domingo, 29 de abril de 2012

A sentença de um juiz de Portalegre

Foi publicada ontem no DN um notícia relativa a uma sentença de um juiz de 1ª instância de Portalegre, que terá decidido que a entrega da casa seria suficiente para saldar o empréstimo à habitação que os devedores contrairam.

Leia-se aqui a notícia:

http://www.dn.pt/inicio/economia/interior.aspx?content_id=2446449


e em maior desenvolvimento aqui:

http://economia.publico.pt/noticia/tribunal-diz-que-entrega-da-casa-ao-banco-salda-toda-a-divida-1543931


Esta decisão está a ser considerada importante, pois poderá criar uma nova linha de raciocínio a que outros tribunais podem aderir (como o João C. Mendes já referiu neste blogue, a jurisprudência deste tribunal não vincula outros , ficando para outro dia a minha opinião sobre a forma como a imprensa apresenta notícias de "teor jurídico").

Não tive acesso à sentença, nem conheço alguém que tenha tido. Assim, falta um elemento fundamental para debater o assunto do ponto de vista jurídico, se bem que talvez haja algo que já é possível dizer do ponto de vista económico e das expectativas das pessoas que tenham contraído e/ou que no futuro venham a contrair créditos à habitação.

Na sequência desta notícia, vi surgir uma série de comentários na internet sobre a sentença, todos a favor da decisão deste juiz de Portalegre, por ex:

http://boasnoticias.clix.pt/noticias_Portalegre-Entrega-de-casa-liquida-empr%C3%A9stimo-_10893.html

ou ainda

http://www.dn.pt/inicio/opiniao/interior.aspx?content_id=2447034&seccao=Ferreira%20Fernandes&tag=Opini%E3o%20-%20Em%20Foco

Custa-me a perceber como é que ninguém tentou equacionar os vários lados da questão (isto é: porque deve responder a totalidade do patrímónio dos devedores pela dívida e não apenas a habitação dada como garantia?) e as consequências da adopção generalizada do entendimento do tribunal de Portalegre por outros tribunais.

Na decisão de concessão de crédito tudo se reduz a uma medição de risco. O risco será tanto maior quanto menos garantias os devedores oferecerem.

Ora, o banco, como qualquer credor, procura sempre ter as melhores garantias possíveis do seu lado, designadamente, hipotecas (essencialmente por: a) garantirem dívidas específicas b) dando a certos credores (os credores hipotecários) prevalência em relação a outros créditos, entre outras vantagens.

O banco terá contado (para este e para todos os financiamentos semelhantes), na sua análise de risco, com o restante património do devedor e não apenas com o valor do imóvel (que com a generalização desta decisão passaria a constituir a única e total garantia de ressarcimento do crédito ao banco).

Análises que agora estariam, inelutavelmente, erradas.

O facto de apenas o imóvel responder pelo incumpimento de um financimento para a habitação deverá fazer com que o risco de incumprimento dos empréstimos (concedidos e a conceder) suba consideravelmente (menos património que garanta os empréstimos) e que os bancos tenham de fazer uma de várias coisas:
1) Emprestem significativamente (ainda) menos (ou exigindo entradas maiores ou recusando, tout court, o empréstimo);
2) Aumentem significativamente as taxas de juro cobradas;
3) Exijam mais garantias aos devedores ou a terceiros (cujos custos correrão, certamente, pelos devedores).

Chegados a este ponto vemos um paradoxo interessante na opinião pública:

Ora, por um lado, quer-se que os bancos coloquem liquidez na economia (falta financiamento às empresas, às famílias, etc...), por outro, diminuem-se as garantias do crédito cuja análise de risco tinha em conta a totalidade do património dos devedores (e que neste caso, possivelmente, significaria não ter emprestado os montantes em causa ao casal).

Parece, por tudo isto, que este é um problema sensível e complexo.

De um lado, a possibilidade de amenizar, em casos limite, as dificuldades sociais que resultam da incapacidade das pessoas cumprirem as obrigações de financiamento contratadas numa altura de crise, e por outro, que acautele também as preocupações das instiuições financeiras de forma a que continue a existir um certo financiamento à economia (e se garanta a solvabilidade dos bancos que, todos sabemos, se tiverem problemas financeiros terão de ser pagos pelos contribuintes).

