sábado, 10 de dezembro de 2011

Uma questão de escala (III)

Na Europa, o processo de integração europeu tem como estágio mais avançado a União Europeia, cuja crise actual tem levado a um debate sobre como reformar as suas instituições. Mas a constante evolução tecnológica vai gerando interdependências a uma escala cada vez maior. O que acontece na União Europeia tem consequências para os Estados Unidos ou na China e vice versa. Da mesma forma que as decisões que tomamos enquanto indivíduos afectam outros indivíduos, também as decisões tomadas por comunidades têm impacto interno mas também têm impacto externo.

Uma manifestação da interdependência actualmente existente são as Convenções Modelo da OCDE (p.ex. esta, numa matéria tão relevante para a soberania como os impostos) ou os «standards» regulatórios do Comité de Basileia. Apesar de nos encontrarmos perante «soft law», a verdade é que a interdependência gerou a necessidade de emergirem «standards» internacionais/globais que depois os Estados (ou a UE) acabam por transpor para os seus ordenamentos jurídicos (transformando-os em «hard law»). Ora, este processo é equivalente a processos muito semelhantes que existem, por exemplo, nos Estados Unidos, nos quais muitas «leis modelo» são desenvolvidas e depois transformadas em lei em vários Estados (à margem do Governo federal e em áreas da competência dos Estados federados).

Como se pode ver, este tipo de processos não põem em causa a soberania dos Estados, embora mostrem que ela funciona de forma condicionada. Mas também a nível global se coloca em causa a soberania dos Estados face à emergência de problemas que afectam todos os Estados e que precisam de uma resposta global (veja-se o terrorismo global, por exemplo, ou até questões migratórias ou comerciais). Por outro lado, o cada vez maior reconhecimento do indivíduo enquanto tal, e não como apenas uma emanação de certo Estado, serve também para minar o poder dos Estados (embora reconheça que ainda há um longo caminho a percorrer). O surgimento de empresas multinacionais e organizações não-governamentais globais têm, por sua vez, efeito semelhante.

Já existe uma comunidade política global, da qual todos fazemos parte, e sobre a qual também importa discutir o modelo de governação. A estagnação e arrastamento das negociações de Doha têm efeitos que se repercutem em cada um de nós, espalhados pelo mundo inteiro. A crise da União Europeia tem efeito nos EUA e a crise dos EUA tem efeito na União Europeia. A política monetária chinesa tem efeitos a nível global. No entanto, todos estes debates continuam a ser tratados e concebidos mediaticamente como conflitos entre Estados e as negociações de Doha nem costumam aparecer fora da comunicação social especializada, o que aliás também acontece com o debate sobre o modelo de governação a nível global.

É preciso inserir a crise que actualmente vivemos na União Europeia no contexto da crise que se vive nos EUA e também da emergência da China, da Índia e do Brasil e do ressurgimento da Rússia, entre outros processos marcantes do nosso tempo, para começar a tentar perceber as implicações do que se está a passar. Não basta pensar na perspectiva puramente interna portuguesa ou mesmo nas quezílias internas da União Europeia, que é tendencialmente aquilo que é feito.

Por outro lado, enquanto a interdependência e os benefícios que traz não forem valorizados como eu, pelo menos, penso que deviam ser, corremos o risco de que comecem a ser desvalorizados e até mesmo culpados pela crise. Daí a começarem a surgir barreiras à livre circulação, em nome da «soberania nacional», vai um passo muito pequeno, com os custos de oportunidade incalculavelmente elevados que isso traria.

Da Direita conservadora não se pode esperar que faça a defesa da liberdade e da interdependência global. Na Esquerda, ouvimos sistematicamente a palavra «estrangeiro» ser utilizada como se de um insulto se tratasse, com referência ao FMI e à UE (instituições das quais Portugal é membro, ainda por cima), bem como a defesa intransigente da «soberania nacional».

Cabe, então, aos liberais democratas fazer a defesa intransigente da interdependência global, do comércio livre, da primazia do Direito nas relações internacionais e da importância do indivíduo na política global. Enfrentando conservadores quer à Direita, quer à Esquerda, em nome da paz, da prosperidade e de um mundo melhor.

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