segunda-feira, 4 de julho de 2011

Notas sobre o Programa de Governo (IV)

O problema com os cortes na despesa tem por base algo de muito simples: o número de organismos públicos conta-se aos milhares, e ninguém faz verdadeiramente ideia daquilo que existe ou não existe. Ora, o Governo, para extinguir alguma entidade, tem de dizer concretamente que a vai extinguir, dado que caso contrário essa entidade continuará a existir e, por inércia, provavelmente a ser paga pelos contribuintes.

Não sabendo o que existe, o Governo não consegue anunciar o que vai extinguir. Por isso, sistematicamente, as promessas de corte na despesa são vagas, contrariamente às promessas de aumentos de impostos. Sendo que as promessas de aumentos de impostos raramente existem nos partidos que chegam ao Governo, o que não impede que, mesmo sem ter havido promessa, sejam essas as medidas que se concretizem.

Há outra questão a ter em conta: quem está na melhor posição para saber que entidades é que existem e que entidades é que não existem? A Administração Pública. Mas é precisamente na Administração Pública que se estão a preparar cortes. Por muito que não se possa colocar os funcionários públicos todos «no mesmo saco», a verdade é que é muito pouco provável que alguém diga ao Governo que quer cortar no seu próprio Departamento. Ou para se cortar a si próprio, porque a sua função é obsoleta. Ou seja, mesmo que na Função Pública não se advogue que pura e simplesmente não haja cortes, há um incentivo muito forte para dizer que o melhor é haver cortes noutros Departamentos.

Poder-se-ia admitir que o Governo contrataria os serviços de uma consultora privada para avaliar o que é que existe, e até mesmo que cortes fazer. Mas a consultora privada vai ser cara, num momento em que não temos dinheiro, e a sua análise poderá ser enviesada ou dificultada por parte dos serviços, dado que estes poderão não ser muito eficientes a dar informação à referida consultora. Poderá também ser enviesada ou dificultada por parte do Governo, porque uma coisa é advogar cortes de fora, e outra é advogar cortes de dentro (para o seu Ministério). E quem fala de bloqueios às propostas de uma consultora privada, fala também de bloqueios a cortes propostos por uma comissão de peritos nomeada precisamente para esse efeito.

Um problema ainda não mencionado em contratar uma consultora privada é que a consultora privada poderá também ter interesses próprios que podem toldar a sua avaliação. A comissão de peritos, por sua vez, será necessariamente enviesada pelas posições dos próprios peritos. E, no final, o Governo terá de efectivamente proceder aos cortes recomendados, e se os cortes forem politicamente sensíveis, poderá escolher ignorar o relatório final da consultora ou da comissão de peritos. Os cortes não seriam feitos, mas o relatório teria de ser pago na mesma.

Admitindo que haja uma decisão política para fazer cortes em certos sectores, esses cortes não podem passar apenas pela extinção de organismos. Têm de passar também por despedimentos, e aí entra o programa de «rescisões voluntárias» do Governo. Ora, haverá resistência a esse programa por parte dos sindicatos da Função Pública, que têm ainda bastante poder. Ao mesmo tempo, é constitucionalmente impossível despedir funcionários públicos (ou, pelo menos, extremamente difícil), o que aliás deve ter condicionado o Governo a criar o tal programa de «rescisões voluntárias» (além das questões políticas, claro).

Esta impossibilidade de despedir tem levado o Estado a lidar com problemas de despesa em excesso com cortes de salário aplicados indiscriminadamente a toda a Função Pública, ao mesmo tempo que cria programas «agregados» de corte nas admissões à própria Função Pública («por cada 5 que saem, entra 1», por exemplo). Também estas medidas são criticadas por sindicatos, que se lhes opõem.

Ou seja, não só temos um Estado que não pode facilmente gerir de forma eficiente os seus recursos, como as medidas menos eficazes e eficientes que pode tomar geram também elas forte oposição, e têm aplicação difícil. No limite, por exemplo, todos os cortes nos salários têm de respeitar o «princípio de retrocesso social», e os sindicatos levam as suas lutas para os tribunais, através, especialmente, de procedimentos cautelares que tentam bloquear a implementação imediata das medidas. (O Governo tende a bloquear esses procedimentos cautelares invocando o interesse público; mas isso não implica que recursos sejam gastos com tudo isto.)

O Estado pode tanto extinguir como privatizar certa entidade (insere-se nesta contexto também a extinção das «golden shares», que mais não são do que completar certa privatização.).  No que toca às privatizações, sabemos que há várias entidades que se promete privatizar, desde a TAP até à RTP. Aqui entram outros problemas.

Um deles é a privatização de monopólios sem acautelar devidamente o mercado, transformando monopólios públicos em privados, e muitas vezes mantendo-os na rede de interesses criada à volta do Estado, mesmo sem a utilização de «golden share». Outro é a privatização sujeita a condições que levam a que potenciais compradores fiquem menos interessados em comprar (vejam-se algumas das condições impostas na privatização da TAP).

Ainda outro exemplo de problema, muito visível na privatização da RTP, é a falta de interesse de entidades que estejam nesse mercado a que haja concorrência efectiva no dito, preferindo acautelar as suas posições contra um possível novo competidor gerido de forma mais eficiente. E finalmente, o Governo pode simplesmente não levar a cabo privatizações que possam colocar em causa a sua reeleição, por serem pouco populares, apesar de as ter prometido.

Finalmente, cortar na despesa é difícil porque não afecta apenas os funcionários públicos que ficam sem emprego, mas também as suas famílias e amigos. Ora, as pessoas que percam o seu emprego público poderão não ficar muito predispostas a votar no partido (ou partidos) que estavam no Governo e que fizeram os cortes que as levaram a perder o seu emprego, e o mesmo se aplica às suas famílias e amigos.

Este tipo de consideração não levou a uma nova vitória do PS nas últimas eleições porque, julgo eu, a população portuguesa já interiorizou que estamos em crise, e puniu o PS por isso (em meu entender, bem). Especulo até que a população portuguesa, pelo menos a que foi votar, já tenha interiorizado que vão mesmo ser necessários cortes na despesa, o que poderá ajudar o Governo no futuro.

O que me dá alguma esperança é esta última nota: a população portuguesa poderá, na sua generalidade, ter interiorizado a necessidade de se proceder a cortes, para restaurar a saúde das finanças públicas. De notar que falo aqui da população portuguesa em geral, e não de apoiantes convictos do BE e do PCP. Caso esta interiorização exista mesmo, e haja uma massa crítica real na população de apoio às medidas de contenção, isto poderá dar ao Governo o empurrão necessário a cortar na despesa, apesar de todas as dificuldades, porque apelos como este terão resposta pouco visível, o que ajudará a conferir ainda maior legitimidade política aos cortes (já legitimados democraticamente pelo voto).

Claro que esta massa crítica de apoio na população não é suficiente. Também é necessário que o Governo não se deixe engolir pelos interesses instalados, e leve mesmo a cabo o seu programa.

O que é mais uma barreira, esperemos que desta vez ultrapassável, para que haja cortes.

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