesse, não é assim que funciona o precedente. O precedente não se cria em tribunais de 1.ª instância e com «wishful thinking» da imprensa.

E seria pedir muito que os jornais não citassem apenas outros jornais e fizessem investigação própria?

Mas parece, segundo esta peça, que o que o tribunal decidiu foi mesmo que entregar a casa é suficiente - e caso contrário há um «enriquecimento injustificado».

Fica por saber porque é que o Tribunal considera que existe esse «enriquecimento injustificado».

Entregar a casa - II

[DESACTUALIZADO - não vou retirar o artigo, mas está totalmente desactualizado neste momento, visto que finalmente, devido ao leitor Tino Dantas, finalmente tivemos acesso àquilo de que está a tratar.]


http://www.dn.pt/inicio/economia/interior.aspx?content_id=2446449

«Sentença inédita no tribunal de Portalegre, já definitiva, pode fazer doutrina e salvar muitas famílias à beira de perder teto. 

Um juiz do tribunal de Portalegre decidiu que em caso de incumprimento, a entrega de casa ao banco liquida todo o empréstimo em dívida. E esta decisão pode vir a fazer toda a diferença para muitas famílias, num momento em que estão a ser entregues 25 casas por dia aos bancos por pessoas sem capacidade para continuar a pagá-las.» (Não li o resto, não comprei o DN.)

Bom, aqui já «faz doutrina». Não sei como é que vai salvar imensas famílias, mas o jornalista lá saberá.

O que seria útil?

Um PDF da sentença.

Seria pedir muito ter acesso a um PDF da sentença?

Até porque se já transitou em julgado (gostava de saber porque é que o banco não recorreu), não devia ser difícil pedir uma cópia da sentença, para se perceber o que estava em causa e como é que o juiz decidiu o que decidiu.

Entregar a casa ao banco não liquida empréstimo

[DESACTUALIZADO - não vou retirar o artigo, mas está totalmente desactualizado neste momento, visto que finalmente, devido ao leitor Tino Dantas, finalmente tivemos acesso àquilo de que está a tratar.]


Li o título desta notícia e achei estranho:


Isto não está de acordo com a lei portuguesa, que diz (simplificando) que se se entregar a casa ao banco e o valor da casa for inferior ao valor do empréstimo, é preciso pagar o que falta. 

Entretanto, li a notícia. Descubro que o título é profundamente enganador. O que está em causa é o momento da avaliação da casa. Ou seja, a regra mantém-se a mesma - não basta entregar a casa ao banco para liquidar o empréstimo. O que está em causa na decisão é o momento da avaliação da casa para saber qual o valor a considerar para efeito de liquidação do empréstimo - e isto não é a mesma coisa.

(Se a decisão for aquela que está na notícia, sem mais, tenho sérias dúvidas em aceitar que seja «enriquecimento injustificado» [terá o tribunal falado de «enriquecimento sem causa»?] querer avaliar a casa no momento em que esta vai ser entregue para ver se cobre o valor do empréstimo. Certamente essa decisão será agradável para quem se queira livrar do empréstimo - mas isso não a torna justa por definição.)

Mas há mais! A notícia diz que a decisão poderá «fazer jurisprudência noutros casos». Ora, em Portugal não há precedente. Isso não impede os tribunais de, apesar disso, acabarem a seguir as mesmas correntes interpretativas. Mas a decisão não se torna um precedente, que é o que fica implícito com aquela notícia. Simplesmente, os tribunais fazem isso.

Mas vejam só: o Bloco de Esquerda, que quer que a entrega de casa ao banco seja suficiente para liquidar o empréstimo, emitiu um comunicado, que diz o mesmo que a notícia, incorrendo naquilo que me parecem exactamente os mesmos erros. 

Fiquei curioso de ler a sentença do Tribunal de Portalegre. É que com este nível de notícias, uma pessoa fica com a ideia de que, de facto, essa sentença existe (não chegariam ao ponto de a inventar). Mas quanto ao conteúdo, é mesmo preciso ler.

