Mostrar mensagens com a etiqueta reforma do Estado. Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta reforma do Estado. Mostrar todas as mensagens

sábado, 2 de março de 2013

Governo e PS não têm um programa de reforma do Estado

O Governo não tem um programa de reforma do Estado. Tem havido debates sobre o tema, organizado à última hora e em cima do joelho, mas, além de se saber que o Governo quer cortar mais quatro mil milhões de euros, não se sabe o que pretende fazer. O PS, por sua vez, faz bandeira de não querer cortar os tais quatro milhões de euros, mas, não tendo posto de parte debater a reforma do Estado, também o PS não tem um programa coerente e completo sobre esse tema.

Em 2013, continuamos a debater a reforma do Estado no plano da teoria. O Governo, desde que iniciou funções, tem levado a cabo algumas fusões e extinções, mas principalmente focadas em cargos dirigentes. O primeiro Governo de José Sócrates lançou uma reforma do Estado, mas que ficou longe de ser concluída (apesar das melhorias em termos de informatização dos serviços do Estado). No fundo, fala-se sobre o tema, diz-se que é necessária essa reforma, mas no fim não se é consequente.

Este Governo, em particular, tem de facto feito cortes na despesa, mas devia ter imediatamente, ao ter chegado ao poder, lançado as bases para a reforma do Estado estar já a ser implementada na prática. O PS, em vez de se ter escondido do debate, devia ter participado activamente, fazendo valer os seus pontos de vista, desde o primeiro momento. Do PCP-PEV e do BE é esperado que fiquem no seu canto a lançar insultos e acusações, mas do PS não. Do PS espera-se que apresente propostas.

Somos muito pouco exigentes com as nossas Oposições cá em Portugal. Do Governo espera-se que resolva todos os problemas em cinco minutos, de preferência até ontem, conseguindo tudo e o seu contrário. Da Oposição não se exige nada. Não se exigiu nada ao PSD de Passos Coelho enquanto Oposição ao Governo de José Sócrates e não se está a exigir nada ao PS de António José Seguro enquanto Oposição ao Governo de Passos Coelho. O resultado foi que o PSD de Passos Coelho não se preparou para chegar ao Governo e que o PS de Seguro está no mesmo caminho.

O Governo e o PS não têm programa de reforma do Estado, mas «slogans» têm. Também têm tácticas políticas. Também têm comentadores na televisão. Têm muita conversa, muito paleio, muita discussão sobre a política enquanto jogo e brincadeira, mas sobre a reforma do Estado, não há um programa coerente, integrado e completo, quer do Governo, quer do PS. Já há tempo que esse programa devia existir. Já há tempo que esse programa devia estar a ser implementado. Mas em vez disso, está a ser debatido, e de forma razoavelmente teórica.

É incrível como os meses passam e esta situação continua na mesma. Sucedem-se os escândalos e as histerias mediáticas em torno das coisas mais espantosas, mas onde está a pressão sobre os partidos para serem claros nas propostas que fazem, para garantirem que essas propostas estão custeadas, para explicarem de que forma é que essas propostas seriam exequíveis? Em lado nenhum. E isto aplica-se a Governo e à Oposição. O «debate» fica sempre pela rama. Discutem-se pessoas e rumores. Confundem-se temas complexos e mesmo temas simples - como quando se «confunde» o TGV com uma linha de mercadorias. Apela-se a supostas autoridades para dar opiniões sobre temas, por vezes sem esses temas terem sequer sido estudados previamente.

Não é por acaso que o Governo e o PS não têm um programa de reforma do Estado. Ninguém parece querer saber se têm ou deixam de ter. Ninguém parece querer saber exactamente que propostas são feitas e o que as fundamenta. O interesse está em brincar à política, com debates públicos ao nível do pior que se vê na blogosfera ou em fóruns na Internet, sem qualquer exigência de mais. A teoria do coitadinho e as vitimizações abundam. As posições prévias não são assumidas, são apenas subentendidas ou até passadas como não existindo. Há quem faça gala de não ter ideologia e de não ser político e depois da «transparência» - quando a transparência exigiria precisamente que se assumisse aquilo que se pensa, qual o ponto de partida para aquilo que se diz e qual a razão para esse ponto de partida.

O Governo e o PS não têm um programa de reforma do Estado num momento em que esse é um tema fundamental na resolução dos nossos problemas. É absurdo. Mas a verdade é que não são penalizados por isso. São penalizados por apresentarem ideias concretas. É que essas ideias concretas pressupõem escolhas, exigem que se tome partido, que se explique o que se vai fazer, e tudo isso vai afectar gente que se vai queixar. E nesse momento, o enfoque vai ser nas queixas, quaisquer que sejam os fundamentos, mais ou menos válidos. É bem mais fácil, portanto, manter ambiguidades - principalmente enquanto se está na Oposição, porque da Oposição não se exige nada. Do Governo, entretanto, tudo se exige, e o Governo, qualquer Governo, vai resvalando, há medida que é forçado a tomar decisões.

No fim do ciclo, principalmente em momento de crise, o Governo cai e a Oposição chega ao poder. Nenhum tem, o teve, programa de reforma do Estado. Os problemas continuam. O ciclo repete-se. E ninguém exige mais.

sexta-feira, 18 de janeiro de 2013

Chatham House Rules, nova histeria, dinâmica negativa e o Eurostat continua a não colocar o nosso défice em risco

1. Houve mais um episódio de histeria colectiva e de rasgar de vestes. Desta vez, foi por o Governo se ter dedicado a dizer que ia ter um grande debate sobre a reforma do Estado Social e termos tido um debate sob Chatham House Rules (ver também aqui). Isto não é um ataque à liberdade de imprensa, é uma forma de promover debates melhores, em que as pessoas não têm de passar mais tempo a pensar em como é que o que dizem vai «soar» do que a trocar ideias - basta ver a forma como o que se diz pode ser facilmente distorcido ou retirado do contexto para ver como exigir que se peça autorização para atribuir afirmações ajuda. O problema é que o Governo prometeu um grande debate público - e isto não é um grande debate público. Aquilo que o Pedro Pita Barros descreve neste seu artigo é que seria um exemplo de um grande debate público. E isto já devia ter começado há bastante tempo - mas é, de qualquer forma, claramente algo a planear e a aplicar na prática.

2. Este tipo de situações fazem com que a minha atitude perante uma notícia escabrosa seja sempre de suspeita - presumo sempre que falta ali qualquer coisa. Presumo isso porque já foram demasiadas as vezes em que quando fui ver a fonte, descobri que sim, que faltava qualquer coisa, e que essa coisa era importante para se perceber o que estava em causa - e que, portanto, faltava o contexto, ou tinha havido um puro e simples erro (que parece normalmente evitável). Combine-se isto com as chinfrineiras que agora se tornaram habituais em relação a todo o tipo de temas que não entram na cabeça de ninguém (houve uma pessoal a ser entrevistada sobre um anúncio em que dizia que queria uma mala Chanel de forma considerada fútil?!) e torna-se difícil acompanhar a actualidade política, social e económica em Portugal - ou se tem de fazer sempre investigação própria (e por vezes não é fácil), ou então já se fez, e simplesmente notam-se os erros técnicos que induzem em erro ou tornam mais difícil a compreensão de um assunto qualquer. Isto não quer dizer que seja tudo mau - mas a tendência para a gritaria na nossa vida política torna as coisas, por vezes, difíceis de suportar.

