Os «puros» não se querem «sujar» com quaisquer compromissos, acusando de ser traidor quem o faça. Fazem ainda outra coisa, no entanto. Enquanto ideologias extremistas procuram apropriar-se e distorcer o sentido habitual de conceitos como «democracia» e «liberdade», procurando através dessa apropriação legitimar o seu discurso, os «puros» defendem, passe o pleonasmo, a mais perfeita «pureza ideológica». Que é como quem diz: os «puros» são donos e senhores das ideologias que professam e dos conceitos que as definem. E quem se desvie um milímetro do que é defendido pelos «puros», pura e simplesmente defende outra ideologia qualquer - e é visto como um perigo para a «pureza» da ideologia em causa.
Os puros não querem apenas que o mundo seja feito à sua imagem e semelhança - ou à imagem e semelhança das suas ideias - mas também que as ideias que defendem sejam cabalmente vistas como as únicas verdadeiramente representativas da ideologia que professam. Aqueles que se reclamem defensores da ideologia em causa mas não partilhem a visão purista são encarados como perniciosos agentes infiltrados de outras ideologias, temíveis vírus ideológicos que ameaçam destruir a verdade dos conceitos puristas. E claro: apenas o conjunto de ideias dos «puros» é válido, lógico, legítimo e aceitável - todos os outros são de alguma forma contra natura e objectivamente errados.
Se por um lado temos extremistas a querer utilizar conceitos positivamente encarados pela população para legitimar e mascarar as suas ideias, por outro temos os «puros» (outros extremistas?) a querer reduzir as ideologias que defendem àquilo que eles pensam. Enquanto um grupo pretende apropriar-se de conceitos para lhes alterar o significado, o outro pretende-se proprietário de certos conceitos e portanto o único grupo legitimado a defendê-los e até a defini-los. E ao fazê-lo, vão acusar quem quer que com eles discorde em relação a essas questões de deturpar a pureza dos conceitos.
Não é isso que pretendo fazer, note-se, quando reclamo que devemos intervir no debate público no sentido de clarificar conceitos e posições. Eu não me considero dono dos conceitos de «democracia» ou «liberdade». Mas considero que esses conceitos podem ser equívocos, e que é preciso explicar bem o que se entende por «democracia» ou «liberdade» ao utilizá-los. E entendo também que esses conceitos podem bem ser usados como máscara para esconder outras ideias, e que também isso tem de ser trazido à luz do dia.
Para que o debate público funcione devidamente, as cartas têm de estar em cima da mesa. É preciso que se perceba o que está a ser dito e com que fundamentos. Daí a importância de procurar clarificar conceitos e posições, por muito que nunca se consiga atingir a perfeição a esse respeito. É que apenas percebendo o que está a ser dito e porquê será possível fazer uma escolha informada. E as escolhas informadas dos cidadãos são a fonte de legitimidade por excelência em democracia.
A procura de pureza ideológica deu origem a uma interessante ironia da história durante o pós-guerra 14-18 quando o partido comunista alemão (KPD) sempre se concentrou mais em atacar o SPD (Social-Democrata) do que o partido nacional-socialista. O SPD, afirmando-se de esquerda e socialista representava uma ameaça ideológica maior aos olhos do KPD.
ResponderEliminarChegado o ano de 1933 já era tarde de mais para qualquer correcção de rumo, claro.
Como já dizia Churchill, os inimigos estão deste lado da barricada.
ResponderEliminarPensando bem a perspectiva deles estava correcta, uma vez que era o SPD que concorria inicialmente pelos votos deles.
Começaram depois tambémm a perder votos para os nazis.
Li há uns anos um artigo sobre França, creio que no Economist, em que faziam a análise do crescimento da Frente Nacional à custa da migração de votantes do PC Francês.
Curiosamente, (ou não) por cá o nosso PC tem um discurso que se tem transformado, quiçá num comunismo-nacionalista...