quarta-feira, 26 de dezembro de 2012

O jornalismo português vai nu

Artur Baptista da Silva enganou uma série de gente, incluindo Nicolau Santos (mas também, por exemplo, a TSF), ao afirmar que era perito da ONU, e foi-lhe concedido amplo espaço mediático para apresentar um conjunto de teses sobre a crise e sobre a economia portuguesa.

Por esta altura, muito já foi escrito sobre o que se passou. Sobre a qualidade técnica das teses defendidas pelo suposto perito, remeto para o que a Priscila Rêgo disse no seu blogue. Quer a Priscila Rêgo, quer o João Miranda, no Blasfémias, mencionam o caso Sokal. É sobre a razão que os leva a falar deste caso (do qual também me lembrei ao ler sobre este caso) que gostaria de deixar umas pinceladas.

Artur Baptista da Silva apresentou-se como trabalhando para o Programa de Desenvolvimento das Nações Unidas, ao abrigo do qual viria constituir um Observatório da ONU em Portugal, relativo aos países com programas de ajustamento. Esta história, desde logo, não bate certo. O PDNU (como terá a oportunidade de ver quem clicar no «link») trata de países em desenvolvimento, ajudando-os a combater a pobreza extrema, a criar mecanismos de governança democrática, a lutar contra a SIDA, etc.

O PDNU não tem presença em Portugal ou na Grécia, nem as condições desses países se comparam com as condições da Somália, da Papua Nova Guiné, ou mesmo do Perú e de países da Europa de Leste. No entanto, a forma como o empobrecimento do país tem sido tratado, e empolado, leva a que quase pareça um corolário das teses muito difundidas entre os nossos comentadores que o PDNU aqui viesse estabelecer um observatório. Também aqui, como no resto, o burlão parece ter dito o que se queria ouvir - o facto desta intervenção da ONU ser pouco plausível quando se para um bocadinho para pensar, além de nada publicitada pela própria ONU, não parece ter sido relevante.

De seguida, temos o cartão de visita do suposto membro da ONU, que inclui um e-mail do Gmail. Acredito que Nicolau Santos não tenha reparado neste pormenor, e que o cartão lhe pareceu tão legítimo como qualquer outro cartão para o qual olhasse sem ver e fosse rectangular com os símbolos mais ou menos certos e o nome que se estava à espera. Acredito também que Nicolau Santos não tenha pensado muito no assunto. E acredito, porque ele próprio o confirmou, que Nicolau Santos não tenha verificado a informação que lhe era passada por alguém munido do tal cartão com e-mail do Gmail para o qual ele deve ter olhado sem grande atenção.

Essa verificação, no mundo com o Internet, poderia passar por uma pesquisa no Google. Nem isso. Nem sabendo que ia entrevistar o referido Artur Baptista da Silva o director adjunto do Expresso e comentador de Economia da Antena 1 fez uma mísera pesquisa no Google (com a qual se pode aprender muito, nos dias que correm), ou tentou confirmar com a ONU a história de Artur Baptista da Silva. Também não teve este cuidado porque Artur Baptista da Silva tinha, ao que parece, uma posição económica coerente (remeto de novo para Priscila Rêgo) - principalmente, julgo eu, coerente com o que Nicolau Santos pensa e vem defendendo (e quem diz Nicolau Santos, diz muito boa gente que tem comentado a situação económica e financeira do país) - fica a dúvida se o procedimento teria sido o mesmo em relação a alguém que sufragasse posições diferentes.