3. O PS e o Governo continuam com uma péssima dinâmica em que o Governo tenta ficar com os louros de uma recuperação bem sucedida (se tudo correr bem) e o  PS tenta chegar ao Governo criticando de forma vazia o Governo (se tudo correr mal). O que nós precisamos é de um compromisso alargado em que se construa um novo modelo de desenvolvimento e de Estado para o país. Em vez disso, temos trocas de insultos, trocas de acusações, jogos políticos e uma absoluta incapacidade, do Governo e da Oposição, de fazerem mais do que isto. As reformas que vão ser implementadas agora só são credíveis se forem feitas para durar e se reunirem apoio suficiente para não acabarem à primeira oportunidade, e essa credibilidade vem de existir a noção de que um Governo que venha a seguir não volta atrás com tudo o que este Governo andou a fazer - incluindo no que toca à consolidação orçamental. Mas em vez de um grande debate ideológico-constitucional com tendência para chegar a um compromisso, temos uma gritaria.

4.O Governo continua a insistir num malabarismo contabilístico (ver aqui e aqui) não admitido pelas regras do Eurostat e pelo rigor técnico com que estes temas devem ser tratados no que toca a tentar usar dinheiro recebido com a concessão da gestão dos aeroportos à ANA para 'abater' ao défice, e não à dívida, do ano passado. Pior: continua o seu jogo perigoso de avançar com a medida, e pressionar o Eurostat a não recusar aquilo que devia recusar, por motivos puramente políticos - sujeitando-se a que o Eurostat faça o que deve, diga que não, e depois o Governo tem mais um problema para resolver, que andou a adiar - o que nos prejudica a todos. Como é um tema muito técnico, e como malabarismos destes são prática corrente, incluindo em Governos PS, não tem sido muito falado - até porque ainda não rebentou, verdadeiramente.

Este tema devia ser mais falado. O Governo devia ser penalizado por estar a fazer um jogo tão perigoso com as nossas finanças públicas numa altura em que é fundamental recuperarmos a nossa credibilidade e em que é fundamental não empurrarmos mais o problema com a barriga a ver se passa. A única coisa que passa são navios, que nós ficamos a ver, no meio da água, enquanto nos afundamos, e enquanto nos entretêm com malabarismos que não resolvem o nosso problema.

terça-feira, 15 de janeiro de 2013

Reforma do Estado num minuto e meio!

Leio aqui, que a Conferência organizada por Sofia Galvão do PSD, para ouvir a sociedade civil tem limitações aos jornalistas. Não podem gravar, nem citar sem expressa autorização dos próprios intervenientes. A organização prontifica-se a oferecer minuto e meio de imagem e som! Percebia isto se se estivesse a tratar de algo interno ao Partido, mas nesta questão é dificil de defender. Se bem entendo a sociedade civil que pode participar e ouvir o que ali se passa é aquela tem a vida para estar presente no local. Uma élite que pode tirar a terça-feira e não precisa de trabalhar e de governar a vida. Quando o César me explicou o que era o PSD não era nada disto...

quinta-feira, 10 de janeiro de 2013

Relatório do FMI - Parte 1

Algumas notas sobre o Sumário Executivo do relatório do FMI sobre reforma do Estado e cortes na despesa:

1.  O relatório refere três objectivos fundamentais que servem de pano de fundo a todas as propostas: aumentar a eficiência no fornecimento de bens e serviços públicos, enfoque na obtenção de resultados equitativos e o estímulo da actividade económica e do empreendedorismo. 

O relatório não se limita a apontar zonas onde cortar. Aponta também reformas muito concretas para o funcionamento do Estado Social, que vão além de simplesmente decidir cortar aqui ou ali.

2. No relatório refere-se que o Governo já fez o seu próprio trabalho de «benchmarking» para preparar propostas governamentais de reforma do Estado e de corte na despesa. 

O relatório refere também que os técnicos responsáveis pelo relatório estão em grande medida de acordo com esse trabalho do Governo, que deverá ser divulgado quando o próprio Governo apresentar o seu relatório sobre a reforma do Estado Social e sobre cortes na despesa.

Neste ponto, pelo menos, não deve haver grandes divergências entre os relatórios. Aliás, os temas abordados neste relatório são os temas que eu tendo a ver a serem discutidos quando se fala da reforma do Estado Social, e aliás os temas expectáveis - salários, pensões, sistema de Educação, sistema de Saúde...

De referir ainda que o relatório menciona expressamente que o Governo está a tentar identificar as reformas a levar a cabo dentro do enquadramento constitucional vigente.

3. Refere-se expressamente à necessidade de agir relativamente aos salários do Estado e às pensões, que constituem importantes fontes de despesa pública.

Em salários públicos e pensões já este Governo e o Governo anterior cortaram, e esses cortes foram sujeitos ao crivo do Tribunal Constitucional. Estão previstos novos cortes e, de novo, vai haver intervenção do Tribunal Constitucional. É importante a ligação entre este ponto e os dois pontos seguintes.

4. Refere-se que existe excesso de pessoal no sector a trabalhar em Educação e nas Forças de Segurança, bem com um excesso de pessoal pouco qualificado a trabalhar para o Estado; fala-se também especificamente das horas extraordinárias pagas aos médicos.

O excesso de pessoal encontrado está naturalmente ligado à importância que os salários têm no nível de despesa pública. As alternativas aos cortes de salários transversais passam por despedimentos selectivos em áreas que se considere serem excedentárias em termos de pessoal.

Naturalmente que quem lá trabalhe vai dizer exactamente o contrário, e entramos no problema a que eu já me referi aqui e aqui. Toda a gente directamente e indirectamente afectada por estes cortes vai clamar pela sua injustiça, com mais ou menos razão, e toda a gente que paga a factura vai estar demasiado pulverizada para se organizar.

A dificuldade em diminuir o número de funcionários públicos é um problema quer ao nível do corte de despesa, quer ao nível de ser possível gerir o Estado de forma eficiente para os contribuintes. Um Estado que apenas consegue reduzir pessoal através de programas de estancamento de contratações ou ao deixar expirar contratos a prazo não é um Estado que se consiga gerir decentemente

5. O relatório refere a necessidade de que a estrutura de remunerações do Estado seja atractiva para os mais talentos, que haja equidade entre trabalhadores do sector público e do sector privado, e que haja maior mobilidade para dentro e para fora do sector público.

Este ponto é, a meu ver, muito importante. Sendo objectivo cortar na Função Pública, cortam-se salários, mas não aqueles que estejam abaixo de 1500 euros, e os cortes são aplicados de forma progressiva, podendo chegar aos 10%. O resultado é tornar os salários de topo da Função Pública cada vez menos apetecíveis quando comparados com salários do sector privado, ao mesmo tempo que, pelo contrário, os salários mais baixos são mais apetecíveis, quando comparados com os do sector privado.

Isto cria entraves à contratação de gente de qualidade e excelência para cargos de topo na Função Pública (sem desmerecer quem lá está agora), ao mesmo tempo que cria incentivos a que as pessoas com qualificações mais baixas procurem empregos na Função Pública, por ficarem mais protegidas do que no sector privado.

O tema da equidade entre trabalhadores públicos e trabalhadores privados já tem sido abordado mediaticamente. Lembrou-me logo a notícia de que o Governo pretende criar uma espécie de «Código do Trabalho» para Função Pública e aproximar o regime de emprego público ao regime de emprego privado. Lembrou-me também a forma como o Tribunal Constitucional fez tábua rasa do tema na sua decisão sobre salários e pensões (a ler também o que Vital Moreira menciona aqui, embora já sobre o OE 2013).

A ideia da mobilidade para dentro e para fora do sector público liga-se com a ideia de que o Estado deve competir com os privados pelos melhores, com a ideia de que também é importante ter experiência no sector privado quando se trabalha no sector público, e com a ideia de que é necessário ter cuidado para impedir que isto crie relações demasiado íntimas e próximas entre entidades públicas e entidades privadas (a questão coloca-se de forma particularmente premente em relação a entidades reguladoras independentes).

