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domingo, 2 de setembro de 2012

A RTP e o Channel 4

aqui falei da possibilidade da RTP 2 adoptar como modelo de financiamento o modelo de financiamento da PBS americana, ou seja, funcionar essencialmente através de doações. 

Há outros modelos possíveis, no entanto, e lembrei-me outro dia do Channel 4, no Reino Unido. 

O Channel 4 é um canal público, independente do poder político, que tem como missão promover a inovação e a experimentação, financiado essencialmente através de patrocínios («sponsorships») e rendimentos comerciais (publicidade). 

O canal não visa o lucro, no entanto. Tem estatuto «not-for-profit» e tem de reinvestir o dinheiro que recebe no próprio canal.  

Naturalmente, há quem proponha privatizar o Channel 4, e não é pacífico que o Channel 4 seja uma entidade pública (curiosamente, o canal foi lançado quando o primeiro Governo de Margaret Thatcher estava no poder). De qualquer forma, pelo que tenho lido, o Channel 4 tem sido bem sucedido comercialmente, o que, provavelmente combinado com a sua forma de financiamento, tem dificultado a vida a quem a apoia a privatização.

Ao ir ao «site» do Channel 4 para escrever este breve apontamento, li ainda que o Channel 4 deve, por lei, apresentar um relatório em que justifica a sua programação à luz da missão de serviço público a que se encontra adstrito («Statement of Media Content Policy»). 

No «site» da RTP não encontrei referência um documento equivalente. Parece-me uma boa prática a adoptar, de qualquer forma, mantendo-se a lógica do serviço público. Primeiro, define-se claramente o que é o «serviço público». Depois, obriga-se o canal a justificar os seus conteúdos à luz dessa definição.

segunda-feira, 27 de agosto de 2012

António Borges e a RTP

António Borges devia ser Ministro das Privatizações e da Reforma do Estado, em vez de consultor. Coordenaria os processos de privatização em conjunto com os Ministros relevantes e auxiliaria o Ministro das Finanças a fazer uma reforma estrutural do Estado.

Se o Governo quer que alguém tenha poder relevante em relação a uma matéria tão importante como são as privatizações, então essa pessoa tem de ser sujeita a escrutínio público e, principalmente, a escrutínio parlamentar. Não só porque é a melhor forma de mitigar acusações de falta de transparência, como também porque tornaria tudo muito mais claro: quando António Borges falasse, falava um Ministro, falava em princípio em nome do Governo.

Como está, não se sabe bem a que título fala António Borges quando fala e qual a real autoridade das suas palavras. Isto é um problema para o país, um problema organizacional e de relações públicas para o Governo, e uma aberta para a Oposição se dedicar a falar de temas que bem poderiam ser acessórios e atirar achas para a fogueira das teorias da conspiração, desviando-se do debate substancial sobre qual o papel do Estado na área da comunicação social.

Aliás, o risível debate que houve sobre o relatório do grupo coordenado por João Duque sobre o tema do «serviço público de televisão», que deveria ter servido de base a uma nova lei através da qual o PSD cumprisse a sua promessa eleitoral de privatizar a RTP 1 e manter a RTP 2, subordinando-a a esse novo conceito de «serviço público de televisão» foi bastante elucidativo. Na prática, não houve debate. Pegou-se numas afirmações infelizes de João Duque, ignorou-se o conteúdo do relatório, e o Ministro Miguel Relvas enterrou-o e esqueceu-o.

Agora, temos um modelo de concessão da gestão da RTP 1 a privados (não vejo em que é o que o texto constitucional impede esta solução - parece-me que permite a concessão, deste que exista um serviço público). Passar-se-ia a pagar o valor arrecadado através da taxa audiovisual a uma entidade privada. E extinguir-se-ia a RTP2, em parte com o argumento de que ninguém a vê.

Ora, eu acho que se devia abolir a taxa audiovisual e privatizar os vários canais da RTP, incluindo os canais por cabo. A RTP 2 poderia funcionar como penso que funciona a PBS, através de um sistema de doações. E o Estado devia aproveitar as potencialidades do TDT para introduzir mais concorrência no canal aberto.

