Após períodos de hiperinflacção com consequências trágicas para os seus cidadãos, a Alemanha aprendeu às suas próprias custas que manipular o valor da moeda não resolve, mas pode piorar e muito, os problemas da economia no médio prazo. Aplicou o resultado dessa lição ao longo dos dois últimos terços do século passado e, como prémio, teve a moeda mais estável e respeitada do Mundo; com os benefícios económicos inerentes.
Não quero apresentar este ponto como uma verdade absoluta. Mas para uma análise e discussão útil, é desejável que ele seja debatido na base de argumentos sãos. Ao ler o texto de hoje, na última página do Público, do jornalista e deputado europeu Rui Tavares, senti amargamente que foi prestado um mau serviço a esse debate na ordem do dia.
Rui Tavares descreve um discurso de Hitler de 1941 em que este declara guerra aos Estados Unidos. Após tecer diversas considerações sobre a natureza da personalidade de Hitler e das intenções que nessa altura já existiam acerca do tratamento horrível que iria dar aos judeus, cita um trecho do discurso em que Hitler critica as políticas de emissão de moeda de Franklin Roosevelt nos EUA e autoelogia as suas próprias políticas de estabilização da moeda. Rui Tavares conclui finalmente que “Já na altura os EUA tiveram sorte em ter um Roosevelt em vez de um Hitler. E ainda bem que ninguém se lembrou (então) de proibir o keynesianismo, nem de levar políticos a tribunal por políticas de expansão da economia".
A Escola Austríaca da Economia desenvolveu-se no início do século XX, precisamente o mesmo local onde Hitler nasceu e cresceu. O que esta corrente advogava era uma lógica consequência da teoria que desenvolveu (que pode ser discutida) e da sua aderência à realidade, muito em particular a do momento e local em que foi desenvolvida. O fato do governo de Hitler ter aplicado princípios económicos que se alinhavam com esta corrente não foi mais do que a natural consequência deste contexto. Um dos grandes pensadores da Escola Austríaca, Ludwig von Mises, sendo judeu, já tinha fugido da Europa para os Estados Unidos um ano antes daquele discurso.
Sem mais explicações sobre a necessidade de realizar discussões com argumentação sã e de como isso não acontece quando se cola uma determinada corrente económica a ideias macabras de Hitler sobre judeus, resta-me repetir que este é um exemplo de mau serviço à informação do público, e que infelizmente neste campo específico me parece ser recorrente entre diversos críticos daquilo a que apelidam de “neo-liberalismo”. Quanto a Rui Tavares, que respeito e gosto de ler, talvez tenha tido ele também um momento de “divisão de personalidade”, ao vestir o casaco de político populista e demagogo.
Após publicar o texto, enviei-o a Rui Tavares, que pronta e amavelmente respondeu, tendo-me também autorizado a publicar aqui a sua resposta:
ResponderEliminar"
Caro João Bernardino,
Obrigado pela mensagem. Compreendo as críticas, mas repare que eu falo "num Hitler anti-keynesiano" (o artigo indefinido refere-se àquele Hitler que aparece naquele discurso) e não digo que Hitler seja anti-keynesiano por si só — na verdade, bem sei, o esforço industrial alemão na preparação da guerra pode ser entendido como política expansionista e, grosso modo, keynesiana. Mas a retórica dele naquele discurso é a de "um" (lá está outra vez o artigo indefinido) Hitler ordoliberal, pelo menos para consumo e satisfação de uma plateia alemã já então (principalmente então) marcada pelo trauma inflacionista dos anos 20.
Não estou a tentar esquivar-me às suas críticas. A minha crónica está, de certa forma, tosca (gastei muita concentração a rever o ensaio que saiu no P2 e, estando em Estrasburgo cheio de trabalho, não tive quase tempo nenhum para refinar a crónica). Mas peço-lhe que não desconte a intuição de história cultural que lhe está subjacente, e que tem importância política (a utilização da dívida como um papão, a ideia da criminalização da má gestão dos políticos) e uma genealogia surpreendente. Eu não estava à espera de encontrar aquele Hitler no discurso, uma descoberta interessante e reveladora, que não pode ser descontada só porque há distância entre as palavras e os atos do político (e essa distância, não é reveladora também?).
Peço-lhe que não se apresse em considerar que não escrevi com o meu chapéu de interpréte o mais rigoroso possível de documentos. Simplesmente, uma crónica tem os seus condicionalismos, e para os ter em conta seria quase sempre necessário escrever ainda outra crónica — coisa que este email já está a caminho de se tornar.
Disponha sempre. Com os melhores cumprimentos,
Rui Tavares
"
Usar Hitler para criticar Merkel é como citar Torquemada para discutir Ratzinger.
ResponderEliminar