6. De entre várias opções, o relatório foca-se na necessidade de levar a cabo reduções de pessoal específicas, após análise cuidada. Por outro lado, menciona-se a possibilidade de fusão da Caixa Geral de Aposentações e do sistema de segurança social aplicado ao resto da população, bem como a possibilidade de aplicar a mesma fórmula para calcular as pensões a todos os trabalhadores e a aplicação de um factor de sustentabilidade a todas as pensões.

Aqui fazem-se propostas específicas para reduzir os benefícios específicos de trabalhar na Função Pública, aplicando-se aos funcionários públicos o regime geral, e não um regime especial, ao mesmo tempo que se aplicaria a mesma fórmula de cálculo para toda a gente - mesmo os que tenham entrado para o CGA antes de 1993. A ideia é unificar o sistema de pensões público como forma de promover a equidade e a eficiência do sistema.

A aplicação de um factor de sustentabilidade a todas as pensões era, penso eu, o que estava pensado após a reforma da segurança social do Governo Sócrates, que introduziu o factor de sustentabilidade. Com a crise, no entanto, decidiu-se que o factor de sustentabilidade teria um «chão». O que é proposto é que isto desapareça, de forma a promover a sustentabilidade do sistema.

De notar, neste ponto, que não é proposto um sistema de capitalização, mas sim reformas ao sistema já existente.

7. Menciona-se a necessidade de direccionar melhor os programas sociais (através de «means-testing») e de haver uma consolidação desses mesmos programas. 

A consolidação dos programas sociais torna o sistema menos complexo e portanto mais fácil de administrar e de compreender pelos potenciais beneficiários. Tendo em conta que a opacidade do sistema resulta em que as pessoas não tenham acesso a prestações a que até teriam direito, por desconhecimento ou incompreensão do sistema, e que a dificuldade de administração gera ineficiências e aumentos de custos, esta medida teria, parece-me, impactos benéficos.

O «means-testing» significaria tentar calibrar e atribuir as prestações sociais a quem delas efectivamente precisa, de forma a tentar maximizar a sua eficácia prática. O problema é mesmo fazer essa calibragem e decidir os critérios a aplicar para a obtenção de uma determinada prestação - tendo sempre em conta a importância de manter o sistema simples, sob pena da complexidade criar os problemas referidos acima.

Em suma, portanto, o objectivo seria simplificar o sistema de prestações sociais, de forma a que efectivamente ajudem quem precisa e que sejam fáceis de administrar.

8. Fala-se ainda na necessidade de reformar o sistemas de Educação e Saúde. No caso da Educação, é aberta a possibilidade de reduzir a participação do Estado enquanto prestador do serviço e aumentar a sua função de regulador, que garante «standards», alterar contratos dos professores e criar um sistema de financiamento das escolas em que o dinheiro segue os alunos, e também maior recuperação de custos no ensino terciário (ou seja, universidades, politécnicos, etc.).

Aplicando este tipo de medidas, teríamos, na prática, um novo sistema de Educação em Portugal, assente na concorrência entre escolas por alunos, dado que seriam os alunos a garantirem o seu financiamento. O Estado, entretanto, definiria a base segundo a qual todas as escolas se teriam de reger, e procuraria assegurar que todas as escolas efectivamente se encontravam nesse «standard» previamente determinado.

De notar que se diz também que este sistema não poderia colocar em causa a universalidade do acesso à Educação. Ou seja, o Estado teria de continuar a assegurar que todos, independentemente da sua condição sócio-económica, teriam acesso à Educação.

O financiamento do ensino superior público em Portugal é feito em larga medida através de subsídios do Estado e as propinas em larga medida não reflectem o custo efectivo do curso. Aumentar as propinas nunca é uma medida popular, mas, se se quer ter ensino superior público sustentável, não existindo recursos infinitos, e não sendo estando nenhum sector imune a reformas dada situação financeira do país, então é preciso tomar medidas impopulares.

Outras medidas que tenho visto referidas noutros lados são a consolidação das universidades públicas e a diversificação de fontes de financiamento das universidades, incluindo aumentar a sua autonomia e capacidade de gerar rendimentos próprios. Não sei ainda se são referidas neste relatório, mas querendo-se evitar a pura e simples privatização das universidades públicas, então é preciso que estas comecem a funcionar de forma diferente.

9. Relativamente ao Sistema Nacional de Saúde, põe-se a hipótese de fundir o SNS com o sistema de saúde das forças de segurança, aumentar o nível de cuidados de saúde terciários e recuperar mais custos.

O relatório não propõe a criação de um sistema de seguro público obrigatório (ou facultativo) ou um sistema de seguros de saúde privados que competem entre si, garantindo o Estado acesso universal a esses seguros privados. Propõe o SNS (o SNS, aliás, encontra-se previsto constitucionalmente - cf. art.º 64.º, n.º 2 a) da CRP), mas gerido de forma diferente (p.ex. com ênfase em cuidados de saúde terciários como substituição aos hospitais).

Dada a necessidade de encontrar soluções dentro do enquadramento constitucional vigente, entende-se a proposta da reforma do SNS nestes termos. Reformas mais drásticas possivelmente necessitariam de uma revisão constitucional, que muito pouco provavelmente passaria, e cuja mera proposta seria provavelmente muito custosa politicamente.

domingo, 6 de janeiro de 2013

Privatização da RTP e Reforma do Poder Local

O Ministro dos Assuntos Parlamentares, Miguel Relvas, tinha dois «dossiers» principais em cima da mesa: a privatização de um canal da RTP e a reforma autárquica. Ora, neste momento, é já claro que não vamos ter reforma autárquica que se veja - apenas o fim de uma série de freguesias - e parece cada vez menos provável que vamos ter a privatização de um canal da RTP. 

No caso da reforma do poder local, seria uma reforma importante se fosse bem feita. Não o seria se redundasse num mero corte aleatório do número de autarquias. Este seria um bom momento para olhar para a distribuição de tarefas entre o Estado central e o Poder Local e pensar se não seria boa ideia transferir atribuições e competências do Estado central para o Poder Local. Após o que se poderia pensar em qual a escala mais razoável para as autarquias mais autónomas, inclusivamente a nível fiscal.

Uma verdadeira reforma do Poder Local envolveria tudo isto, e poderia ter consequências relevantes quer a nível de ganhos de eficiência e cortes na despesa, quer a nível de transferência de poder para mais perto das populações, quer para aumentar o nível de responsabilidade e autonomia das autarquias. Em vez disso, acabamos com a redução do número de freguesias e o que, pelas notícias, me pareceu ser um fundo de resgate de autarquias - esperemos que um fundo que acautele os incentivos perversos que esse tipo de fundos podem gerar.

No que toca à privatização de um canal da RTP, as coisas são simples. O programa de Governo prevê a privatização de um canal da RTP. O CDS-PP está ligado a esse programa de Governo e, se não gostava, então não tinha entrado no Governo. Está lá no programa que o Governo se comprometeu a cumprir, e já o PSD tinha proposto esta privatização durante as eleições. Não estar no Memorando da Troika não retira legitimidade à proposta e à implementação da medida.

