Este fim-de-semana encontrei-me num casamento com um amigo de escola com quem não falava vai para dez anos. Novidades em dia, contou-me que trabalha hoje como maquinista do Metro de Lisboa, e a conversa resvalou rapidamente para o tema da crise e como ela se vive entre os seus colegas de profissão. Destacou alguns factores para o sentimento de injustiça que vivem. Primeiro, “a dívida do Metro, de que tanto se fala, foi causada sobretudo pelo investimento em infra-estruturas que o Estado não quis cobrir, e depois acusam-nos de ser os culpados”. Segundo, “existe a imagem de que trabalhamos pouco, de que não somos eficientes, mas fartamo-nos de trabalhar e dedicamo-nos. Já ao nível dos quadros superiores, a inércia é muito grande, trabalham pouco por comparação, e têm todas as regalias. Isto também contribui muito para o endividamento da empresa”. E, “podes ter a certeza, por mais competente que sejas, lá dentro só chegas a um nível elevado se tiveres o cartãozinho do partido”. Uns dias antes tinha eu lido um papel distribuído pelos sindicatos dos trabalhadores do Metro em que se queixavam da sua situação e procuravam explicar aos utentes o porquê das greves. Quando lhe observei que eles só tinham refletido as primeiras questões e não a última, respondeu que “Pois, se os puseres em causa, podes ter problemas. Além disso, os sindicatos também representam parte dos quadros de topo”. Típico? “Noutras empresas, como a REFER ou a CP, tudo é ainda pior.”
Numa parte anterior da conversa, tinha-me ele referido que normalmente vota em branco porque não se revê em nenhum partido, mas que desta vez estava tão revoltado que pensava votar num determinado partido da esquerda. Prossegui a discussão: “Então, mas se os problemas que identificaste estão basicamente relacionados com o intervencionismo do Estado, e do aparelho partidário que vem atrás, porque é que vais votar num partido que defende precisamente esse intervencionismo?” e dei-lhe o exemplo da Fertagus como caso de sucesso, em que os contribuintes já nem têm que subsidiar a operação dos comboios, e o serviço é bastante razoável. “Tens razão, mas no privado nunca se sabe bem o que vai acontecer... ouve-se dizer que lá trabalha-se muitas horas extraordinárias, recebe-se pouco, não se tem garantias...” E eu: “pode haver esse risco, mas AÍ é que deve estar o Estado a intervir, através do ordenado mínimo, da regulação laboral, da justiça, do subsídio de desemprego, da redistribuição da riqueza... E as empresas têm mais incentivo a captar bons trabalhadores e a não ir pelos cartões que se tem.” Não sei bem se o consegui demover do medo.
E ele não é totalmente descabido. O Estado também pode ser incompetente a regular. Nesta campanha, alguns actores do Partido Socialista têm tentado explorar esse medo até ao tutano. Mas, se mal já nós estamos, talvez seja o momento certo (ou a última oportunidade?) para o enfrentar. Como pessoas, só evoluímos quando saímos da zona de conforto. Temos mais tendência a fazê-lo em momentos de crise. Na política não é diferente. E nem “todos” os políticos são maus da fita.
Olá
ResponderEliminarTenho algumas questões: se o mercado é livre a todos os agentes, porque é que o Estado, através de empresas públicas e participações do Estado em empresas privadas, deve se abster de participar na economia?
Até que ponto é incompatível a função reguladora do Estado com a participação deste na economia?
Obrigado e parabéns pelo vosso blogue.
Olá, Rui!
ResponderEliminarVou tentar responder, de forma curta, às tuas questões.
O Estado não regula de forma isenta o mercado se for um dos participantes no dito mercado através de empresas públicas. Além de que estas empresas distorcem a concorrência porque têm acesso a financiamento público e a garantias estatais que empresas privadas pura e simplesmente não têm - e por isso não estão sujeitas a grandes pressões competitivas e tendem a perder eficiência.
