quinta-feira, 3 de janeiro de 2013

Debate constitucional

Pedro Pita Barros escreveu um breve comentário às declarações de Eduardo Catroga sobre a necessidade de haver uma revisão constitucional, relativamente ao qual eu publiquei uma resposta que acabou por ficar com tamanho suficiente para a colocar aqui:

«Concordo. Uma constituição, por definição, numa democracia liberal e num Estado de Direito, serve precisamente para impor limites ao exercício do poder, pelo que o argumento de que se deve alterar a constituição para impedir limites ao exercício desse poder é fraco quando formulado dessa forma.
Não nos seria possível viver sem constituição, no entanto. Uma constituição consiste, numa definição sumária, no conjunto de normas e princípios jurídico-políticos que rege uma determinada comunidade. Onde exista uma comunidade, existe uma constituição – que, aliás, não tem de ser escrita ou de alguma forma codificada (veja-se o Reino Unido).

Deste ponto de vista, aliás, que pessoalmente tendo a considerar a melhor forma de encarar as constituições, a própria União Europeia tem uma constituição – tal como uma qualquer associação (os seus estatutos).

De qualquer forma, de facto, o argumento de que a Constituição da República Portuguesa deve ser alterada porque dá jeito a um determinado Governo numa determinada altura não colhe. Também concordo que a Constituição deve ser alterada, mas por considerar que várias normas nela constantes são problemáticas por uma questão de princípio, por considerar que as coisas devem ser organizadas de forma diferente.

Outro argumento que também considero falacioso e que é muito invocado em debates constitucionais, que neste caso não foi mencionado mas que em outros casos é (veja-se o debate sobre inserir a regra de ouro na Constituição), é o argumento de que uma medida não pode ser inserida na Constituição por ser demasiado ideológica. Ora, a ideologia consiste precisamente num conjunto de ideias/princípios/valores sobre como se deve organizar a comunidade. Qualquer constituição tem subjacente uma determinada ideologia, mesmo que híbrida ou que resulte de diversos compromissos ao longo do tempo, que lhe confere a sua coerência.

Ou seja, um debate constitucional, como qualquer debate político, tem necessariamente cariz ideológico, de todos os lados. Isto não é algo de negativo. Negativo, aliás, é ver o debate político dificultado por afirmações que tentam esconder a ideologia que se lhes encontra subjacente, tentando passar por factual aquilo que é uma opinião e um julgamento de valor.

Concordo que os nossos constitucionalistas, e demais juristas, têm um papel importante a desempenhar neste campo. Mas também não podemos cair (e sei que não é isso que é sugerido) numa pura e simples aceitação daquilo que os (por vezes supostos) peritos dizem. É importante que, além da actuação pedagógica de constitucionalistas, exista uma população que tenha tido uma verdadeira formação para a cidadania, que a meu ver deveria incluir noções básicas sobre, pelo menos, a República Portuguesa e a União Europeia – o que, por definição, implicaria algum estudo, crítico, da Constituição.

O debate público tem de viver da capacidade dos cidadãos de nele intervirem de forma informada e crítica, além da participação de peritos em determinados assuntos. Claro que nunca chegaremos a um mundo ideal com debates públicos perfeitos e cidadãos plenamente informados, mas pelo menos o desenvolvimento do espírito crítico seria muito relevante – especialmente quando, com a Internet, a informação está aí ao virar da esquina.»

8 comentários:

  1. Não consegui ler a entrevista do Eduardo Catroga, mas a frase a que o PPB se refere é esta:

    “Temos um problema estrutural que é a necessidade de rever a Constituição para que esta não constitua um entrave à acção governativa”

    Eu concordo com a ideia que provavelmente está subjacente, que é que a constituição afunila a forma como permite atingir alguns dos principios fundamentais que tem e que não devem ser postos em causa

    Acrescentaria o que disse o Eduardo Catroga numa entrevista há uns tempos atrás:
    "Já não tenho paciência nem a capacidade de filtrar o que digo"

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    1. Sim, também me parece que a Constituição tem já muita coisa que não devia lá estar, e que precisa de ser reformada de alto a baixo.

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  2. Concordo contigo (por uma vez!), mas entendo que pôr a "regra de ouro" na Constituição é mais do que dar dignidade constitucional a uma ideologia: é constitucionalizar um modelo económico discutido e discutível.

    Um abraço do velho tio socialista

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    1. Não entrando na discussão sobre os méritos ou falta deles da regra de ouro - que acabou na Lei de Enquadramento Orçamental - não me parece válido o argumento de que constitucionalizaria um modelo económico - a regra de ouro por si só não é um modelo de desenvolvimento económico.

      De qualquer forma também não me parece que fosse de grande utilidade colocar a regra de ouro na Constituição. Não enjeitaria que lá colocassem referências expressas à sustentabilidade financeira do Estado e à solidariedade entre gerações, no entanto - por muito que isso também, por si só, não resolvesse os nossos problemas crónicos de finanças públicas.

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  3. A turma do Hayek e do Friedmann esquece que o Keynes também era um liberal. E foi ele que salvou o capitalismo.

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  4. “Temos um problema estrutural que é a necessidade de rever a Constituição para que esta não constitua um entrave à acção governativa”

    Ao contrario do que diz "o argumento de que a Constituição da República Portuguesa deve ser alterada porque dá jeito a um determinado Governo numa determinada altura não colhe", a primeira frase é abranjente a qualquer governo em funções: a nossa constituição é um entrave a qualquer acção governativa, demasiado "enquadradora", contextualizada para a época em que foi escrita, mas fora do prazo para as necessidades actuais da sociedade civil, independente da ideologia do governo em funções.

    Um acrescento à discussão:
    Passos impulsiona conferência para ouvir sociedade civil sobre reforma do Estado
    http://diariodigital.sapo.pt/news.asp?id_news=608891

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    1. Agradeço o comentário e a referência.

      Que fique claro que concordo que se deve alterar a Constituição (na prática, eu escreveria uma nova) e considero-a demasiado programática em muitos aspectos, mas não me parece ajudar o debate colocar a questão nos termos em que foi. A Constituição será sempre um entrava à acção governativa, é também para isso que ela serve. O ponto é que tipo de entraves é que deve colocar e porquê.

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  5. Cortar nas pensões não se pode, é inconstitucional.
    Cortar a sério na estrutura do Estado implica despedir, não se pode, é inconstitucional.
    Aumentar impostos, porque se compromete a equidade deste ou daquele grupo, também não se pode, é inconstitucional.

    Como é possível que Portugal tenha subsistido entre 1143 e 1976 sem a sacrosanta Constituição?!

    http://jornalismoassim.blogspot.pt/2013/01/da-constitucionalidade.html

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