Mudar nunca é pertinente. Quando há vacas gordas, tudo está bem e ninguém está para isso. Quando há vacas magras, toda a gente quer é segurança, e as mudanças aparecem como muito arriscadas e diz-se que não é numa altura de crise que se terá um debate com a qualidade extensão necessária. No que toca à Constituição, este tipo de argumentos têm sido invocados para a deixar como está, para além daqueles que defendem a Constituição pelos méritos que consideram que ela tem.
Aqueles que não querem mudar por acharem que o que está, está bem, compreendo bem melhor que aqueles que dizem que até mudavam, mas não agora. É que a Constituição e a sua interpretação têm impacto relevante no nosso dia-a-dia, por balizarem leis e até mesmo debates públicos. O facto de termos uma Constituição que tudo regulamenta, de forma bastante específica em alguns casos, tem impacto nos termos do debate público, por causa das regras para que esta seja alterada, dada necessidade de haver uma maioria qualificada.
Mudar a Constituição necessita de uma maioria alargada, para tentar garantir que o texto das normas fundamentais seja o resultado de um compromisso mais alargado que as leis ordinárias. Em princípio, apenas pode ser feito em determinados períodos, de forma a conferir algumas estabilidade ao texto constitucional. Tudo isto se percebe e faz sentido. É importante que as regras fundamentais sejam objecto de um consenso mais alargado e que sejam estáveis. Acontece que, neste momento, estamos a ver os limites da nossa Constituição e do modelo, muito específico, de Estado (Social) que ela prevê.
Contrariamente ao que alguns gostam de dizer, nenhum dos maiores partidos defende o fim do Estado Social. Não vi nenhum dos principais partidos defender o Estado Mínimo. O que está em causa e em discussão, o que sempre tem estado em causa e discussão, é qual o modelo de Estado Social que queremos, e qual a capacidade da Assembleia da República de tomar decisões por maioria simples sobre certos temas agora constitucionalmente previstos. Isto inclui, por exemplo, saber se faz sentido regular constitucionalmente, de forma tão pormenorizada, o sistema eleitoral, ou até o sistema fiscal. Ou saber se queremos incluir uma referência expressa a um princípio de sustentabilidade financeira do Estado e/ou a um princípio de solidariedade intergeracional no texto constitucional, por exemplo.
Claro que os exemplos não acabam ali. Outros temas, como o da forma como a Constituição regula o mercado de trabalho, ou como a Constituição regula o sistema fiscal, ou até como a Constituição regula os poderes das autarquias locais e prevê regiões administrativas para o Continente, tudo isto também pode, e deve, ser debatido. Sem histerias, sem falsos moralismos, sem manifestações de superioridade intelectual. Simplesmente, deve ser debatido, com trocas de argumentos sobre porque é que a solução deve ser uma ou deve ser outra, argumentos sustentados em mais do que retórica.
Todo este debate vai ser ideológico, como não podia deixar de ser (ver aqui e aqui). As ideologias estruturam como defendemos que a comunidade deve estar organizada, pelo que qualquer debate constitucional vai ser um debate ideológico. Desse debate virá um compromisso entre as várias visões participantes do debate e um novo texto constitucional (tendo em conta que temos uma constituição escrita), que naturalmente não porá em causa vivermos num Estado de Direito e numa democracia parlamentar, mas poderá alterar a forma constitucional do nosso Estado Social. Isto porque nem de perto nem de longe em Portugal as pessoas que querem acabar com o Estado Social têm a força e a maioria necessárias para o fazer - são, aliás, pelo contrário, uma minoria.
A histeria retórica que envolve este debate serve apenas para mascarar as parecenças entre os vários partidos do arco do poder. As opiniões de uns e outros são descaracterizadas, tudo se extrema, e temos teatro mediático para dar e vender. O pior é que este teatro mediático tem repercussões, nefastas. A constante preocupação com dizer às pessoas o que se pensa que elas querem ouvir para receber votos, ocultando ou não dando ênfase suficiente ao que não convém, é um enorme problema. Apresentar falsas certezas em tempos de crise, optimismos que rapidamente são postas em causa, é outro problema, e ambos os problemas se alimentam entre si.
No meio de tudo isto, temos de ter um debate sobre a reforma do Estado, e esse debate não estará completo sem um debate sobre uma reforma constitucional. Afinal, as funções do Estado e como estas são e podem ser exercidas resultam, em primeira linha da Constituição. O debate tem de olhar para a Constituição de alto a baixo, para a regulação económica e política, de forma a fazermos escolhas sobre o que queremos manter, o que queremos eliminar e o que queremos alterar. E tem de ter uma participação alargada, apesar de o estarmos a fazer quase em contra-relógio, aproveitando também contributos que foram sendo dados para este debate em anos anteriores (ou seja, aproveitando trabalho já eventualmente feito, no caso de ainda aplicável nos dias de hoje).
Nós vivemos hoje num mundo diferente dos anos 70 e 80, anos que verdadeiramente moldaram a Constituição que temos hoje. Dada a forma como a Constituição foi escrita, de forma muito extensa, isso significa que ela tem de ser revista e trazida para a segunda década do séc. XXI e, com isso, provar que em democracia, mesmo em crise, conseguimos resolver os problemas complexos que nos afligem.
Concordo em traços gerais com o que afirmas, excepto com esta frase;
ResponderEliminar«Afinal, as funções do Estado e como estas são e podem ser exercidas resultam, em primeira linha da Constituição.»
Temo que muito em breve todos iremos percebe que o estado social, não resulta da Constituição mas da PRODUTIVIDADE ECONÓMICA de um país.
Carlos, essa frase significa apenas que é na Constituição que estão as regras jurídicas sobre o funcionamento do Estado e como é que juridicamente o Estado pode/deve actuar - o que é difícil de negar, porque uma constituição é um sistema de normas que regulamente politicamente uma determinada comunidade. A frase não põem em causa que a produtividade e restrições financeiras vão determinar se é ou não é possível fazer o que se encontra previsto.
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