Infelizmente, no entanto, para quem, como eu, apoia a privatização da RTP 1 (e bem mais do que isso, mas a privatização da RTP 1 já seria uma vitória), este «dossier» foi mal gerido do início. O grupo de trabalho chamado a pronunciar-se sobre o assunto foi ignorado, o seu relatório esquecido, e não lhe foi dada qualquer cobertura política pelo Ministro que tinha pedido o relatório - tudo por causa de uma frase de João Duque na imprensa. Depois, tivemos a histeria em torno de declarações de António Borges sobre o tema. Agora, ouvi na rádio, o tema está com o Primeiro Ministro, que discute o tema com o Ministro dos Negócios dos Estrangeiros, com o Ministro dos Assuntos Parlamentares no meio.

O modelo em que a RTP 1 era privatizada e a RTP 2 permanecia pública, mas sem financiamento publicitário, parece-me um compromisso razoável - outro compromisso poderia manter a RTP 2 pública mas com maior ênfase em recursos próprios. Mas o essencial seria privatizar um canal - foi com isto que o Governo se comprometeu, por muito que isso angustie Paulo Portas, e é isto que Miguel Relvas devia estar a preparar, por muito difícil politicamente que fosse. Entretanto, pouco nas notícias me dá esperanças que se acabe a privatizar, pura e simplesmente, a RTP 1.

Mesmo faltando ainda tempo para o final do mandato, é bastante claro que estes dois «dossiers» são dois falhanços, e falhanços claros, de um Ministro que devia ser dos mais fortes politicamente deste Governo. Junte-se a isto os problemas de coordenação e falhas de comunicação do Governo e temos essencialmente um pleno no que toca à actuação do nosso Ministro dos Assuntos Parlamentares, que além disso tem sido dos mais fustigados por motivos extra-governação.

No entanto, não parece credível que Miguel Relvas saia do Governo, apesar do balanço da sua actuação acima descrito. A reforma do Poder Local, que poderia ser uma reforma histórica, fica por fazer, e mal se percebe o que acontecerá com a RTP. O Governo continuará com problemas de coordenação e comunicação. E Miguel Relvas continuará Ministro.

segunda-feira, 31 de dezembro de 2012

Sustentabilidade financeira e solidariedade entre gerações

Já que estamos no último dia do ano e em altura de pensar no futuro, fica um possível compromisso para uma revisão constitucional: introduzir expressamente um princípio de sustentabilidade financeira do Estado e de solidariedade entre gerações na constituição portuguesa.

Já se percebeu que a regra de ouro do Tratado Orçamental não vai ser constitucionalizada. O Governo não dá grande importância ao tema e o PS é contra porque sim. Também não me parece que fosse por aí que se resolvessem problemas, pelo que não ne preocupa. Mas a sustentabilidade financeira do Estado e a forma como se oneram gerações futuras preocupam-me.

De novo, não é por ficar escrito na Constituição que o problema se resolve. Não é por não estar que o problema não tem de ser enfrentado. Mas seria um sinal e, com sorte, o Tribunal Constitucional poderia desenvolver o princípio de forma útil. Parece-me também que são dois princípios a que poucos se oporão.

Na medida em que se queira aproveitar este tempo para reformar o Estado e para enviar sinais de que queremos mudar, e na medida em que se queira introduzir referências a este tema na constituição, parece-me que este pequeno enxerto poderia ser útil, assim fosse devidamente trabalhado.

Claro que o que eu desejaria seria uma constituição rescrita de cima a baixo, em particular toda a secção económica. Mas isso não vai acontecer, porque, apesar de todas as suas falhas, que se mantêm apesar de alterações relevantes desde 1976, a constituição continua a ser vista com fervor quase religioso por muita gente.

Enquanto se mantiver esta crença arreigada no poder místico da constituição para resolver problemas, vai ser difícil forjar um novo compromisso constitucional mais ajustado à realidade. Vai ser difícil ter um verdadeiro debate constitucional sobre a refundação do Estado. Ficar-nos-emos por discussões sobre números e cortes, o que é manifestamente insuficiente.

Mas já que estamos no dia 31 de Dezembro e o debate devia estar na ordem do dia, aqui fica esta pequena sugestão.

sábado, 24 de novembro de 2012

Onde está o debate sobre a reforma do Estado?

O Governo já lançou o debate há tempo suficiente para que se coloque a seguinte questão: onde está o debate sobre a reforma do Estado?

Nos jornais, sucedem-se notícias sobre todo o tipo de coisas. O Governo e o principal partido da Oposição digladiam-se no campo das trocas de acusações e das retóricas bonitas. 

O PS já disse que não quer cortar 4000 milhões de euros no Estado Social. Só lhe fica bem e é provavelmente muito popular, que é aliás uma das razões pela qual disse isso. Se estivesse no Governo, veríamos que cantiga estaria a cantar relativamente a cortes na despesa.

Mas adiante. Apesar disso, o PS diz-se disponível a debater a reforma do Estado. O PSD diz-se também disponível para debater a reforma do Estado. O CDS-PP, admito, também está disponível para debater a reforma do Estado. Outros partidos estão disponíveis para debater a reforma do Estado. A sociedade civil organizada contém diversas organizações capazes e interessadas em debater a reforma do Estado. E vários cidadãos têm o maior dos interesses em contribuir para este debate.

Pelo que, já agora, se não fosse pedir muito, que tal termos um debate sério sobre a reforma do Estado? Bem sei que é extremamente aliciante discutir longa e duramente os comentários do Prof. Marcelo Rebelo de Sousa sobre sei lá o quê, ou o mais recente «slogan» saído de um partido. Saindo do trivial, bem sei que é importante cobrir manifestações. Mas não nos podemos ficar pela cobertura de manifestações. É preciso haver, finalmente, um debate sobre a reforma do Estado.

Um debate sobre a reforma do Estado implica um debate sobre o Estado. Implica discutir para que serve e como deve ser estruturado o Estado. Uma verdadeira reforma autárquica passa por esta discussão. Uma verdadeira reforma do Estado Social passa por esta discussão. Uma verdadeira reforma do nosso sistema político passa por esta discussão. Uma verdadeira reforma do nosso sistema económico passa por esta discussão. E o tempo chegou para que, de forma alargada, ela tenha lugar.

Isto inclui um debate constitucional sério - ou seja, um debate que não se resuma a habitual troca de acusações de que um ou outro lado persegue um ou outro ideal totalitário qualquer. O que implica que o debate não pode ser dominado pelos extremos, cuja tendência para confluir «debater» com «trocas de insultos e impropérios» é o habitual. Convinha que o debate fosse dominado por gente interessada em chegar a um compromisso democrático e pacífico sobre como alterar o nosso Estado para lidar com o contexto geopolítico actual e para melhor enfrentar o futuro.

Este debate é um debate complexo e um debate que se quer abrangente. Os meios de comunicação social (incluindo os blogues) vão ter um papel importante em divulgá-lo junto da população. Os partidos políticos e as organizações da sociedade civil vão ter um papel importante em fomentar o debate e em tentar que este seja saudável e tenha qualidade. E cada um de nós vai ter a escolha de intervir activamente, de alguma forma, neste debate - seja através da participação em eventos relativos ao tema, sendo na divulgação de artigos que consideremos interessantes, seja preparando propostas próprias, etc.

Agora, para tudo isto acontecer, tem que haver um debate sobre a reforma do Estado. O Governo já o lançou, supostamente. E portanto, a pergunta fica: 

Onde está o debate sobre a reforma do Estado?

terça-feira, 20 de novembro de 2012

Estimular a imaginação

O BE continua com a arrogância e a superioridade moral de sempre. Já se espera do BE este tipo de acusações, à falta de algo útil para dizer. Para o BE, é tudo tão simples. E já se vê que não mudou nada com a nova liderança. É isto, e apenas isto, que podemos esperar do BE.