Neste momento, «serviço público de televisão» tornou-se sinónimo de «aquilo que dá na RTP». Quando o grupo de João Duque tentou criar um conceito mais concreto, foi sumariamente ignorado.

Foi-me dito, e eu concordo, que a cultura e o tamanho do país (mais a primeira do que a segunda) tornariam de difícil implementação o financiamento da RTP 2 através de um modelo de doações totalmente voluntárias, de gente que valoriza programação de qualidade e pretende, portanto, apoiar a existência de um canal aberto com esse tipo de programação.

Parece-me, no entanto, que as pessoas que se dizem fãs da RTP 2 e que a pretendem manter podiam juntar-se e fazer essa proposta. Tornar a RTP 2 uma verdadeira televisão da sociedade civil - na prática, uma espécie de ONG televisiva vocacionada para programas educativos e culturais, provavelmente complementadas com séries de ficção com altos valores de produção. E nada a impediria de ter um serviço informativo também de qualidade.

Diga-se, aliás, que eu não considero que o serviço informativo público seja automaticamente mais fidedigno que o serviço informativo privado. Não é por ser público que é fidedigno e não é por ser privado que é fidedigno, e eu não considero que ser dono de estações de televisão seja parte das funções do Estado. Não vejo porque é que o Estado tem de garantir este serviço quando o serviço já pode bem ser prestado por privados ou por entidades não-governamentais.

De qualquer forma, e tendo em atenção que o que diz a Constituição não vai mudar tão cedo, e que Roma não foi construída num dia, a minha solução de compromisso teria sido claramente a que foi proposta pelo PSD nas eleições. Parte das funções do Ministro Miguel Relvas devia ter sido implementá-la.

Em vez disso, o relatório do grupo de João Duque morreu, a gestão da RTP 1 vai ser concessionada, e a RTP 2 desaparece. Ou seja, não se definiu "serviço público de televisão" e acaba-se desnecessariamente com um canal, mantendo-se a taxa audiovisual para se financiar a gestão de uma RTP 1 que não se percebe bem que serviço público prestará.

E como é que o assunto tem sido debatido? Aos gritos. Claro.

quinta-feira, 26 de julho de 2012

7 breves notas

1. «Que se lixem as eleições, o que interessa é Portugal!» Palavras medidas a dedo para aparecerem por todo o lado. Que não me interessam para nada. O que me interessa, principalmente, são os resultados e os meios utilizados para lá chegar. Mais importante para mim do que dizer que não se governa com base em sondagens e a pensar em ser reeleito é eu ver reformas estruturais a serem feitas. Quero, por exemplo, ver como é que o Governo vai lidar com a decisão do Tribunal Constitucional - que medidas vai o Governo adoptar para substituir os cortes nos subsídios de Natal e de férias? Isso, mais do que discursos, é importante para mim - principalmente porque aquele «slogan» podia perfeitamente ser um «slogan» eleitoral.

2. Da mesma forma que dizer que a austeridade não pode destruir o Estado Social não significa nada. Ainda não estamos em época de debate do orçamento, mas eu insisto que os partidos da oposição, que votem contra ou se abstenham, deviam apresentar um Orçamento Sombra, com as suas alternativas e as suas perspectivas económicas e financeiras com base nessas alternativas. O debate não pode ser só feito na base de dizer mal do Orçamento que o Governo apresente. E a melhor forma disso acontecer é apresentando um Orçamento, mesmo em formato esquematizado, alternativo.

3. Os Governos têm um programa para cumprir e podem até ter maioria parlamentar que os sustente e garanta o cumprimento desse programa. Isso não significa que possam alegremente ignorar tudo o que os rodeia quando o aplicam. Mas também não significa que tenham de governar com base em sondagens e tentando sempre maximizar os seus níveis de popularidade com a totalidade da população. Ainda vejo muita gente que parece achar que o facto de haver eleições e de haver uma maioria parlamentar que sustente um Governo só legitima as políticas com que concordem. Quanto àquelas com que discordem, parece que apenas poderão ser aplicadas por maldade ou corrupção, e nunca poderão ser de qualquer forma legitimadas.