EDITADO: Ver aqui a parte 2.

sexta-feira, 27 de abril de 2012

Insider Trading Político!

Um ex-secretário de estado, Henrique Gomes critica neste momento, o acesso priviligiado, de um ex-ministro das Obras Públicas que é actualmento CEO da EDP, a um estudo encomendado à Universidade de Cambridge.

Noticia aqui.

Isto é, António Mexia, defendeu a sua Dama e bem, com conhecimento de informação que ainda não era do domínio público. 

Quem lhe terá telefonado? 

Como eleitor, contribuinte e consumidor de electricidade, gostaria de saber se existiu insider trading político.

quinta-feira, 26 de abril de 2012

A discriminacao dos muculmanos na Europa

A discussao e importante: a Amnistia Internacional (AI) publicou um estudo no qual defende que os muculmanos sao discriminados na Europa. Analisou uma serie de paises e focou-se no acesso ao emprego e a educacao. Ainda nao li o estudo, que e extenso (115 paginas) e nao tem executive summary, mas ja tive oportunidade de ler uma resposta muito interessante, escrita por uma professora belga (um dos paises analisados pela AI).  Nao o reproduzo aqui, porque esta em frances e a reproducao requer autorizacao, mas pode ser consultado nesta pagina.

Nota: obrigado ao Igor Caldeira pela divulgacao via Facebook.

quarta-feira, 25 de abril de 2012

Defendamos a democracia

Vivemos em democracia.

As democracias são regimes que exigem muito de quem lá viva porque vivem em permanente tensão. Vivem da troca e do confronto de ideias díspares sobre a organização da sociedade. Estão constantemente sujeitas a desvarios populistas e à própria degeneração em ditaduras.

Nada é eterno. As democracias não são eternas. Não podemos dar a nossa por adquirida. Não podemos dar por adquirido que seja possível pela força do voto, e não das armas, trocar os Governos. Não podemos dar por adquirido que seja possível debater livremente, livrando-nos do pensamento único coercivamente imposto.

Há quem se auto-proclame representante do povo - quer à esquerda, quer à direita - e reclame novas revoluções. Acontece que vivendo nós numa democracia, não precisamos de novas revoluções para mudar as coisas. E há coisas que, de facto, precisam de ser mudadas. Muitas, até. E há diferenças de opinião sobre o rumo a seguir.

É dessas diferenças de opinião que vive a democracia. Disso, e da possibilidade de haver alterações políticas de modo pacífico. Há quem pense que as democracias apenas são democracias quando está no poder a facção com a qual se concorda. A partir do momento em que está o outro lado no poder, passamos a viver em ditadura.

Este tipo de tomada de posição mina a democracia pela base. E enquanto supostos defensores da democracia se entretêm a trocar acusações sobre o quão vis são as intenções da parte contrária, aqueles que querem de facto acabar com o pluralismo e com as liberdades conquistadas, instaurando novo regime autoritário, esfregam as mãos de contentes.

Enquanto os democratas se consomem uns aos outros, os extremos aproveitam. E quando os democratas começam a ceder aos extremos, adoptando as suas posturas e cavalgando nas suas batalhas, os extremos anti-democráticos vencem sem ter qualquer necessidade de sequer eleger alguém. Venceram a batalha principal: a batalha pelo centro político.

Defender a democracia é muito mais exigente do que se possa pensar. Exige ser capaz de aceitar que haja gente bem intencionada e que mesmo assim pretende aplicar políticas com as quais nada se concorda. Exige ser capaz de aceitar que terá legitimidade para o fazer. Exige ser capaz de lidar com estar em minoria no Parlamento e mesmo assim defender essa instituição de ataques populistas.

Defendamos a democracia. Defendamos o pluralismo.

A democracia não se defende a si própria. E se nos esquecermos de a defender, aí sim, ela cai.

