sábado, 30 de abril de 2011

As célebres reformas estruturais (II)

A reforma do Estado passa por cortes na despesa, mas para que se proceda a cortes na despesa é preciso saber, afinal de contas, quanto dinheiro é que se gasta. Para isso, é preciso saber que entidades públicas é que existem. Algo que não é fácil de saber. Aliás, é tão difícil de saber, que ninguém sabe, verdadeira e exactamente, quantas entidades públicas existem. Têm proliferado, empresas públicas, fundações públicas, todo o tipo de entidades que se vão acumulando, de tal forma que ninguém as consegue contar de forma exacta.

Tudo isto se relacionada com um fenómeno conhecido por «fuga para o Direito Privado». Para se entender este fenómeno, é preciso algum contexto sobre os princípios subjacentes ao Direito Público e os princípios subjacentes ao Direito Privado.

O Direito Público rege-se pelos princípios da competência e da autoridade. O princípio da competência diz que o a entidade apenas pode agir com base numa norma expressa que permita que ela aja daquela forma; em suma, a entidade apenas pode fazer o que é permitido, e o que não é permitido, é proibido. O princípio da autoridade, por sua vez, diz que aquela entidade, quando agir com base em poderes exorbitantes (com base no ius imperium), se impõe a entidades privadas. (No séc. XIX, as coisas não funcionavam assim, mas a evolução deu-se, felizmente, neste sentido, de limitar a actuação das entidades públicas, e portanto dotadas de poderes coactivos, aos casos expressamente previstos.)

O Direito Privado rege-se pelos princípios da liberdade e da igualdade. O princípio da liberdade diz que tudo o que não seja proibido, é permitido. O princípio da igualdade diz que, entre privados, por princípio, não há supremacia de um privado em relação a outro, encontram-se todos no mesmo plano. As entidades públicas, quando não agem no âmbito dos seus poderes exorbitantes, são também reguladas pelo Direito Privado.

Ao criar entidades regidas pelo Direito Privado, o Estado escapa-se, portanto, às restrições que lhe são impostas pelo Direito Público, dado que essas entidades, apesar de públicas, se regerem por Direito Privado.  É verdade que continuam a ser pessoas colectivas, e que haverá estatutos com regras de funcionamento, mas o nível de controlo pura e simplesmente é menor. Isto foi considerado importante para tornar o Estado mais eficaz, mas tem tido vários efeitos perniciosos.

O primeiro efeito tem sido a já referida proliferação de entidades, proliferação essa que tem gerado redundâncias, e portanto gastos supérfluos.

O segundo efeito tem sido o de alargar a teia de entidades prontas a receber boys e girls, tendencialmente muito bem pagos.

O terceiro efeito tem sido o de gerar oportunidades para o Estado Central (e também para as autarquias locais, diga-se) desorçamentarem dívidas, «passando-as» para estas entidades (geralmente, «empresas» públicas), de forma a «esconderem» as ditas.

O quarto efeito, como bem tem apontado o Prof. Paulo Trigo Pereira, é o de retirar poder de controlo ao Parlamento sobre as áreas nas quais essas entidades actuam, visto que estas entidades vão ser tuteladas pelo Governo e portanto prestam contas a este.

Um exemplo de um uso pernicioso destas entidades pode ser encontrado nesta notícia do Expresso. Resumidamente, o Estado vendeu a uma empresa pública uma série de imóveis, a um preço inflacionado, e a empresa pública subsequentemente arrendou os imóveis ao Estado. O título do artigo, que já data de 2009, diz tudo: «Estado vende a Estado para compor contas».

A SIC passou uma peça já este ano sobre o mesmo tema:


O Tribunal de Contas tem competência para controlar este manancial de entidades públicas, mas não tem recursos, nem nunca os terá, para as controlar todas ao mesmo tempo, ou mesmo parte substancial ao mesmo tempo. Considero que o Tribunal de Contas tem, sob a égide do seu actual Presidente, realizado trabalho muito meritório, mas não basta haver um bom Tribunal de Contas. Temos mesmo de olhar com atenção para como se tem processado esta «fuga para o Direito Privado», ver quanto é que nos está verdadeiramente a custar, e agir em conformidade.

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