4. Miguel Relvas usou um expediente legal para conseguir equivalência a uma quantidade imensa de cadeiras e ter uma licenciatura. Com isso conseguiu colocar sob suspeita as licenciaturas da Lusófona, cujos titulares de cargos dirigentes caem como tordos. Mas bem mais importante, a meu ver, do que esta questão da licenciatura é a questão da pressão sobre jornalistas, e tudo o que a rodeou. Não que os jornalistas sejam todos uns santos ou que os jornais não possam ser criticados, designadamente por políticos. Mas ameaças é mais grave - e um problema que vai bem para além de Miguel Relvas, e que merecia que lhe dessem outra relevância. Só que esse assunto morreu com a demissão da jornalista e o relatório da ERC, enquanto o tema da licenciatura continua. Uma questão de prioridades que, confesso, me parecem trocadas.

5. Incentivar as pessoas a pedir factura para combater a evasão fiscal não me soa a «delação», como a Marcelo Rebelo de Sousa, nem me parece uma terrível injustiça. A forma como está a ser feito parece-me ineficaz, no entanto, e além disso parece-me que isto é uma forma de tentar tratar os sintomas e não as causas. A melhor forma de promover o cumprimento das obrigações fiscais é um sistema fiscal funcional, compreensível e estável (também ajudaria que o sistema fosse visto como justo e que houvesse uma percepção generalizada de que se paga impostos para receber alguma coisa em troca!). Gostava também de ver as taxas a baixar (de forma sustentável, assente também em cortes de despesa), mas não estou a ver isso a acontecer num futuro próximo.

6. O federalismo não se resume a «eurobonds». O federalismo traduz-se numa verdadeira união política. Reduzir o federalismo a «eurobonds» por razões tácticas é, parece-me, cometer um erro táctico. Porque temos de discutir a democracia na Europa, temos de discutir a democratização da União Europeia. Essa democratização levaria a um Orçamento europeu, financiado por impostos europeus e por dívida europeia. Não compreendo que gente que fale do défice democrático da Europa depois defenda «eurobonds» nos moldes actuais - questão que não seria resolvida simplesmente através da eleição directa do Presidente da Comissão. Os «eurobonds» devem assentar numa união política democrática, numa democracia europeia transnacional. Criá-los sem esta base torná-los-ia coxos e criaria problemas políticos importantes.

7. Parece que a privatização de um canal da RTP vai mesmo avançar. A RTP é defendida por quem defende o serviço público de televisão. Eu por vezes sinto que chegámos a um ponto, no entanto, em que a RTP é defendida com base nesse tal serviço público de televisão, mas depois tudo o que a RTP passa é, por definição, serviço público de televisão (mesmo o Preço Certo em Euros e outros concursos, ou telenovelas). Aliás, quando o famigerado grupo de trabalho presidido por João Duque quis restringir o conceito de serviço público de televisão, o seu relatório foi sumariamente ignorado (o que em muito foi ajudado por declarações menos felizes de João Duque). Portanto, na prática, a meu ver, a RTP ser pública neste momento acaba por ser auto-justificativo em algum do debate sobre este tema, uma espécie de pescadinha de rabo na boca. (O argumento de que não se pode privatizar a RTP porque vai afectar as receitas da SIC e da TVI é basicamente o mesmo que dizer que nós temos de subsidiar indirectamente a SIC e a TVI; ora, o que a SIC e a TVI têm de fazer, face a um novo competidor, é tornarem-se mais eficientes - e o Estado não deve protegê-los de novos concorrentes, que o Estado não serve para garantir receitas publicitárias à SIC e à TVI!)

domingo, 15 de julho de 2012

RTP, Tribunal Constitucional, Greves e Batman

1. Depois de tudo o que se tem passado em torno de Miguel Relvas, é bom que o Governo se mantenha firme relativamente à privatização de um canal da RTP. Por mim, privatizava-se a RTP toda, mas já seria um começo. O facto da SIC e da TVI não quererem mais concorrência no mercado da publicidade não é motivo para impedir a privatização: esses canais que se adaptem e tornem mais eficientes. O Estado não existe para garantir rendas, mesmo que indirectamente. Qualquer que seja o processo de privatização, espero um coro de críticas, sobre tudo e contra tudo, vindas de todos os lados. Mas convinha não ceder a pressões. E mais: quanto mais canais entrarem em sinal aberto, melhor.

