Até certo ponto, todos nós lemos num texto aquilo que esperamos que lá esteja, porque é difícil que nos separemos dos nossos preconceitos em relação ao tema ou a quem escreva o texto. Mas nem todos nós, ao ler um texto, assumimos má fé, ou ignoramos o teor do mesmo para o substituirmos pelos nossos próprios preconceitos. (Quem fala de textos fala também de mensagens orais ou qualquer outro tipo de comunicação.)
Assumir má fé da outra parte diz muito acerca de quem assume essa má, muito mais do que diz sobre quem escreveu o texto que está a ser interpretado. A incapacidade de alguém se abstrair o mais possível dos seus preconceitos e com isso ignorar o teor literal do texto que é lido também diz muito sobre a abertura de espírito (neste caso, sobre o espírito fechado) de quem tem essa incapacidade.
Para um debate funcionar, não é possível assumir sistematicamente má fé e segundas intenções naquilo que a outra parte do debate diz ou escreve. Porque aí, por definição, vai-se argumentar contra a mensagem que se considera seria a primeira intenção, oculta, da outra parte, e não contra aquilo que foi efectivamente dito.
Por outro lado, a incapacidade de nos abstrairmos de preconceitos de tal forma que acabamos a substituir os nossos preconceitos pelo teor literal daquilo que foi dito significa que acabamos com uma conversa entre preconceitos. E nessa conversa entre preconceitos vão abundar as falácias lógicas e as descaracterizações da posição contrária.
Para que um debate funcione e seja produtivo, é preciso haver confiança entre os participantes do debate do debate. É também necessário que todas as partes ouçam e leiam e tentem perceber o que é dito, tentando não substituir o seu entendimento «a priori» por aquilo que está efectivamente a ser dito. Finalmente, há que saber assumir quando se cometeu um erro, fazer compromissos, ou pelo menos saber concordar em discordar.
O funcionamento saudável de uma democracia pluralista depende da existência de debates funcionais entre diversos pontos de vista. Essa existência, por sua vez, pressupõe uma aceitação da legitimidade da existência desses mesmos pontos de vista e também da legitimidade de que, em dados momentos, esses pontos de vista tenham capacidade de concretização superior aos pontos de vista que se defende.
Uma democracia pluralista em que diabolização da parte contrária (dizendo que ela é ilegítima) é a norma é uma democracia doente, porque um dos seus pressupostos basilares está a ser posto em causa: o próprio pluralismo. E uma democracia a que falte pluralismo não é uma democracia em que eu queira viver.
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