Algumas notas sobre o Sumário Executivo do relatório do FMI sobre reforma do Estado e cortes na despesa:
1. O relatório refere três objectivos fundamentais que servem de pano de fundo a todas as propostas: aumentar a eficiência no fornecimento de bens e serviços públicos, enfoque na obtenção de resultados equitativos e o estímulo da actividade económica e do empreendedorismo.
O relatório não se limita a apontar zonas onde cortar. Aponta também reformas muito concretas para o funcionamento do Estado Social, que vão além de simplesmente decidir cortar aqui ou ali.
2. No relatório refere-se que o Governo já fez o seu próprio trabalho de «benchmarking» para preparar propostas governamentais de reforma do Estado e de corte na despesa.
O relatório refere também que os técnicos responsáveis pelo relatório estão em grande medida de acordo com esse trabalho do Governo, que deverá ser divulgado quando o próprio Governo apresentar o seu relatório sobre a reforma do Estado Social e sobre cortes na despesa.
Neste ponto, pelo menos, não deve haver grandes divergências entre os relatórios. Aliás, os temas abordados neste relatório são os temas que eu tendo a ver a serem discutidos quando se fala da reforma do Estado Social, e aliás os temas expectáveis - salários, pensões, sistema de Educação, sistema de Saúde...
De referir ainda que o relatório menciona expressamente que o Governo está a tentar identificar as reformas a levar a cabo dentro do enquadramento constitucional vigente.
3. Refere-se expressamente à necessidade de agir relativamente aos salários do Estado e às pensões, que constituem importantes fontes de despesa pública.
Em salários públicos e pensões já este Governo e o Governo anterior cortaram, e esses cortes foram sujeitos ao crivo do Tribunal Constitucional. Estão previstos novos cortes e, de novo, vai haver intervenção do Tribunal Constitucional. É importante a ligação entre este ponto e os dois pontos seguintes.
4. Refere-se que existe excesso de pessoal no sector a trabalhar em Educação e nas Forças de Segurança, bem com um excesso de pessoal pouco qualificado a trabalhar para o Estado; fala-se também especificamente das horas extraordinárias pagas aos médicos.
O excesso de pessoal encontrado está naturalmente ligado à importância que os salários têm no nível de despesa pública. As alternativas aos cortes de salários transversais passam por despedimentos selectivos em áreas que se considere serem excedentárias em termos de pessoal.
Naturalmente que quem lá trabalhe vai dizer exactamente o contrário, e entramos no problema a que eu já me referi aqui e aqui. Toda a gente directamente e indirectamente afectada por estes cortes vai clamar pela sua injustiça, com mais ou menos razão, e toda a gente que paga a factura vai estar demasiado pulverizada para se organizar.
A dificuldade em diminuir o número de funcionários públicos é um problema quer ao nível do corte de despesa, quer ao nível de ser possível gerir o Estado de forma eficiente para os contribuintes. Um Estado que apenas consegue reduzir pessoal através de programas de estancamento de contratações ou ao deixar expirar contratos a prazo não é um Estado que se consiga gerir decentemente
5. O relatório refere a necessidade de que a estrutura de remunerações do Estado seja atractiva para os mais talentos, que haja equidade entre trabalhadores do sector público e do sector privado, e que haja maior mobilidade para dentro e para fora do sector público.
Este ponto é, a meu ver, muito importante. Sendo objectivo cortar na Função Pública, cortam-se salários, mas não aqueles que estejam abaixo de 1500 euros, e os cortes são aplicados de forma progressiva, podendo chegar aos 10%. O resultado é tornar os salários de topo da Função Pública cada vez menos apetecíveis quando comparados com salários do sector privado, ao mesmo tempo que, pelo contrário, os salários mais baixos são mais apetecíveis, quando comparados com os do sector privado.
Isto cria entraves à contratação de gente de qualidade e excelência para cargos de topo na Função Pública (sem desmerecer quem lá está agora), ao mesmo tempo que cria incentivos a que as pessoas com qualificações mais baixas procurem empregos na Função Pública, por ficarem mais protegidas do que no sector privado.
O tema da equidade entre trabalhadores públicos e trabalhadores privados já tem sido abordado mediaticamente. Lembrou-me logo a notícia de que o Governo pretende criar uma espécie de «Código do Trabalho» para Função Pública e aproximar o regime de emprego público ao regime de emprego privado. Lembrou-me também a forma como o Tribunal Constitucional fez tábua rasa do tema na sua decisão sobre salários e pensões (a ler também o que Vital Moreira menciona aqui, embora já sobre o OE 2013).
A ideia da mobilidade para dentro e para fora do sector público liga-se com a ideia de que o Estado deve competir com os privados pelos melhores, com a ideia de que também é importante ter experiência no sector privado quando se trabalha no sector público, e com a ideia de que é necessário ter cuidado para impedir que isto crie relações demasiado íntimas e próximas entre entidades públicas e entidades privadas (a questão coloca-se de forma particularmente premente em relação a entidades reguladoras independentes).
6. De entre várias opções, o relatório foca-se na necessidade de levar a cabo reduções de pessoal específicas, após análise cuidada. Por outro lado, menciona-se a possibilidade de fusão da Caixa Geral de Aposentações e do sistema de segurança social aplicado ao resto da população, bem como a possibilidade de aplicar a mesma fórmula para calcular as pensões a todos os trabalhadores e a aplicação de um factor de sustentabilidade a todas as pensões.