2. O Tribunal Constitucional não teve em conta no seu acórdão sobre a inconstitucionalidade da «suspensão» dos subsídios de férias e Natal a situação de ajustamento que se está a verificar no sector privado. Todo o enquadramento do acórdão - e aliás, muito do próprio requerimento dos deputados - está assente na distinção entre sector público e sector privado; há afirmações mais genéricas, mas sempre no contexto da distinção público/privado. A decisão de que os efeitos apenas se produziriam no ano que vem parece-me claramente uma solução de compromisso (e bastante problemática) - li nas declarações de voto que havia juízes que apenas consideravam a suspensão inconstitucional a partir de 2013, por exemplo. Finalmente, a única declaração de voto que defende a inexistência de inconstitucionalidade merece atenção.

3. As greves nos sectores dos transportes, desde a CP à TAP, têm servido essencialmente para tornar a situação da CP ainda pior e para desvalorizar a TAP numa altura em que existe o desígnio de a privatizar, além de todos os custos que acarretam para utentes e para a economia em geral. Os  meros anúncios de greve na TAP têm o condão, por exemplo, de afectar de forma extremamente negativa a indústria do turismo portuguesa. O que me parece também é que estas greves não vão «conquistar» a opinião pública e podem bem ser usadas, por exemplo no caso da TAP, como argumento adicional para a sua privatização.

4. Henrique Raposo não me parece ter entendido o filme «The Dark Knight». O Joker faz referência a um pai abusivo, mas também conta outra história - e prepara-se para contar uma terceira história antes de Batman o parar. Essas histórias não explicam nada. E, principalmente, não explicariam o Mal. Porque o Joker não é o Mal. O Joker é o Caos. São conceitos diferentes. O filme «The Dark Knight» não é sobre o Bem e o Mal. É sobre a Ordem e o Caos. É sobre a importância das regras para manter a paz e a coesão sociais. É sobre as mentiras que se contam para manter a sociedade a funcionar. E o Batman não é o Bem. É a Ordem. De novo, são conceitos diferentes. O «The Dark Knight» não fala sobre como o Bem triunfa sobre o Mal. Fala sobre a forma como a Ordem é imposta. De novo, não é bem a mesma coisa. 

terça-feira, 30 de agosto de 2011

Privatizações

Primeiro, nacionaliza-se a empresa, em nome do «interesse nacional», ou então cria-se a empresa pública de raiz. Depois, a empresa passa a servir o «interesse nacional», o que parece sistematicamente incluir:
  • a desorçamentação de dívida da entidade que criou a empresa, seja o Estado ou uma autarquia local, para a empresa; 
  • a criação de diversos cargos de chefia, que serão ocupados por gente de confiança do Governo para executar as políticas de defesa do «interesse nacional» que a empresa prossegue;
  • a criação de regras de preços para a prestação dos serviços que significam que se torna quase impossível haver retorno financeiro da empresa, o que por sua vez significa que o Estado vai ter intervir financeiramente para manter a empresa à tona - com dinheiro muitas vezes emprestado.

Em tempo de vacas gordas, vai havendo dinheiro para manter as empresas à tona, e quem quer que aponte para os vários problemas das empresas públicas é acusado de desprezar o «interesse nacional» que elas servem. Diz-se que não é relevante que não tenham retorno porque prestam um «serviço público», e isso é que interessa.

O resultado é que ficamos a financiar uma rede alargada de empresas, com dinheiro emprestado, empresas essas que sistematicamente são usadas para os fins acima enunciados.

Chega um momento em que esta situação, insustentável financeiramente, estoira.

Em tempo de crise financeira, mantém-se, no entanto, o argumento do «interesse nacional», mas agora também por vezes conjugado com a ideia de que não convém privatizar numa altura de aperto. Isto porque não se conseguirá um preço muito bom e, em termos contabilísticos, poderá mesmo significar que se fica com uma situação financeira ainda pior, porque se vai vender «um activo». Será melhor, se se quiser privatizar de todo, esperar por um período de vacas gordas.