Com a sua falta de profissionalismo gritante, quer ao nível da falta de confirmação das suas fontes, quer ao nível da sua falta de preparação para uma entrevista, Nicolau Santos deu um pódio a um burlão, e abriu as portas para que este fosse citado um pouco por todo o lado. Com a sua falta de profissionalismo gritante, Nicolau Santos reduziu a sua credibilidade a zero, porque ficamos sem saber se isto é procedimento habitual ou não - e, de qualquer forma, quem comete um erro crasso destes uma vez, pode bem cometê-lo outra vez, e pode bem tê-lo cometido antes, mas sem o erro ter sido apanhado. E nada foi feito para apurar se isto é procedimento habitual, esta negligência e este desmazelo, ou não - nem houve quaisquer consequências para Nicolau Santos, que ainda hoje de novo ouvi a cumprir o seu papel de comentador económico da Antena 1.

Nicolau Santos demonstrou muita falta de cuidado no tratamento da informação que recebe. Demonstrou que o que parece útil é ter autoridades para conferir aparente seriedade a análises superficiais (e não fazer análises substantivas). Mostrou que não prepara convenientemente as suas entrevistas nem confere as suas fontes. E, por fim, parece considerar que um mero «ups, enganei-me, mas podia ter acontecido a toda a gente!» é suficiente num caso de burla deste género, em que é apanhado de calças na mão num nível de incompetência a roçar o amadorismo puro.

O que aconteceu a Nicolau Santos aconteceu, de facto, a mais gente. Aconteceu a mais gente que ignorou deveres deontológicos básicos do jornalismo. Mas isso não torna o caso menos maus para Nicolau Santos. Antes pelo contrário. Torna-o pior - e para o jornalismo português. O que Artur Baptista da Silva veio demonstrar é que o jornalismo português vai nu. E que qualquer um com um cartão mal amanhado e boas cantigas consegue lugar de destaque no Expresso da Meia Noite.

3 comentários:

  1. O verdadeiro autor das ideias do burlão:
    Já o trabalho, intitulado "Growth, Inequality and Poverty. Looking Beyond Averages" vinha assinado por Artur Baptista da Silva, PhD in Social Economics (Doutorado em Economia Social) e U. N. Coordinator Advisor (consultor da ONU), mas é na realidade da autoria de Martin Ravallion, do departamento de investigação do Banco Mundial. (SOL, ed. digital de hoje)

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  2. Ana Gaspar, da VIDA, explicou ao i que Baptista da Silva se apresentou na associação em Agosto, dizendo que queria colaborar e que poderia ser útil pelos conhecimentos em economia social e pelos seus contactos. Confrontados com o estudo sobre pobreza e crescimento, com gráficos digitalizados e em papel normal, começaram a surgir dúvidas, lembra Ana Gaspar, recordando ainda que, internamente, questionaram o facto de o cartão de um consultor da ONU ter um logótipo errado e um email do Gmail em vez de um endereço oficial.

    Numa pesquisa na internet, além de não encontrarem referências a Baptista da Silva, perceberam facilmente que a faculdade do Wisconsin não existia e a tese era plagiada. Na continuação da análise da informação dada por Baptista da Silva sucederam--se as incongruências: dizia-se fundador do Instituto Piaget, algo desmentido; dizia-se bolseiro da Fundação Calouste Gulbenkian, também em sustentação; mais demorado foi conseguir o desmentido da ONU, mas também esse contacto arranjaram. Ainda em Setembro ficou concluída a investigação, com o veredicto de impostor. Sem faltar a informação de que Baptista da Silva tinha cadastro, obtida na polícia. “Não o voltámos a contactar e decidimos avisar outras organizações”, disse Ana Gaspar, confessando- -se surpresa por, ao contrário do que fez a Associação Abril, o International Club of Portugal ter acusado a recepção do email e ter mantido a conferência.

    Questionado sobre como foi possível ignorar um email que continha links para a tese plagiada e contactos da ONU em Nova Iorque, Manuel Ramalho lamentou não lhe ter dado atenção “em tempo útil”, explicando que pesou o contexto em que foram apresentados: um almoço em Maio na Academia do Bacalhau. (jornal "i", ed. digital de hoje)

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  3. Jornalismo em Portugal é entretenimento... e que entretenimento tão popular, este que recorre à ficção.

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