Além disso, as empresas públicas tendem a ser usadas para colocar «boys» e «girls», transformando-se em parte da rede tentacular de clientelismo que também nos causa vários problemas. Finalmente, tendem também para ser usadas como forma de desorçamentar dívida pública, o que também é bastante problemático.
Obrigado pela questão Rui. É sempre interessante discuti-la, dado que não é totalmente linear.
ResponderEliminarPegando nos 4 argumentos correctos do João:
1. Estado não regula de forma isenta mercado com empresa pública
2. Financiamento e garantias introduzem distorções à concorrência e incerteza ao investidor privado
3. Quadros escolhidos com base no amiguismo e não na competência
4. Desorçamentação de dívida
De facto estes elementos provocam tipicamente uma combinação explosivamente negativa sobre os resultados da existência de empresas públicas.
Mas assumamos que todos estes problemas poderiam ser resolvidos.
1. Regulador independente do governo e eficaz
2. Proibição de financiamento público e garantias a empresas públicas (como já ditam as regras da União Europeia na generalidade dos mercados)
3. Quadros escolhidos com base na competência (talvez seja parcialmente possível se as duas primeiras condições ocorrerem e o mercado for competitivo)
4. Proibição de desorçamentação de dívida pública (como também já acontece na generalidade dos sectores)
Ainda assim, não se encontram exemplos de sucesso de empresas públicas nestas circunstâncias. O facto de a empresa não ter accionistas, mas ser detida pelo Estado, faz com que a capacidade dos respectivos donos para zelar pelos seus interesses seja completamente diferente. Eu, como português, sou "accionista" de centenas de empresas públicas, mas não tenho a capacidade (nem o interesse próprio) de zelar pela boa gestão de nenhuma delas. Quem o faz? Os governantes orientam as suas prioridades por votos (entre outros), e as orientações dos eleitores estão extremamente longe de reflectir uma correcta avaliação da gestão das empresas públicas (por comparação a accionistas). As consequências disto em eficiência e dano sobre o bolso dos contribuintes são enormes.
Claro que se coloca a questão: mas as empresas deste tipo não devem ser movidas pelo lucro, mas pelo interesse público. E o privado é orientado pelo lucro. Certo. A chave está em regulamentar. Nos sectores em que existem monopólios naturais (e.g. água, transportes), é quase sempre possível alinhar o interesse público e o interesse privado através de um contrato que introduza os incentivos certos ao gestor privado da empresa. Por exemplo, como existem incentivos contratuais a isso as auto-estradas concessionadas estão em geral em boas condições, quando o interesse normal do concessionário seria não ter custos com manutenção. O mesmo tipo de incentivos pode ser introduzido no sector na água, em diversos campos da saúde, na educação, etc.
Claro que isso obriga a que quem formule os contratos o faça bem, o que não é garantido (o que move quem está responsável por realizar o contrato?) ou nem sempre fácil. E daí os maus exemplos de atribuição ao privado. Por exemplo, o caso da renegociação dos contratos com as concessionárias de auto-estrada, em que o risco comercial da exploração (receitas de portagens) foi passado para o Estado sem contrapartidas dos concessionários foi um atentado grave aos contribuintes. Mas um erro deste tipo é mais facilmente identificável e alvo de responsabilização por parte de quem o fez do que no caso da teia de vícios e ingerências que se geram numa empresa pública. Por outro lado, apesar de tudo não se perdeu valor no processo, houve foi um problema da sua distribuição entre população e privados.
Por outro lado, a experiência acumulada permite que não se cometam alguns erros do passado. Por exemplo, no sector ferroviário temos o bom caso da Fertagus de como é possível fazer um contrato bom para ambas as partes, e onde se aprendeu claramente com os erros do passado (o contrato foi redefinido em 2004).
Enfim, ponderadas as coisas de forma racional, parece que temos bastante a ganhar em retirar a gestão pública de vários dos sectores em que está presente.