Este argumento esquece que, de facto, teria sido melhor privatizar em período de vacas gordas, mas que isso não aconteceu. Como isso não aconteceu, agora temos uma crise financeira entre mãos que implica uma reestruturação do Estado (em sentido lato). Temos de reestruturar o Estado para libertar que recursos que andam a ser usados para criar esquemas de desorçamentação de dívida (já para não falar do escândalo que são as empresas públicas de gestão de património imobiliário), de forma a que estes recursos possam ser utilizados para fins, espera-se, bem mais rentáveis e produtivos.

Até este momento de crise muito séria, tinha-se conseguido aguentar o forte das empresas públicas com a história do «interesse nacional». Mas agora chegámos a um ponto em que ou vai, ou racha. Vai mesmo haver privatizações. Infelizmente, não vai ser privatizado tudo o que devia ser. Mas a situação financeira do país tornou-se de tal forma grave que já não dá para adiar mais.

Sim, teria sido melhor termos feito reformas estruturais antes do Estado entrar em colapso financeiro. Mas não o fizemos. Adiar as reformas agora à espera de melhores dias, quando essas reformas são necessárias para que esses melhores dias surjam, é brincar com dinheiro dos contribuintes numa altura em que o tempo para a brincadeira acabou, e o tempo para ser sério, que devia ser sempre, se tornou incontornável.

segunda-feira, 4 de julho de 2011

Notas sobre o Programa de Governo (IV)

O problema com os cortes na despesa tem por base algo de muito simples: o número de organismos públicos conta-se aos milhares, e ninguém faz verdadeiramente ideia daquilo que existe ou não existe. Ora, o Governo, para extinguir alguma entidade, tem de dizer concretamente que a vai extinguir, dado que caso contrário essa entidade continuará a existir e, por inércia, provavelmente a ser paga pelos contribuintes.

Não sabendo o que existe, o Governo não consegue anunciar o que vai extinguir. Por isso, sistematicamente, as promessas de corte na despesa são vagas, contrariamente às promessas de aumentos de impostos. Sendo que as promessas de aumentos de impostos raramente existem nos partidos que chegam ao Governo, o que não impede que, mesmo sem ter havido promessa, sejam essas as medidas que se concretizem.

Há outra questão a ter em conta: quem está na melhor posição para saber que entidades é que existem e que entidades é que não existem? A Administração Pública. Mas é precisamente na Administração Pública que se estão a preparar cortes. Por muito que não se possa colocar os funcionários públicos todos «no mesmo saco», a verdade é que é muito pouco provável que alguém diga ao Governo que quer cortar no seu próprio Departamento. Ou para se cortar a si próprio, porque a sua função é obsoleta. Ou seja, mesmo que na Função Pública não se advogue que pura e simplesmente não haja cortes, há um incentivo muito forte para dizer que o melhor é haver cortes noutros Departamentos.

Poder-se-ia admitir que o Governo contrataria os serviços de uma consultora privada para avaliar o que é que existe, e até mesmo que cortes fazer. Mas a consultora privada vai ser cara, num momento em que não temos dinheiro, e a sua análise poderá ser enviesada ou dificultada por parte dos serviços, dado que estes poderão não ser muito eficientes a dar informação à referida consultora. Poderá também ser enviesada ou dificultada por parte do Governo, porque uma coisa é advogar cortes de fora, e outra é advogar cortes de dentro (para o seu Ministério). E quem fala de bloqueios às propostas de uma consultora privada, fala também de bloqueios a cortes propostos por uma comissão de peritos nomeada precisamente para esse efeito.

Um problema ainda não mencionado em contratar uma consultora privada é que a consultora privada poderá também ter interesses próprios que podem toldar a sua avaliação. A comissão de peritos, por sua vez, será necessariamente enviesada pelas posições dos próprios peritos. E, no final, o Governo terá de efectivamente proceder aos cortes recomendados, e se os cortes forem politicamente sensíveis, poderá escolher ignorar o relatório final da consultora ou da comissão de peritos. Os cortes não seriam feitos, mas o relatório teria de ser pago na mesma.