Para o PS, também é tudo muito simples. Não contente por estarmos a pagar, e bem, o último programa de estímulos, o PS quer outro. Depois, quando estivermos a pagar esse programa de estímulos, o PS vai querer outro. E assim sucessivamente. A puxar pela economia portuguesa com dinheiro que não existe, despejando esse dinheiro inexistente nos problemas a ver se eles desaparecessem.

O PS tem a distinta lata de acusar o Governo de só falar de cortes. Temos António José Seguro a dizer que com ele a austeridade existiria, mas seria uma «necessidade», não uma «prioridade». Continua a mentalidade de que as finanças públicas não estarem em ordem é irrelevante. Basta que haja «crescimento económico», que se consegue com «estímulos» e desvalorizando o euro.

Mesmo com esta crise, continua muito popular a noção de que haver alguma preocupação em termos as finanças públicas em ordem é terrível. Que o crescimento económico surge porque o Estado o promove através de «estímulos». Mesmo sabendo o que aconteceu depois do último programa de estímulos, de vermos serem planeadas e lançadas grandes obras públicas para serem canceladas mais tarde por não termos hipótese nenhuma de as pagar.

Mas a parte melhor de tudo isto é que já se prevêem milhares de milhões para PME e há programas de incentivo à contratação em curso. Com efeitos notórios. Mas claro, o problema nunca poderá ser esses programas não funcionarem. O problema será sempre esses programas precisarem de mais dinheiro. Dinheiro que nós não temos. Mas isso é um pormenor irrelevante, porque por puro voluntarismo, tudo vai acontecer de acordo com o que nós queremos, e o crescimento brotará por despejarmos dinheiro público como temos vindo, sistematicamente, a fazer.

Numa altura em que temos problemas e somos forçados a confrontar os nossos constantes défices públicos, em que um Governo vem dizer que temos de fazer uma reforma do Estado e fazer cortes drásticos na despesa pública, o PS aproveita para se tornar mais popular através do populismo. Não deve ter reparado no que está a acontecer em França com Hollande ou na Grécia com Samaras. Também eles preferiram o populismo. Chegaram ao topo. Agora, estão a ter, eles, de se ajustar à realidade.

Os programas de estímulos estimulam a imaginação. Contam histórias agradáveis de crescimento, emprego, felicidade, em que por nossa vontade, tudo corre como nós queremos, e com um punhado de medidas, as nossos problemas tornam-se uma coisa do passado. Põem-nos a sonhar, a sonhar, a sonhar, em vez de a debater, a debater, a debater... a reforma do Estado. Sobre a reforma do Estado, só se debatem calendários e possíveis conferências. Preferimos debater se o corte de 0,5% da taxa que era 4% e passou a 3,5% foi uma grande vitória ou não, como se isso fosse sequer parecido com o essencial.

Claramente, a reforma do Estado não estimula tanto a imaginação. 

quinta-feira, 15 de novembro de 2012

A ladainha

Há uma ladainha que se repete no nosso debate público. Essa ladainha transforma Alemanha ou Grécia (consoante quem debita a ladainha; outra alternativa são os EUA, mas estão menos em voga) em demónios e assenta em ressentimentos, «revanchismos», dados tirados do contexto/meias-verdades e puras e simples mentiras e teorias da conspiração. Essa ladainha é parte dos nossos problemas.

Primeiro, essa ladainha, em muitas das suas versões, retira toda e qualquer responsabilidade pelo que está a acontecer aos cidadãos. Trata-os como coitadinhos, como vítimas, como peões num jogo que nunca poderiam tentar influenciar. Só que não é bem assim, e esta desresponsabilização é muito perigosa porque corrói a base do sistema democrático.

A base de uma democracia ocidental moderna é a intervenção cívica dos cidadãos. As escolhas que esses cidadãos fizeram nas urnas, as escolhas que fizeram ao decidir abster-se, a apatia e desinteresse generalizados em relação à política, a fraqueza da sociedade civil, tudo isto é parte do que nos trouxe até à crise, e tudo isto é da responsabilidade dos cidadãos. Tudo isto é responsabilidade nossa.

Parte da solução para a crise encontra-se precisamente em os cidadãos assumirem essa responsabilidade, em a sociedade civil organizada assumir as suas responsabilidades. Identificar claramente o facto disto não ter acontecido no passado como uma das causas da crise, como foi, é importante para tornar claro que esta crise que vivemos é precisamente um dos resultados possíveis do alheamento político da generalidade da população.

Por outro lado, desresponsabilizar os cidadãos por aquilo que se passa é uma forma de retirar legitimidade ao sistema democrático vigente. O discurso anti-políticos, anti-partidos, anti-parlamento das versões mais extremas da ladainha tem por objectivo substituir a nossa democracia, imperfeita que é, por um sistema em que o poder cai na rua. E quando o poder cai na rua, não é uma «democracia real» que vem a seguir. A não ser que por «democracia real» se entenda o «caos». Ou então, o poder não cai na rua: simplesmente voltamos a ter uma ditadura.

Assumir as nossas responsabilidades cívicas enquanto cidadãos, tomar consciência de que viver em democracia implica, para que esta continue de boa saúde, o cumprimento de deveres cívicos, é um passo em frente na resolução dos nossos problemas. Essa tomada de consciência colectiva é enfraquecida por discursos populistas que tratam os cidadãos como crianças manipuladas, manipuláveis e incapazes.

A ladainha é perversa também porque nos lança uns contra os outros. PSD contra PS. Portugueses contra Alemães. Norte contra o Sul. Irlandeses contra Portugueses. Gregos contra todos. No final, em vez de um debate sobre como resolver os nossos problemas, em vez de um debate sobre como acertar posições, temos trocas de acusações estéreis, interpretações maliciosas sobre tudo o que o «outro lado» faz, descaracterizações mútuas, e uma grande dose de histeria.

É fundamental que se tentem compreender as posições de todos os que estão à mesa a debater a reforma do Estado e a reforma da União Europeia. Compreender as posições de todos, não tratar todos como se de estereótipos ambulantes se tratassem, e tentar encontrar compromissos. A ladainha cria ruído, histeria e apelos «revanchistas» e, nas suas versões mais extremas, xenófobos; cria uma narrativa de conflito inconciliável que ajuda a que tudo se desintegre, em vez de ajudar a que tudo se resolva.

A ladainha emerge da crise, alimenta-se da crise, mas alimenta também a própria crise. É um círculo vicioso, em que comentadores, meios de comunicação social, blogues e outros intervenientes mediáticos parecem encontrar-se numa câmara de eco, a repetir várias versões da ladainha. Em que as posições se extremam desnecessariamente, em que ódios se inflamam, em que atirar pedras à Assembleia da República ou comparar a Chanceler Merkel a Adolf Hitler é tratado com paninhos quentes por muito boa gente.

É neste contexto que o filme de Marcelo Rebelo de Sousa e Rodrigo Moita de Deus se insere. Esse filme, em poucos minutos, apresenta-nos a versão anti-Alemanha da ladainha. A análise oca, feita com base em títulos de jornal e meias-verdades, é patente. Em vez de discutirmos uma proposta que existe, do eurodeputado liberal e Presidente da União dos Federalistas Europeus, Andrew Duff, para alterar o sistema eleitoral europeu, ou de discutirmos seriamente a proposta do Governo e do PS (apoiada pela Chanceler Merkel) de criação de um banco de fomento, acabamos a ver um vídeo mesquinho que apresenta «os portugueses» no seu pior, e a fingir que foi impedida a sua transmissão na Alemanha (não foi; não foi permitida a sua passagem na Praça Sony, mas o filme foi transmitido na Alemanha).