Parece-me, por tudo isto, que a complexidade e as ramificações deste tipo de situações carecem de uma reflexão pelo poder legislativo, não parecendo correcto imputar ao poder judicial essa responsabilidade.

O que mais me surpreendeu, confesso, foi certeza e a facilidade com que vi tratar este assunto nos media. Tratar um assunto complexo e potencialmente com capacidade para abalar maior sector de crédito do país com palavras de ordem é, geralmente, mau sinal.

PS- Este é o meu primeiro post no Cousas Liberaes, blogue que acompanho desde o seu início. Agradeço o convite para contribuir, o que tentarei fazer com a assiduidade possível.

9 comentários:

  1. Concordo integralmente, Duarte.

    Se, por um lado, é de aplaudir a coragem da sentença, por outro lado não podemos deixar de pensar nas implicações (negativas) que a mesma terá.

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  2. Muito boa análise Duarte!
    Parece-me que temos por cá uma abordagem muito jurídica das coisas. Esse juiz pouco conhecimento terá da teoria Law & Economics.
    Veremos o que esta sentença dá, o melhor é que não dê em nada, senão os bancos serão ainda mais expeditos em usar as cláusulas leoninas dos contratos.
    A superficialidade com que se discutem as coisas entre nós nunca deixa de me surpreender...
    PS: Sede muito bem-vindo. Qualquer que seja a assiduidade,é escrita com liberdade!

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  3. Obrigado pelos vossos comentários e por tão simpaticamente me terem recebido neste espaço.

    Um abraço!

    PS- Não tenho muita esperiência no blogger e apaguei um comentário meu. Enfim, "practice makes perfect".

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  4. Caro Duarte Sousa, estou em total acordo consigo quando vejo estes assuntos derem tratados com alguma leviandade, embora eu ao contrário de si não atribuo essa leviandade à Imprensa, mas aos habituais comentários na net, esse sim, são habitual e normalmente levianos, parciais mas felizmente pouco ou nada consequentes.

    Lamento na sua análise não ter contemplado a análise de risco, exclusiva obrigação do banco no momento da concessão do empréstimo. Pois sabendo eu da leviandade com que algumas avaliações imobiliárias eram feitas há 10 anos atrás, com o único propósito de atingir objectivos de crédito, diria que o que hoje se passa não pode comprometer só os devedores, por uma questão da mais elementar justiça.


    Nesse sentido estou inteiramente de acordo com a decisão deste Juiz, e com a assunção por parte do sistema financeiro de parte dos prejuízos resultantes do RISCO ASSUMIDO, pela leviandade de algumas ANÁLISES DE RISCO menos PONDERADAS.

    Não podem nem devem ser sempre os mesmos a assumir as perdas todas, só porque são a parte negocial mais frágil ou não podem pagar aos melhores advogados.

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  5. Ainda há poucos dados sobre a decisão e os jornais não são normalmente veículos esclarecedores. Aguardemos pela publicação da sentença, se é que tal acontecerá.
    De qualquer modo, ainda poderá haver lugar a recurso, porque em Portugal, que pode, nunca fica satisfeito com uma decisão em 1ª instância.
    Quanto ao tema em causa, é complexo demais para ser tratado em tribunal, porque mexe com demasiadas variáveis. De um lado a sustentabilidade/integridade dos devedores e do outro a sustentabilidade dos bancos, que actuaram com base nas regras existentes, as quais têm um impacto relevante se alteradas a meio do jogo.
    Em suma, ainda é cedo para perceber se isto é uma notícia mal dada pelo DN, uma decisão sem consequências ou o início de qualquer coisa.

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    1. Link para aquilo de que está aqui a falar neste post: http://www.cousasliberaes.com/2012/04/ainda-o-tribunal-de-portalegre.html

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  6. Aconselho todos a lerem com atenção a sentença de forma a não serem retiradas conclusões precipitadas, nomeadamente no que concerne ao anúncio de que o imóvel hipotecado responde pela totalidade da dívida. Este caso tem a particularidade de o banco ter acordado o valor da adjudicação do bem por 117,5m€ e posteriormente ter licitado pelo menor valor legalmente admissível (70% daquele).

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    1. Sim, exactamente. Pretendo escrever sobre o tema de novo quando tiver mais tempo (possivelmente este fim-de-semana).

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