Admitindo que haja uma decisão política para fazer cortes em certos sectores, esses cortes não podem passar apenas pela extinção de organismos. Têm de passar também por despedimentos, e aí entra o programa de «rescisões voluntárias» do Governo. Ora, haverá resistência a esse programa por parte dos sindicatos da Função Pública, que têm ainda bastante poder. Ao mesmo tempo, é constitucionalmente impossível despedir funcionários públicos (ou, pelo menos, extremamente difícil), o que aliás deve ter condicionado o Governo a criar o tal programa de «rescisões voluntárias» (além das questões políticas, claro).

Esta impossibilidade de despedir tem levado o Estado a lidar com problemas de despesa em excesso com cortes de salário aplicados indiscriminadamente a toda a Função Pública, ao mesmo tempo que cria programas «agregados» de corte nas admissões à própria Função Pública («por cada 5 que saem, entra 1», por exemplo). Também estas medidas são criticadas por sindicatos, que se lhes opõem.

Ou seja, não só temos um Estado que não pode facilmente gerir de forma eficiente os seus recursos, como as medidas menos eficazes e eficientes que pode tomar geram também elas forte oposição, e têm aplicação difícil. No limite, por exemplo, todos os cortes nos salários têm de respeitar o «princípio de retrocesso social», e os sindicatos levam as suas lutas para os tribunais, através, especialmente, de procedimentos cautelares que tentam bloquear a implementação imediata das medidas. (O Governo tende a bloquear esses procedimentos cautelares invocando o interesse público; mas isso não implica que recursos sejam gastos com tudo isto.)

O Estado pode tanto extinguir como privatizar certa entidade (insere-se nesta contexto também a extinção das «golden shares», que mais não são do que completar certa privatização.).  No que toca às privatizações, sabemos que há várias entidades que se promete privatizar, desde a TAP até à RTP. Aqui entram outros problemas.

Um deles é a privatização de monopólios sem acautelar devidamente o mercado, transformando monopólios públicos em privados, e muitas vezes mantendo-os na rede de interesses criada à volta do Estado, mesmo sem a utilização de «golden share». Outro é a privatização sujeita a condições que levam a que potenciais compradores fiquem menos interessados em comprar (vejam-se algumas das condições impostas na privatização da TAP).

Ainda outro exemplo de problema, muito visível na privatização da RTP, é a falta de interesse de entidades que estejam nesse mercado a que haja concorrência efectiva no dito, preferindo acautelar as suas posições contra um possível novo competidor gerido de forma mais eficiente. E finalmente, o Governo pode simplesmente não levar a cabo privatizações que possam colocar em causa a sua reeleição, por serem pouco populares, apesar de as ter prometido.

Finalmente, cortar na despesa é difícil porque não afecta apenas os funcionários públicos que ficam sem emprego, mas também as suas famílias e amigos. Ora, as pessoas que percam o seu emprego público poderão não ficar muito predispostas a votar no partido (ou partidos) que estavam no Governo e que fizeram os cortes que as levaram a perder o seu emprego, e o mesmo se aplica às suas famílias e amigos.

Este tipo de consideração não levou a uma nova vitória do PS nas últimas eleições porque, julgo eu, a população portuguesa já interiorizou que estamos em crise, e puniu o PS por isso (em meu entender, bem). Especulo até que a população portuguesa, pelo menos a que foi votar, já tenha interiorizado que vão mesmo ser necessários cortes na despesa, o que poderá ajudar o Governo no futuro.

O que me dá alguma esperança é esta última nota: a população portuguesa poderá, na sua generalidade, ter interiorizado a necessidade de se proceder a cortes, para restaurar a saúde das finanças públicas. De notar que falo aqui da população portuguesa em geral, e não de apoiantes convictos do BE e do PCP. Caso esta interiorização exista mesmo, e haja uma massa crítica real na população de apoio às medidas de contenção, isto poderá dar ao Governo o empurrão necessário a cortar na despesa, apesar de todas as dificuldades, porque apelos como este terão resposta pouco visível, o que ajudará a conferir ainda maior legitimidade política aos cortes (já legitimados democraticamente pelo voto).

Claro que esta massa crítica de apoio na população não é suficiente. Também é necessário que o Governo não se deixe engolir pelos interesses instalados, e leve mesmo a cabo o seu programa.

O que é mais uma barreira, esperemos que desta vez ultrapassável, para que haja cortes.