A ladainha pode servir para que algumas pessoas se sintam bem com elas próprias, culpando outros por todos os males que as assolam, mas serve também para nos paralisar. No meio do ruído, no meio das sucessivas histerias por este ou aquele caso mediático sem conteúdo útil, não se vê uma discussão sobre o essencial. Importantes reformas na lei da concorrência, na lei das rendas e na lei da insolvência, por exemplo, foram atiradas para o ar, estiveram no ar uns tempinhos, e desapareceram.

A ladainha não me atrai. É notório que está assente em bases pouco sólidas, que parecem sólidas porque são repetidas e repetidas e repetidas por muita gente, a quem depois não é reclamado que justifique as suas posições para além de meia dúzia de chavões e um ou outro número. A ladainha não me atrai e parece-me destrutiva, uma espécie de areia movediça na qual nos afundamos sem reparar. Longe de nos ajudar a resolver a crise, fortalece-a, e cria bloqueios para a sua resolução.

Ora, temos de deitar abaixo esses bloqueios. Temos de contrariar a ladainha, de a pôr em causa, de mostrar que é vazia e oca e que nos está a fazer ir para baixo e não para cima. À Esquerda e à Direita, porque a ladainha, embora una nas suas implicações e na sua roupagem, tem variações. É nossa responsabilidade pôr em causa esta nova forma de «sabedoria convencional» que tem muito de convencional e nada, mesmo nada, de sabedoria.

sexta-feira, 9 de novembro de 2012

Reforma Constitucional

Mudar nunca é pertinente. Quando há vacas gordas, tudo está bem e ninguém está para isso. Quando há vacas magras, toda a gente quer é segurança, e as mudanças aparecem como muito arriscadas e diz-se que não é numa altura de crise que se terá um debate com a qualidade  extensão necessária. No que toca à Constituição, este tipo de argumentos têm sido invocados para a deixar como está, para além daqueles que defendem a Constituição pelos méritos que consideram que ela tem.

Aqueles que não querem mudar por acharem que o que está, está bem, compreendo bem melhor que aqueles que dizem que até mudavam, mas não agora. É que a Constituição e a sua interpretação têm impacto relevante no nosso dia-a-dia, por balizarem leis e até mesmo debates públicos. O facto de termos uma Constituição que tudo regulamenta, de forma bastante específica em alguns casos, tem impacto nos termos do debate público, por causa das regras para que esta seja alterada, dada necessidade de haver uma maioria qualificada.

Mudar a Constituição necessita de uma maioria alargada, para tentar garantir que o texto das normas fundamentais seja o resultado de um compromisso mais alargado que as leis ordinárias. Em princípio, apenas pode ser feito em determinados períodos, de forma a conferir algumas estabilidade ao texto constitucional. Tudo isto se percebe e faz sentido. É importante que as regras fundamentais sejam objecto de um consenso mais alargado e que sejam estáveis. Acontece que, neste momento, estamos a ver os limites da nossa Constituição e do modelo, muito específico, de Estado (Social) que ela prevê.

Contrariamente ao que alguns gostam de dizer, nenhum dos maiores partidos defende o fim do Estado Social. Não vi nenhum dos principais partidos defender o Estado Mínimo. O que está em causa e em discussão, o que sempre tem estado em causa e discussão, é qual o modelo de Estado Social que queremos, e qual a capacidade da Assembleia da República de tomar decisões por maioria simples sobre certos temas agora constitucionalmente previstos. Isto inclui, por exemplo, saber se faz sentido regular constitucionalmente, de forma tão pormenorizada, o sistema eleitoral, ou até o sistema fiscal. Ou saber se queremos incluir uma referência expressa a um princípio de sustentabilidade financeira do Estado e/ou a um princípio de solidariedade intergeracional no texto constitucional, por exemplo.

Claro que os exemplos não acabam ali. Outros temas, como o da forma como a Constituição regula o mercado de trabalho, ou como a Constituição regula o sistema fiscal, ou até como a Constituição regula os poderes das autarquias locais e prevê regiões administrativas para o Continente, tudo isto também pode, e deve, ser debatido. Sem histerias, sem falsos moralismos, sem manifestações de superioridade intelectual. Simplesmente, deve ser debatido, com trocas de argumentos sobre porque é que a solução deve ser uma ou deve ser outra, argumentos sustentados em mais do que retórica.

Todo este debate vai ser ideológico, como não podia deixar de ser (ver aqui e aqui). As ideologias estruturam como defendemos que a comunidade deve estar organizada, pelo que qualquer debate constitucional vai ser um debate ideológico. Desse debate virá um compromisso entre as várias visões participantes do debate e um novo texto constitucional (tendo em conta que temos uma constituição escrita), que naturalmente não porá em causa vivermos num Estado de Direito e numa democracia parlamentar, mas poderá alterar a forma constitucional do nosso Estado Social. Isto porque nem de perto nem de longe em Portugal as pessoas que querem acabar com o Estado Social têm a força e a maioria necessárias para o fazer - são, aliás, pelo contrário, uma minoria.

A histeria retórica que envolve este debate serve apenas para mascarar as parecenças entre os vários partidos do arco do poder. As opiniões de uns e outros são descaracterizadas, tudo se extrema, e temos teatro mediático para dar e vender. O pior é que este teatro mediático tem repercussões, nefastas. A constante preocupação com dizer às pessoas o que se pensa que elas querem ouvir para receber votos, ocultando ou não dando ênfase suficiente ao que não convém, é um enorme problema. Apresentar falsas certezas em tempos de crise, optimismos que rapidamente são postas em causa, é outro problema, e ambos os problemas se alimentam entre si.

No meio de tudo isto, temos de ter um debate sobre a reforma do Estado, e esse debate não estará completo sem um debate sobre uma reforma constitucional. Afinal, as funções do Estado e como estas são e podem ser exercidas resultam, em primeira linha da Constituição. O debate tem de olhar para a Constituição de alto a baixo, para a regulação económica e política, de forma a fazermos escolhas sobre o que queremos manter, o que queremos eliminar e o que queremos alterar. E tem de ter uma participação alargada, apesar de o estarmos a fazer quase em contra-relógio, aproveitando também contributos que foram sendo dados para este debate em anos anteriores (ou seja, aproveitando trabalho já eventualmente feito, no caso de ainda aplicável nos dias de hoje).

Nós vivemos hoje num mundo diferente dos anos 70 e 80, anos que verdadeiramente moldaram a Constituição que temos hoje. Dada a forma como a Constituição foi escrita, de forma muito extensa, isso significa que ela tem de ser revista e trazida para a segunda década do séc. XXI e, com isso, provar que em democracia, mesmo em crise, conseguimos resolver os problemas complexos que nos afligem.

segunda-feira, 5 de novembro de 2012

O estranho tango a quatro da reforma do Estado

António José Seguro enviou uma carta a Pedro Passos Coelho.

Do conteúdo da carta pode ignorar-se grande parte, que é a narrativa já conhecida do PS sobre o seu amor ao Estado Social vigente, por entre outras coisas pouco relevantes, e ir ao que mais interessa: o PS está disponível para sentar à mesa e dialogar.

Por outro lado, apesar de estar disponível para sentar à mesa e dialogar, António José Seguro, entretanto, também mandou o Governo e a «troika» procurarem 4 mil milhões de euros para cortar no Estado Social, lavando as mãos das medidas difíceis que, contrariamente àquele que António José Seguro «argumenta», também se tornaram necessárias por obra e graça do seu PS.