Aqui fazem-se propostas específicas para reduzir os benefícios específicos de trabalhar na Função Pública, aplicando-se aos funcionários públicos o regime geral, e não um regime especial, ao mesmo tempo que se aplicaria a mesma fórmula de cálculo para toda a gente - mesmo os que tenham entrado para o CGA antes de 1993. A ideia é unificar o sistema de pensões público como forma de promover a equidade e a eficiência do sistema.
A aplicação de um factor de sustentabilidade a todas as pensões era, penso eu, o que estava pensado após a reforma da segurança social do Governo Sócrates, que introduziu o factor de sustentabilidade. Com a crise, no entanto, decidiu-se que o factor de sustentabilidade teria um «chão». O que é proposto é que isto desapareça, de forma a promover a sustentabilidade do sistema.
De notar, neste ponto, que não é proposto um sistema de capitalização, mas sim reformas ao sistema já existente.
7. Menciona-se a necessidade de direccionar melhor os programas sociais (através de «means-testing») e de haver uma consolidação desses mesmos programas.
A consolidação dos programas sociais torna o sistema menos complexo e portanto mais fácil de administrar e de compreender pelos potenciais beneficiários. Tendo em conta que a opacidade do sistema resulta em que as pessoas não tenham acesso a prestações a que até teriam direito, por desconhecimento ou incompreensão do sistema, e que a dificuldade de administração gera ineficiências e aumentos de custos, esta medida teria, parece-me, impactos benéficos.
O «means-testing» significaria tentar calibrar e atribuir as prestações sociais a quem delas efectivamente precisa, de forma a tentar maximizar a sua eficácia prática. O problema é mesmo fazer essa calibragem e decidir os critérios a aplicar para a obtenção de uma determinada prestação - tendo sempre em conta a importância de manter o sistema simples, sob pena da complexidade criar os problemas referidos acima.
Em suma, portanto, o objectivo seria simplificar o sistema de prestações sociais, de forma a que efectivamente ajudem quem precisa e que sejam fáceis de administrar.
8. Fala-se ainda na necessidade de reformar o sistemas de Educação e Saúde. No caso da Educação, é aberta a possibilidade de reduzir a participação do Estado enquanto prestador do serviço e aumentar a sua função de regulador, que garante «standards», alterar contratos dos professores e criar um sistema de financiamento das escolas em que o dinheiro segue os alunos, e também maior recuperação de custos no ensino terciário (ou seja, universidades, politécnicos, etc.).
Aplicando este tipo de medidas, teríamos, na prática, um novo sistema de Educação em Portugal, assente na concorrência entre escolas por alunos, dado que seriam os alunos a garantirem o seu financiamento. O Estado, entretanto, definiria a base segundo a qual todas as escolas se teriam de reger, e procuraria assegurar que todas as escolas efectivamente se encontravam nesse «standard» previamente determinado.
De notar que se diz também que este sistema não poderia colocar em causa a universalidade do acesso à Educação. Ou seja, o Estado teria de continuar a assegurar que todos, independentemente da sua condição sócio-económica, teriam acesso à Educação.
O financiamento do ensino superior público em Portugal é feito em larga medida através de subsídios do Estado e as propinas em larga medida não reflectem o custo efectivo do curso. Aumentar as propinas nunca é uma medida popular, mas, se se quer ter ensino superior público sustentável, não existindo recursos infinitos, e não sendo estando nenhum sector imune a reformas dada situação financeira do país, então é preciso tomar medidas impopulares.
Outras medidas que tenho visto referidas noutros lados são a consolidação das universidades públicas e a diversificação de fontes de financiamento das universidades, incluindo aumentar a sua autonomia e capacidade de gerar rendimentos próprios. Não sei ainda se são referidas neste relatório, mas querendo-se evitar a pura e simples privatização das universidades públicas, então é preciso que estas comecem a funcionar de forma diferente.
9. Relativamente ao Sistema Nacional de Saúde, põe-se a hipótese de fundir o SNS com o sistema de saúde das forças de segurança, aumentar o nível de cuidados de saúde terciários e recuperar mais custos.
O relatório não propõe a criação de um sistema de seguro público obrigatório (ou facultativo) ou um sistema de seguros de saúde privados que competem entre si, garantindo o Estado acesso universal a esses seguros privados. Propõe o SNS (o SNS, aliás, encontra-se previsto constitucionalmente - cf. art.º 64.º, n.º 2 a) da CRP), mas gerido de forma diferente (p.ex. com ênfase em cuidados de saúde terciários como substituição aos hospitais).
Dada a necessidade de encontrar soluções dentro do enquadramento constitucional vigente, entende-se a proposta da reforma do SNS nestes termos. Reformas mais drásticas possivelmente necessitariam de uma revisão constitucional, que muito pouco provavelmente passaria, e cuja mera proposta seria provavelmente muito custosa politicamente.
Aumentar as propinas
ResponderEliminarEssa medida tm que ser tomada mas, em minha opinião, é preciso salvaguardar a gratuitidade do ensino superior para os bons estudantes.
Em minha opinião isso pode e deve ser feito aplicando propinas (elevadas) apenas para as cadeiras que se fazem repetidamente (isto é, para a segunda e posteriores inscrições numa mesma cadeira).
É deveras escandaloso que em Portugal, apesar do elevado valor das propinas, continua a haver muitos estudantes que se inscrevem diversas vezes na mesma cadeira, ou que repetem o exame da cadeira, com o fim de aumentar a nota.
capacidade de gerar rendimentos próprios
Muitas universidades hoje já geram elevados montantes de rendimentos próprios.