segunda-feira, 5 de novembro de 2012

O estranho tango a quatro da reforma do Estado

António José Seguro enviou uma carta a Pedro Passos Coelho.

Do conteúdo da carta pode ignorar-se grande parte, que é a narrativa já conhecida do PS sobre o seu amor ao Estado Social vigente, por entre outras coisas pouco relevantes, e ir ao que mais interessa: o PS está disponível para sentar à mesa e dialogar.

Por outro lado, apesar de estar disponível para sentar à mesa e dialogar, António José Seguro, entretanto, também mandou o Governo e a «troika» procurarem 4 mil milhões de euros para cortar no Estado Social, lavando as mãos das medidas difíceis que, contrariamente àquele que António José Seguro «argumenta», também se tornaram necessárias por obra e graça do seu PS.

Portanto, António José Seguro está disposto para discutir a reforma do Estado, mas nunca quaisquer cortes no Estado Social. Esses ficam para o Governo e para a «troika». António José Seguro prefere clamar por crescimento económico, estimulado maioritariamente por medidas com que o próprio Governo já se comprometeu também (incluindo um banco de fomento público, de todas as coisas que estas pessoas podiam ter ido desencantar numa altura em que o Estado não tem dinheiro e vivemos numa economia aberta na UE - sendo que mesmo em abstracto, não é ideia que me agrade).

António José Seguro enviou uma carta a Pedro Passos Coelho. Depois, colocou-a no Facebook.

Enquanto António José Seguro fazia isto, temos notícia de que a maioria parlamentar se lembrou de vir pedir  conferências, no Parlamento, sobre a reforma do Estado.

Questão que me parece relevante: qual a razão do atraso? Demoraram, contando apenas desde as últimas eleições, cerca de ano e meio a lembrarem-se que precisavam de conferências sobre a reforma do Estado - que, aliás, acho bem que se realizem, só preferia que já estivéssemos bem mais avançados que isto.

Não só estas conferências junto do Parlamento deviam ter começado mais cedo, PSD e CDS-PP (e mesmo o PS) deviam ter organizados conferências próprias ainda antes das eleições. Cada partido devia ter ideias muito claras sobre o que pretendia para o Estado e apresentado essas ideias aos portugueses. Em particular, o PS, estando no Governo, tinha acesso a um manancial de informação que lhe permitia ter uma noção bastante melhor do que se passava no Estado, e portanto a capacidade de criar um programa bastante sustentado de reforma do Estado. Mas as próprias Oposições não cumpriram, como nunca cumprem, o papel de desenvolver as suas políticas de forma substanciada, para se afirmarem como verdadeiras alternativas de Governo.

Claro que o PS teve, durante o primeiro Governo Sócrates, um programa de reforma do Estado, que foi essencialmente ignorado. O Governo actual também apresentou um programa de cortes que na verdade não reformava Estado nenhum. E, com atraso imenso, o Governo, o PS e a maioria parlamentar fazem danças políticas mediáticas, envolvendo cartas e convites e virgens ofendidas a rasgarem vestes por tudo e mais alguma coisa. Pelo meio, ficamos com a certeza que não é só o PS que não tem um programa - a maioria parlamentar também não tem, e o Governo também não tem.

É claro que a incapacidade do Governo de explicar o que ia fazendo ia deixando claro que não tinha um programa de reforma do Estado. Não podia ser tudo explicado pela incapacidade comunicacional do Governo - a substância também tinha de faltar, para as coisas serem tão aflitivas. Também pela reacção da maioria parlamentar ao Orçamento se percebeu que PSD e CDS-PP falavam de cortes mas não tinham nada de específico pensado, falando apenas de forma genérica para marcar posição.

O estranho tango a quatro (Governo, PSD, CDS-PP e PS) da reforma do Estado resulta de, no meio de uma profunda crise económica, financeira e política, os três principais partidos no Parlamento, bem como o Governo, não terem um programa de reforma do Estado ao fim de cerca de ano e meio de funcionamento do Parlamento. De irmos agora começar um debate que já seria difícil em tempos de vacas gordas, e que agora se torna fantasticamente difícil com a pressão da dívida e os jogos políticos que caracterizam a nossa vida politico-partidária. De termos todo este atraso por causa da incapacidade que a nossa classe política tem para não se embrenhar em táctica política pura em vez de tentar criar uma estratégia para o país.

A ver se é possível engolir isto sem gritar: os principais partidos do país vão agora negociar uma reforma do Estado. Depois dos atrasos no pedido de ajuda a FMI e União Europeia. Depois dos anos de vacas pouco gordas que mesmo assim apenas resultaram em meias medidas, se lhes podemos chamar isso. Depois de haver um Governo com um mandato para fazer a reforma do Estado. Mesmo depois de tudo isto, foi preciso todo este tempo para que o debate fosse lançado - e, mesmo assim, temos toda uma classe política a jogar à política com a vida de toda a população do país (já para não falar da vida de toda a população da União Europeia), no meio de estridentes títulos sensacionalistas de jornais e com uma inacreditável ausência de debate que resulta em unanimismos em torno de posições que se vão contradizendo com o tempo.

Demoraram imenso tempo a lembrar-se que, já agora, convinha implementar as célebres reformas estruturais, de que todos falam, falam, falam, mas sobre as quais se faz pouco. Demoraram imenso tempo a lembrar-se que, já agora, convinha haver diálogo alargado. E mesmo depois de se lembrarem, temos direito a um estranho tango a quatro, em que é notório o calculismo político dos passos dados. Perde-se mais e mais tempo com joguinhos mediáticos para aparecer bem na fotografia. O debate é polarizado propositadamente. As posições são extremadas para atrair votos da mesma forma que um pavão usa as penas para atrair parceiras, enquanto a substância é deixada de lado. Os técnicos da «troika» são insultados, como se nós não os tivéssemos chamado cá, como se não fosse o dinheiro da «troika» que vai mantendo Portugal a respirar e que impede um colapso imediato e austeridade extrema garantida.

O estranho tango a quatro da reforma do Estado é um exemplo claro do estado a que isto chegou. E um sintoma de uma doença institucional que precisa de ser curada. E para isso precisamos, mesmo, de uma reforma do Estado.

Se o conseguirmos fazer, fortaleceremos a nossa democracia, e provaremos que em democracia se resolvem problemas complexos - basta haver sentido de responsabilidade. Por muito difícil que seja. Por muito que isso não entre na cabeça a certas pessoas.

1 comentário:

  1. Como dizia Vasco Pulido Valente, numa das suas crónicas do Público, daqui a nada as pessoas irão passar a clamar por um General.
    São estes irresponsáveis que se recusam a chegar a consensos que colocam a dmocracia em perigo.
    Seguro está a escolher um caminho perigoso, se Passos se fôr embora a seguir às autárquicas como fez Guterres vai se bonito.
    Abraço

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