Eu alinho em parte com esta teoria liberal ou diria neo-liberal, mas todas essas teorias caem por terra num dos princípios mais basilares: justiça e equidade!
ResponderEliminarQuando António Borges aufere, o equivalente a 38 pessoas que auferem o salário mínimo, quando os grandes gestores auferem quantias astronómicas e quando as assimetrias entre trabalhadores se tornam assutadoramente elevadas nas empresas privadas, o princípio da equidade e da justiça cai por terra!
Era impensável numa EDP pública ter alguém a auferir 50 mil euros por mês, seria um escândalo intolerável, mas já se aceita com naturalidade que Catroga o ganhe num privado! Com a liberalização, aceitam-se todo o tipo de desigualdades, e toleram-se todo o tipo de salários faraónicos! A pensão de Jardim Gonçalves é pornográfica, considerando que 80% dos pensionistas recebem menos de 500€/mês.
http://www.veraveritas.eu/2012/06/antonio-borges-e-moderacao-salarial.html
Há setores estratégicos para a economia onde o estado deve ter presença forte. Agora, precisamos de cidadãos conscientes para limpar dessas empresas os "boys" e as "girls" que por lá andam!
Tudo se resume numa palavra: respeito!
Repseito por aquilo que é de todos nós, que é do Estado!
O socialismo é um passo evolutivo na humanidade, pois assenta na partilha e na filantropia. Mas só consegue ser alcançado quando os que partilham têm respeito pela cousa pública e para isso só há um caminho: educação!
Abraços
Olá João, benvindo à participação neste blog :)
ResponderEliminarAqui vão alguns comentários de resposta.
Nota prévia: suposto que apliques o termo “neo-liberal” como sinónimo de algo como “capitalismo selvagem”, que não é, mas vou partir dessa hipótese. Ainda assim, nota que eu e a maioria das pessoas que aqui escrevem não se revêm em parte do que a teoria neo-liberal ditou, muito em particular no que toca à distribuição da riqueza. As pessoas daqui assumem-se liberais, e se procurares aí pela internet o sentido do termo na Europa Central/Norte ou mesmo EUA (esquece o que se diz em Portugal), a equidade (no sentido de igualdade de oportunidades) e a justiça são pilares basilares.
Dito isto parece-me que a ligação que fazes entre atribuição de responsabilidades de gestão de empresas ao setor privado e a equidade não é correta. Caso contrário, o corolário seria nacionalizar todas as empresas de modo a obter-se maior igualdade nos rendimentos. A igualdade nos rendimentos não se deve fazer através da atribuição da gestão de determinadas atividades ao público, deve fazer-se através da formulação dos impostos e do acesso a serviços essenciais para a liberdade/equidade, nomeadamente educação e a saúde.
Os liberais são em geral defensores da redistribuição da riqueza como garante da liberdade individual e da justiça, mas enquanto alguns elementos político-económicos não forem coordenados a nível global, existirão sempre limitações à capacidade dos Estados nacionais de promoverem tanto quanto seria desejável essa equidade.
http://www.cousasliberaes.com/2011/03/redistribuicao-da-riqueza.html
Concordo em abstrato em que “[h]á setores estratégicos para a economia onde o estado deve ter presença forte”, mas não acho que isso se aplique à gestão de empresas de transporte público e outros que ainda são geridos pelo público.
Concordo totalmente contigo relativamente à necessidade da educação e de os cidadãos serem melhores cidadãos.
http://www.cousasliberaes.com/2011/02/democracia-nao-e-uma-economia-de.html
http://www.cousasliberaes.com/2012/10/sim-nos-cidadaos-devemos-apresentar.html
Já relativamente ao socialismo, só poderia concordar com essa utopia num Mundo diferente deste; no Mundo em que vivemos, os indivíduos têm razões diferentes de ser, devem por isso ter livre iniciativa, e ninguém lhes pode impor o que quer que seja a não ser que isso interfira com a liberdade de outros.
Abraço