25 de Abril de 1974

segunda-feira, 23 de abril de 2012

Os donos da democracia somos todos nós

A Associação 25 de Abril, Manuel Alegre e Mário Soares consideram-se donos da democracia em que vivemos. Mais: consideram que a aplicação de um programa económico e financeiro com o qual não concordem significa que deixamos de viver em democracia.

Nos EUA também há um conjunto de pessoas que se consideram «donos» da democracia e da constituição. A atitude é essencialmente a mesma: demonizar o lado contrário e dizer que tudo o que esse lado faz é ilegítimo, anti-democrático, destruidor de liberdades, etc.

Claro que, tendo os fundadores dos EUA morrido há dois séculos, a situação está em níveis diferentes. No caso português, há pelos vistos conjuntos de indivíduos que se consideram donos pessoais do regime e da democracia portuguesas pelos simples facto de terem vivido o 25 de Abril de 1974. Nos EUA, naturalmente, ninguém mentalmente são reclama a condição de dono do regime nos mesmos termos.

Mas em ambos os lados do Atlântico, grupos vários de pessoas esquecem-se que não são donas da democracia nem da constituição. Cá, temos gente de esquerda. Lá, temos gente de direita. Defendem que só um programa tem legitimidade democrática e constitucional: o deles. Todos os outros não têm, nem podem ter.

Esquecem-se que democracia plural em que vivemos não se reduz às opiniões de uns ou de outros. Vive, precisamente, do confronto entre as várias tendências e opiniões. Não lhes pertence apenas a eles, pertence a todos, por muito antagónicas que sejam as posições defendidas.

Há democracias em que o pluralismo não é bem visto. Não são democracias em que eu queira viver.

Bom dia

E a isto juntou-se isto

domingo, 22 de abril de 2012

Da importância da retórica perante o pai natal

Em continuidade do meu colega João Mendes:

«Um debate de ideias frutuoso é informativo e esclarecedor, levando a que se compreendam melhor as várias posições em disputa. Chamar ao lado contrário «ingénuo» pouco ajuda neste contexto. Principalmente quando aquilo a que se está a chamar uma posição ingénua não passa de uma descaracterização da posição efectivamente assumida pela parte contrária.»

Pedir a definição prévia das regras do jogo no debate, para que ele seja esclarecedor e produtivo, é sempre controverso. Ou não teremos nós direitos a nos expressarmos como bem desejamos sobre que assunto seja, mesmo que de forma criticável? Quem está na posse de uma tal autoridade, a ponto de ter  licença para impedir alguém de falar da pior maneira possível sobre a melhor das pessoas que exista? Um limite à liberdade de expressão não se pode encontrar quer na sua forma quer no seu conteúdo, correndo o risco de se contradizer com o princípio da própria.

Consequentemente é forçoso questionar, se é possível defender uma opinião perante atitudes que espelham mais as falhas de carácter do orador que os seus erros discursivos. Acredito na resposta é positiva. Se o erro está no carácter, que ele seja sublinhado e o que ele disser é enfraquecido. Se o erro está no que é dito, que ele seja contra argumentado e o que ele disser é igualmente enfraquecido. E também a nossa apresentação como possuidores de um carácter oposto, e a construção dos nossos contra-argumentos com as virtudes discursivas opostas às do nosso opositor: Se o erro está no carácter, pareceremos melhores, e o que dissermos será fortalecido. Se o erro está no que é dito, o que dissermos aparecerá melhor, e é igualmente fortalecido. E à audiência resta julgar as ideias em discussão, sendo contrabalançados, de uma das quatro formas sugeridas, os ataques que, em nossa opinião, são dignos de censura, mas que são dignos de respeito, em opinião da lei.

Existindo licença para tudo dizer, há necessidade de uma maior formação no que é dito. É necessário construir melhores argumentos, e apresentá-los de modo mais convincente. A situação apresentada por João Mendes apenas reforça esta questão. Podemos criticar o que é dito, não podemos censurar o falar.

