O que este indivíduo acabou de afirmar é que ele (e aqueles que concordem com ele) é o árbitro da Moral global. A consequência política deste tipo de pensamento, que procura retirar legitimidade moral às políticas com as quais não se concorda politicamente, nada tem de democrático e tudo tem de desrespeitador de um princípio basilar do Direito Internacional: pacta sunt servanda (os acordos são para cumprir).
Éric Toussaint e outros, como Francisco Louçã, consideram que a democracia não envolve mais do que, no limite, uma escolha de quem vai para o Parlamento, que na prática serve para aprovar mais dívida, enquanto ao mesmo tempo se imprime mais dinheiro, para financiar o único modelo de Estado (Social ou não) admissível: o que eles defendem.
A inflação, claro, é essencialmente irrelevante. Os empregos não são meios para atingir um fim, mas um fim em si mesmos. Os «mercados» são transformados numa instituição (?) quase mística que paira sobre todos nós, presumivelmente cheios de pessoas ricas e mais nada, e que importa combater.
A única coisa que falta ao Estado para ser perfeito é que pessoas como Éric Toussaint e Francisco Louçã lá estejam. A partir desse momento, dotados que são do dom da profecia e sabedoria infinitas, esses grandes seres humanos guiar-nos-ão para o progresso eterno, através de políticas de subsidiação ao tecido empresarial e às artes e de taxação dos «ricos» e dos «luxos», conforme definidos pelos ditames de toussanistas-louçanistas.
Quem defender outra coisa e quiser, de alguma forma, implementar o seu programa, não tem, claro, legitimidade para tal. A democracia toussanista-louçanista consiste na escolha de gente para escolher quem vai gerir o Estado, na acepção de Estado Social dos anos 50, e nada mais. Quem concorra a eleições com um programa que se desvie disto é um perigoso fascista, reaccionário, ultraliberal, tecnocrata que só vê números à frente, mais um chorrilho de chavões sem conteúdo que me demito de listar aqui.
É evidente que o toussanismo-louçanismo convive mal com regimes nos quais o pluralismo ideológico e a consequente diversidade programática são uma realidade. Convive ainda pior com regimes em que o eleitorado tem a temeridade de dar maiorias a programas com os quais o toussanismo-louçanismo esteja em contradição.
Nós acumulámos dívida que gastámos em projectos públicos e mais projectos públicos e, por muito que eu, pessoalmente, não concorde com a forma como gastámos parte do dinheiro, não vou, por esse motivo, dizer que devemos deixar de pagar a dívida correspondente. A dívida foi acumulada por Governos que dispunham de maiorias parlamentares. Fora fraudes e outros casos de polícia, ela deve ser paga.
Restaurar a confiança em Portugal passa por estes dois princípios serem afirmados e cumpridos: pacta sunt servanda e o princípio do Estado de Direito. Passa também pela reforma do nosso sistema político, tornando-o mais aberto. Mas não passa pelo desrespeito pelos resultados das eleições anteriores, pelo desrespeito pelo pluralismo ideológico ou pela noção de que os Estados não devem assumir as suas responsabilidades.
A defesa da democracia não se faz quer transformando-a num mero exercício de escolha da gestão de topo de burocracias rígidas e imutáveis. A democracia saudável é aquela em que o pluralismo ideológico é encarado como virtuoso, a cultura de debate público e de compromisso são ambas fortes. Isto vai muito além de eleições de quatro em quatro anos, e exige uma cidadania e uma sociedade civil organizada activas e empenhadas (em mais do que em o Estado dar mais um subsídio, pelo menos).
Uma auditoria à dívida pública cujo objectivo é, «a priori», encontrar formas de não a pagar, não é uma auditoria credível, particularmente se as razões apresentadas forem políticas (sob a capa da moral). Uma auditoria credível passaria a pente fino a dívida pública para a quantificar e garantir que esta foi contraída de acordo com a lei, mas sem se estabelecer «a priori» o objectivo de encontrar formas de não a pagar.
Já há iniciativas no sentido de conferir mais transparência às finanças públicas portuguesas, como a Budget Watch. Essas iniciativas, que procuram promover um debate público informado, devem ser louvadas. Iniciativas no sentido de transformar as ideologias de uns na moral pública de todos, no entanto, para pouco mais servem do que para entreter quem as propõe.
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