Portanto, António José Seguro está disposto para discutir a reforma do Estado, mas nunca quaisquer cortes no Estado Social. Esses ficam para o Governo e para a «troika». António José Seguro prefere clamar por crescimento económico, estimulado maioritariamente por medidas com que o próprio Governo já se comprometeu também (incluindo um banco de fomento público, de todas as coisas que estas pessoas podiam ter ido desencantar numa altura em que o Estado não tem dinheiro e vivemos numa economia aberta na UE - sendo que mesmo em abstracto, não é ideia que me agrade).

António José Seguro enviou uma carta a Pedro Passos Coelho. Depois, colocou-a no Facebook.

Enquanto António José Seguro fazia isto, temos notícia de que a maioria parlamentar se lembrou de vir pedir  conferências, no Parlamento, sobre a reforma do Estado.

Questão que me parece relevante: qual a razão do atraso? Demoraram, contando apenas desde as últimas eleições, cerca de ano e meio a lembrarem-se que precisavam de conferências sobre a reforma do Estado - que, aliás, acho bem que se realizem, só preferia que já estivéssemos bem mais avançados que isto.

Não só estas conferências junto do Parlamento deviam ter começado mais cedo, PSD e CDS-PP (e mesmo o PS) deviam ter organizados conferências próprias ainda antes das eleições. Cada partido devia ter ideias muito claras sobre o que pretendia para o Estado e apresentado essas ideias aos portugueses. Em particular, o PS, estando no Governo, tinha acesso a um manancial de informação que lhe permitia ter uma noção bastante melhor do que se passava no Estado, e portanto a capacidade de criar um programa bastante sustentado de reforma do Estado. Mas as próprias Oposições não cumpriram, como nunca cumprem, o papel de desenvolver as suas políticas de forma substanciada, para se afirmarem como verdadeiras alternativas de Governo.

Claro que o PS teve, durante o primeiro Governo Sócrates, um programa de reforma do Estado, que foi essencialmente ignorado. O Governo actual também apresentou um programa de cortes que na verdade não reformava Estado nenhum. E, com atraso imenso, o Governo, o PS e a maioria parlamentar fazem danças políticas mediáticas, envolvendo cartas e convites e virgens ofendidas a rasgarem vestes por tudo e mais alguma coisa. Pelo meio, ficamos com a certeza que não é só o PS que não tem um programa - a maioria parlamentar também não tem, e o Governo também não tem.

É claro que a incapacidade do Governo de explicar o que ia fazendo ia deixando claro que não tinha um programa de reforma do Estado. Não podia ser tudo explicado pela incapacidade comunicacional do Governo - a substância também tinha de faltar, para as coisas serem tão aflitivas. Também pela reacção da maioria parlamentar ao Orçamento se percebeu que PSD e CDS-PP falavam de cortes mas não tinham nada de específico pensado, falando apenas de forma genérica para marcar posição.

O estranho tango a quatro (Governo, PSD, CDS-PP e PS) da reforma do Estado resulta de, no meio de uma profunda crise económica, financeira e política, os três principais partidos no Parlamento, bem como o Governo, não terem um programa de reforma do Estado ao fim de cerca de ano e meio de funcionamento do Parlamento. De irmos agora começar um debate que já seria difícil em tempos de vacas gordas, e que agora se torna fantasticamente difícil com a pressão da dívida e os jogos políticos que caracterizam a nossa vida politico-partidária. De termos todo este atraso por causa da incapacidade que a nossa classe política tem para não se embrenhar em táctica política pura em vez de tentar criar uma estratégia para o país.

A ver se é possível engolir isto sem gritar: os principais partidos do país vão agora negociar uma reforma do Estado. Depois dos atrasos no pedido de ajuda a FMI e União Europeia. Depois dos anos de vacas pouco gordas que mesmo assim apenas resultaram em meias medidas, se lhes podemos chamar isso. Depois de haver um Governo com um mandato para fazer a reforma do Estado. Mesmo depois de tudo isto, foi preciso todo este tempo para que o debate fosse lançado - e, mesmo assim, temos toda uma classe política a jogar à política com a vida de toda a população do país (já para não falar da vida de toda a população da União Europeia), no meio de estridentes títulos sensacionalistas de jornais e com uma inacreditável ausência de debate que resulta em unanimismos em torno de posições que se vão contradizendo com o tempo.

Demoraram imenso tempo a lembrar-se que, já agora, convinha implementar as célebres reformas estruturais, de que todos falam, falam, falam, mas sobre as quais se faz pouco. Demoraram imenso tempo a lembrar-se que, já agora, convinha haver diálogo alargado. E mesmo depois de se lembrarem, temos direito a um estranho tango a quatro, em que é notório o calculismo político dos passos dados. Perde-se mais e mais tempo com joguinhos mediáticos para aparecer bem na fotografia. O debate é polarizado propositadamente. As posições são extremadas para atrair votos da mesma forma que um pavão usa as penas para atrair parceiras, enquanto a substância é deixada de lado. Os técnicos da «troika» são insultados, como se nós não os tivéssemos chamado cá, como se não fosse o dinheiro da «troika» que vai mantendo Portugal a respirar e que impede um colapso imediato e austeridade extrema garantida.

O estranho tango a quatro da reforma do Estado é um exemplo claro do estado a que isto chegou. E um sintoma de uma doença institucional que precisa de ser curada. E para isso precisamos, mesmo, de uma reforma do Estado.

Se o conseguirmos fazer, fortaleceremos a nossa democracia, e provaremos que em democracia se resolvem problemas complexos - basta haver sentido de responsabilidade. Por muito difícil que seja. Por muito que isso não entre na cabeça a certas pessoas.

domingo, 13 de maio de 2012

Combater as pulsões do extremismo

Por muito sofisticado que seja o vocabulário empregue, o discurso dos extremos reduz o mundo entre os bons e os maus, culpa os maus pelos males do mundo, reclama aquele extremo em particular o único e legítimo representante dos bons, e diz que se nos livrarmos dos maus, então os bons triunfarão. Os maus podem ir do Estado ao sector financeiro, a entidades míticas (como os Iluminati), e representam sempre um conjunto de pessoas que quer o mal dos outros para seu próprio bem, que tem o poder concentrado nas suas mãos, e que condiciona todo o debate através da manipulação das outras pessoas que, por ignorância e por lhes darem falsa informação propositadamente, se encontram cegas para o facto de estarem a ser manipuladas.

Quem quer que se oponha a este tipo de discurso simplista, ou é apelidado de ingénuo, ou é acusado de ser parte dos «maus». Os ataques pessoais sucedem-se. As distorções das posições apresentadas também. As falácias abundam e os duplos «standards» também. Tudo o que acontece no mundo é prova de que a tese daquele extremo em particular está correcta. Nada do que acontece no mundo pode ser utilizado para retirar mérito à posição do extremo. Num ambiente em que a «democracia» é bem vista, os extremos procuram transformar-se nos «verdadeiros» defensores da democracia, restringindo-a, naturalmente, àquilo que eles, em concreto, defendem.

Os partidos moderados devem lutar contra este tipo de discurso primário, não cair nele. Porque, talvez simplificando um pouco, das duas uma: ou os partidos dos extremos não têm de vencer porque os partidos ditos moderados adoptam as suas políticas, e há uma mudança do centro político, ou então os partidos dos extremos crescem à conta dos grandes - porque é difícil ser mais populista e demagógico do que um extremista, pelo que os extremistas terão vantagem comparativa neste tipo de debate. No contexto de uma democracia, é fundamental aos partidos moderados, do centro político, defender esse centro, encontrando respostas para as ansiedades da população sem cair em populismos demagógicos.