E ainda:

Mas a retórica é útil porque a verdade e a justiça são por natureza mais fortes que os seus contrários. De sorte que, se os juízos não se fizerem como convém, a verdade e a justiça serão necessariamente vencidas pelos seus contrários, e isso é digno de censura. Além disso, nem mesmo se tivéssemos a ciência mais exacta nos seria persuadir com ela certos auditórios. Pois o discurso científico é próprio do ensino, e o ensino é aqui impossível, visto ser necessário que as provas por persuasão e os raciocínios se formem de argumentos comuns, como já tivemos ocasião de dizer nos Tópicos a propósito da da comunicação com as multidões. Além disso, é preciso ser capaz de argumentar persuasivamente coisas contrárias como acontece nos silogismos; não para fazer uma uma e outra coisa - pois não se deve persuadir o que é imoral - mas para que não nos escape o real estado da questão e para que , sempre que alguém argumentar contra a justiça, nós próprios estejamos habituados a refutar os seus argumentos. Ora nenhuma das outras artes obtém conclusões sobre os seus contrários por meio de silogismos a não ser a dialéctica e a retórica, pois ambas se ocupam igualmente dos contrários. Não porque os factos de que se ocupam tenham igual valor, mas porque os verdadeiros e melhores são pela sua natureza sempre mais aptos para os silogismos e mais persuasivos. Além disso, seria absurdo que a incapacidade de defesa física fosse desonrosa, e não o fosse a incapacidade de defesa verbal, uma vez que esta é mais própria do homem do que o uso da força física.
E se alguém argumentar que o uso injusto desta faculdade da palavra pode causar graves danos, convém lembrar que o mesmo argumento se aplica a todos os bens excepto à virtude, principalmente aos mais úteis como a força, a saúde, a riqueza e o talento militar; pois, sendo usados justamente, poderão ser muito úteis, e, sendo usados injustamente, poderão causar grande dano.

Aristóteles, Retórica. Trad. Manuel Alexandre Júnior, Paulo Farmhouse Alberto e Abel do Nascimento Pena, 4ª edição, Lisboa, INCM, 2010, 1355a-1355b.

sábado, 21 de abril de 2012

Acreditar no Pai Natal e a Democracia

Há por aí quem ache que chamar aos outros «idealista» é essencialmente o mesmo que chamar-lhes «ingénuo». Neste caso, o objectivo é enfraquecer a posição do outro reduzindo-a implicitamente (ou até explicitamente) a um desejo irrealizável e que não assenta na realidade. Geralmente isto segue-se à apresentação de uma caricatura da posição da outra parte (ou até uma descaracterização) ou à apresentação de uma série de «argumentos» que mais não são do que dizer ao público aquilo que o público quer ouvir.

Neste caso, a pessoa que diz que o outro é «ingénuo» (ou «idealista) não nega necessariamente que ela própria tenha uma ideologia. O que faz é apresentar-se como eminentemente pragmática, como uma pessoa que tem em conta a realidade, aquilo que acontece, todas as provas disponíveis, enquanto que o outro apela a «ideais» teóricos muito bonitos, mas que não funcionam no mundo real. E portanto, não acusa necessariamente a outra ideologia de ser ilegítima, mas torna claro que é essencialmente o mesmo que acreditar no Pai Natal.

Claro que, ao essencialmente acusar o outro lado de acreditar no Pai Natal, depois de apresentar uma descaracterização daquilo em que a outra parte defende, aquilo que se acabou de fazer é a mais pura das demagogias e dos populismos. Faz-se apelo ao «senso comum» e às ideias feitas deste mundo e a falácias para obter aplausos, mas não se apresentam argumentos contra a posição contrária. Esta é simplesmente menorizada, menorização essa que pode até ser acompanhada de um paternalista e arrogante apelo a que no futuro a ingenuidade/o idealismo desapareça e seja substituída por uma boa dose de realismo - ou seja, seguir a opinião do outro.

