Pensamento crítico e próprio é difícil. Exige um esforço no sentido de aprender sobre o tema em questão, ponderar aquilo que se vai aprendendo, e finalmente chegar a uma conclusão, com base no que se aprendeu - conclusão essa que poderá mudar tendo em conta novos dados. Exige assumir a responsabilidade de tomar posição e assumir o risco de pura e simplesmente estar errado. Exige assumir o risco de a conclusão a que cheguemos não seja politicamente correcta ou particularmente popular. E, principalmente, exige trabalho e tempo.
É bem mais simples seguir a posição de outros que, dotados de aura de autoridade, supostamente já fizeram esse trabalho prévio todo. O problema é que, sem algum trabalho prévio próprio, é difícil avaliar qual opinião seguir, a não ser por factores que não estão particularmente relacionados com a substância do que está a ser discutido, como a boa disposição e a simpatia da tal autoridade, ou o seu CV. No final, tem-se uma opinião para repetir, e repete-se essa opinião, e na prática delega-se nessa autoridade o poder de pensar pela pessoa que se limita a repetir aquilo que ouviu ou leu.
É também bem aborrecido argumentar e desmontar argumentos contrários. É bem mais simples questionar a integridade e a idoneidade moral da parte contrária. Da conjugação das duas facilidades temos debates entre supostas autoridades que ecoam pelos cafés do país, em modo de jogo do telefone estragado. Para tornar as coisas mais obscuras, adicione-se o facto de raramente serem claras as premissas, os julgamentos de valor e os próprios puros e simples preconceitos que estão subjacentes àquilo que é dito pelas supostas autoridades - tornou-se moda que as ideologias são coisas feias, e portanto o que temos são afirmações banais e triviais para promover a boa disposição e não grandes esclarecimentos substantivos.
Acabamos a discutir pessoas e não ideias. Acabamos com gente a procurar argumentos para sustentar conclusões a que já quer chegar à partida, ignorando os outros lados todos do argumento como irrelevantes. Acabamos com muito boa a gente a arrogar-se o conhecimento de verdades absolutas e inquestionáveis. Não conseguimos chegar a compromissos porque qualquer compromisso é visto como uma traição, porque todo e qualquer ponto, por mais miserável que seja, é tratado como se fosse essencial. Não podem existir negociações porque isso implica cedências, e toda e qualquer cedência é encarada como uma derrota e será amplamente difundida enquanto tal.
Mas voltemos a isto: encontramos gente a procurar sofregamente argumentos para suportar as conclusões a que quer chegar. Aliás, é engraçado acompanhar debates sobre legitimidade e ver o quão útil é subitamente invocar o argumento da legitimidade para considerar «ilegítimo», por motivos nobilíssimos (naturalmente), aquilo de que, por qualquer motivo, não se gosta. E acompanhar debates em que se torna claro que a democracia apenas parece funcionar quando está no poder alguém com que se concorde - caso contrário, tudo o que se tente fazer é ilegítimo, ou inconstitucional, ou anti-democrático, ou toda uma panóplia de categorizações equivalentes.
É também interessante encontrar gente a criticar as banalidades e as trivialidades que pululam nos nossos debates políticos, mas depois quem saia da banalidade e da trivialidade facilmente será crucificado e humilhado em praça pública, apontado como herege em relação à narrativa habitual (e portanto, um alvo a abater - e de notar que este tipo de práticas se encontram à Esquerda e à Direita).
Ao mesmo tempo, é engraçado reparar em certas coisas, como por exemplo a forma como a fraude e a evasões fiscais foram condenadas da boca para fora durante anos. O combate à fraude e à evasão fiscais tinha de ser uma prioridade. E agora, com os impostos a aumentar (acumular dívida dá nisto), o cerco do combate à fraude e à evasão fiscal apertou, mas parece que agora já não devia ser uma prioridade. Aliás, tenho visto a pequena fuga aos impostos ser activamente incentivada, como forma de protesto (já para não falar daqueles que a tratam como um imperativo moral).
Da Esquerda à Direita, houve condenação geral aos aumentos de impostos. Mas a única forma de ter impostos mais baixos de forma sustentável é cortar na despesa. Também aqui é muito popular cortar na despesa. O problema é que a única despesa em que parece ser possível cortar é na despesa relativa à dívida (capital e/ou juros), dívida essa acumulada para pagar infraestruturas que até há bem pouco tempo toda a gente queria (donde a nossa rede de auto-estradas para «desenvolver o interior») e provavelmente ainda quer.
O resultado prático conjunto de muitas posições que se vão vendo defendidas por aí seria um modelo em que nos endividaríamos até não poder mais, só os ricos e as grandes empresas pagariam impostos, existiria investimento público a rodos, e quando já não desse mais diríamos que a culpa era dos credores, reestruturaríamos a dívida (ou não a pagaríamos na totalidade, dependendo de com quem se fala) e tudo recomeçaria como se nada fosse. Quem diga que isto não funcionaria bem assim deve preparar-se mentalmente para tentativas de assassínio público de carácter e tentativas de humilhação pública - da Esquerda à Direita. Este tipo de comportamentos mesquinhos, entretanto, serve de desincentivo poderoso a que gente interessante e inteligente se meta na política.
No fim, temos uma quantidade razoável de gente a servir de eco ao seu comentador preferido enquanto questiona a seriedade e a honestidade da parte contrária e pouco mais, enquanto os problemas não se resolvem. Depois a emigração aumenta - e os emigrantes são acusados de desistir do país, por gente que parece confundir patriotismo com a tenaz defesa de umas quantas teorias da conspiração ou com a tenaz defesa de trivialidades pouco profundas que pouco ou nada querem dizer. Passamos de um regime em que a emigração necessita de autorização do Estado para um regime em que os emigrantes são sujeitos a ataques públicos ao seu patriotismo ou ao seu carácter - ao mesmo tempo que certos comentadores declaram que Portugal é muito especial e portanto não podemos importar soluções lá de fora, como se fosse impossível adaptar boas ideias à realidade portuguesa, e como se tentar encontrar as melhores ideias onde quer que elas se encontrem não fosse uma boa forma de tentar melhorar as coisas.
É tudo mau? Não, não é tudo mau. Mas demasiadas coisas são más e têm de melhorar - em Portugal, na Europa e no mundo. Para isso é preciso entrar de cabeça no debate público, consciente que muitos não vão concordar connosco e vão usar tudo o que puderem contra nós.
Mas é assim a vida. É preciso aprender a lidar com tudo isso. Porque não vai mudar tão cedo e porque, provavelmente, sempre foi ou será assim.
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