Na Grécia, o Nova Democracia preferiu o caminho do populismo e da demagogia, não estando à altura do desafio. Os resultados estão à vista. Com isto não quero dizer que o simples facto do Nova Democracia ter apoiado a implementação real das reformas estruturais tivesse sido suficiente para alterar os resultados gregos - parece-me que quase seria necessária uma refundação do Nova Democracia e do PASOK para isso acontecer - mas teria certamente ajudado. Mas agora, continuamos sem Governo na Grécia, na qual os partidos que defendem a continuidade no Euro, mas sem admitir qualquer necessidade de reforma interna, se vão chegando à frente.

Em Portugal, o PS continua ligado ao Memorando da Troika - dou mérito, mesmo muito mérito, a António José Seguro, por não ter alinhado nos histéricos apelos de Mário Soares. Mas não é suficiente. Tal como não é suficiente o Governo ter conseguido um acordo com a UGT mas depois não compreender a necessidade de ajudar a UGT relativamente a ataques oportunistas da CGTP. É preciso que todos os agentes políticos relevantes no seio da implementação do programa de ajustamento apresentem uma posição coesa, e isto implica, de facto, cooperação institucional de qualidade (que não é ajudada quando o PS propõe coisas como os aumentos das «rendas antigas» terem uma moratória de, pasme-se, 15 anos...).

As pulsões do extremismo estão sempre bem presentes em democracia e podem bem levar a que esta se desintegre. Em contexto de crise, as mensagens extremistas e simplistas são apelativas (dependendo dos contextos, à esquerda ou à direita), e é testada a capacidade dos partidos políticos do centro chegarem a entendimentos que permitam reagir e ultrapassar a crise, bem como a sua capacidade de explicar as reformas que estão em curso.

As pulsões do extremismo devem ser combatidas com maior nível de transparência e boa capacidade comunicativa, explicando de forma clara o que está a ser feito e porquê. Já não é a primeira vez que escrevo isto aqui, mas o facto do tempo urgir não significa que não seja necessário explicar. É preciso antecipar desde logo que tudo o que se diz vai ser distorcido e atacado de todas as formas e feitios, pelo que é necessário estar ainda mais bem preparado do que o habitual, com uma mensagem clara e o mais unívoca possível.

Mas mais. Ir além da troika devia também significar ir além das áreas identificadas no programa da troika no âmbito da actuação do Governo, não devendo também a troika restringir o leque de temas comentados pela Oposição. A reforma do sistema político português, incluindo reforma do sistema eleitoral e reforço dos mecanismos de intervenção dos cidadãos, tem de ser pensada e discutida - e depois implementada. Precisamos de reformas políticas, para combater a abstenção, melhorar a ligação entre eleitores e eleitos e aumentar a capacidade dos cidadãos conhecerem e utilizarem os métodos ao seu dispor para intervir politicamente.

Também através destas reformas políticas se combateriam as pulsões do extremismo. Elas mostrariam que, em democracia, é possível haver regenerações e alterações pacíficas dos sistemas no sentido de responder às dúvidas e aos problemas da população com o sistema existente, sem se pôr em causa o Estado de Direito democrático em que vivemos.

segunda-feira, 27 de fevereiro de 2012

Reforma Agrária por Ministra do CDS?

Surgiram nos últimos dias noticias sobre uma possível redistribuição das terras-sem-dono.
Sendo eu natural de uma zona rural com minifúndio, esta noticia causa-me perplexidade.
A Lei das Sesmarias de El-Rei D. Fernando foi um fracasso há quase 700 anos, como hoje esta o será.
Seria mais interrssante criar canais de distribuição e afrouxar o duopólio na Grande Distribuição em Portugal, do que medidas de engenharia social que mexem, com um dos mais sagrados direitos do Homem, que é a Propriedade.


sábado, 30 de abril de 2011

As célebres reformas estruturais (II)

A reforma do Estado passa por cortes na despesa, mas para que se proceda a cortes na despesa é preciso saber, afinal de contas, quanto dinheiro é que se gasta. Para isso, é preciso saber que entidades públicas é que existem. Algo que não é fácil de saber. Aliás, é tão difícil de saber, que ninguém sabe, verdadeira e exactamente, quantas entidades públicas existem. Têm proliferado, empresas públicas, fundações públicas, todo o tipo de entidades que se vão acumulando, de tal forma que ninguém as consegue contar de forma exacta.

Tudo isto se relacionada com um fenómeno conhecido por «fuga para o Direito Privado». Para se entender este fenómeno, é preciso algum contexto sobre os princípios subjacentes ao Direito Público e os princípios subjacentes ao Direito Privado.

O Direito Público rege-se pelos princípios da competência e da autoridade. O princípio da competência diz que o a entidade apenas pode agir com base numa norma expressa que permita que ela aja daquela forma; em suma, a entidade apenas pode fazer o que é permitido, e o que não é permitido, é proibido. O princípio da autoridade, por sua vez, diz que aquela entidade, quando agir com base em poderes exorbitantes (com base no ius imperium), se impõe a entidades privadas. (No séc. XIX, as coisas não funcionavam assim, mas a evolução deu-se, felizmente, neste sentido, de limitar a actuação das entidades públicas, e portanto dotadas de poderes coactivos, aos casos expressamente previstos.)

O Direito Privado rege-se pelos princípios da liberdade e da igualdade. O princípio da liberdade diz que tudo o que não seja proibido, é permitido. O princípio da igualdade diz que, entre privados, por princípio, não há supremacia de um privado em relação a outro, encontram-se todos no mesmo plano. As entidades públicas, quando não agem no âmbito dos seus poderes exorbitantes, são também reguladas pelo Direito Privado.

Ao criar entidades regidas pelo Direito Privado, o Estado escapa-se, portanto, às restrições que lhe são impostas pelo Direito Público, dado que essas entidades, apesar de públicas, se regerem por Direito Privado.  É verdade que continuam a ser pessoas colectivas, e que haverá estatutos com regras de funcionamento, mas o nível de controlo pura e simplesmente é menor. Isto foi considerado importante para tornar o Estado mais eficaz, mas tem tido vários efeitos perniciosos.

O primeiro efeito tem sido a já referida proliferação de entidades, proliferação essa que tem gerado redundâncias, e portanto gastos supérfluos.

O segundo efeito tem sido o de alargar a teia de entidades prontas a receber boys e girls, tendencialmente muito bem pagos.

O terceiro efeito tem sido o de gerar oportunidades para o Estado Central (e também para as autarquias locais, diga-se) desorçamentarem dívidas, «passando-as» para estas entidades (geralmente, «empresas» públicas), de forma a «esconderem» as ditas.

O quarto efeito, como bem tem apontado o Prof. Paulo Trigo Pereira, é o de retirar poder de controlo ao Parlamento sobre as áreas nas quais essas entidades actuam, visto que estas entidades vão ser tuteladas pelo Governo e portanto prestam contas a este.

Um exemplo de um uso pernicioso destas entidades pode ser encontrado nesta notícia do Expresso. Resumidamente, o Estado vendeu a uma empresa pública uma série de imóveis, a um preço inflacionado, e a empresa pública subsequentemente arrendou os imóveis ao Estado. O título do artigo, que já data de 2009, diz tudo: «Estado vende a Estado para compor contas».

A SIC passou uma peça já este ano sobre o mesmo tema:


O Tribunal de Contas tem competência para controlar este manancial de entidades públicas, mas não tem recursos, nem nunca os terá, para as controlar todas ao mesmo tempo, ou mesmo parte substancial ao mesmo tempo. Considero que o Tribunal de Contas tem, sob a égide do seu actual Presidente, realizado trabalho muito meritório, mas não basta haver um bom Tribunal de Contas. Temos mesmo de olhar com atenção para como se tem processado esta «fuga para o Direito Privado», ver quanto é que nos está verdadeiramente a custar, e agir em conformidade.