O valor acrescentado deste tipo de tomada de posição em termos de debate público é bastante reduzido. No entanto, são perfeitamente expectáveis, de todos os lados da barricada. Isto porque todos esses lados vão considerar que o outro lado é «idealista» e que aquilo que defende é equiparável a acreditar no Pai Natal.

Mas o principal problema está, a meu ver, na descaracterização constante que se faz da posição contrária em debates (e eu não reclamo perfeição a este respeito, embora tente conhecer os vários argumentos dos vários lados de forma razoável, na medida do possível) - é que essa descaracterização constante impede uma verdadeira troca de ideias. Em vez disso, ficamos com vários monólogos que em vez de responderem aos argumentos do outro lado, os descaracterizam pura e simplesmente.

Um debate de ideias frutuoso é informativo e esclarecedor, levando a que se compreendam melhor as várias posições em disputa. Chamar ao lado contrário «ingénuo» pouco ajuda neste contexto. Principalmente quando aquilo a que se está a chamar uma posição ingénua não passa de uma descaracterização da posição efectivamente assumida pela parte contrária.

Os Dias do Fim da Liberdade de Circulação?


Numa carta conjunta à presidência do conselho europeu, os ministros do interior francês e alemão propuseram que os estados membros do espaço Schengen pudessem fechar as suas fronteiras por um período de trinta dias de modo a conter vagas de imigração caso um dos outros estados membros falhe as suas obrigações no que diz respeito ao controlo fronteiriço. O tratado prevê que só as fronteiras externas do espaço sejam vigiadas, sendo que internamente os cidadãos podem circular livremente. Até agora competia à Comissão decidir se um estado poderia ou não fechar as suas fronteiras, como sucedeu em Portugal durante o Euro 2004. Quando o ano passado a Dinamarca decidiu incorporar controlos fronteiriços ouviu-se muito barulho dos restantes estados membros mas nenhuma acção concreta, como de costume. Desta vez temos os dois pesos-pesados europeus a contemplar a ideia, mesmo que seja apenas vinda de dois ministros. Nestes dias de atmosfera apocalíptica para o projecto europeu seria de esperar que se começassem a ouvir vozes favoráveis à abolição deste ou daquele pilar da UE e este concretamente é dos mais importantes. Para mim pessoalmente é provavelmente o mais importante. Mais até do que poder viajar sem trocar de moeda (nalguns estados, pelo menos) é a possibilidade de poder viajar sem passaportes e controlos fronteiriços e de não me ter que preocupar com limites à minha estadia (este último não verdadeiramente dependente do tratado em questão). Como se voar hoje em dia não fosse já suficientemente insuportável, mais um controlo não ajudará de certo. Em breve quem sabe também já nem poderei abastecer o carro em Espanha quando me encontrar perto da fronteira.

Essencialmente, isto demonstra mais uma vez a necessidade de um controlo fronteiriço verdadeiramente europeu, ou seja em vez de serem os estados limítrofes e com fronteiras marítimas a exercer o controlo, mesmo que sob regras comuns, seria desejável ver uma polícia fronteiriça comum para que não fossem necessárias estes birras ocasionais quando a França se mostra insatisfeita com as vagas de imigrantes provenientes do norte de África que chegam à Itália. Para além disso serviria para fortalecer muito mais a liberdade de circulação já que dificultaria atitudes unilaterais como a da Dinamarca que tal como esta recente carta, são apenas actos de cariz eleitoralista. Obviamente que este tipo de propostas não são feitas, ou se o são não se ouvem pois é naturalmente um terrível atentado à soberania dos estados. Se estes já abdicaram de fronteiras dentro do espaço é questionável o que mais teriam a perder com a medida. Um artigo do semanário Spiegel acaba com a lamentação de que estas medidas nos aproximarão da Grã-Bretanha, cujas obsessões com a fronteira são aparentemente motivo de gozo por parte do continente. Se já nem da Inglaterra podemos rir, a que estado teremos nós chegado...


Notícia aqui.