domingo, 4 de novembro de 2012

O circo

Torna-se confrangedor assistir à actuação das Oposições em Portugal. Salivando sempre por tomar o poder, nunca apresentam programas ou alternativas coerentes àquilo que o Governo está a fazer, com a desculpa descarada de que não é sua responsabilidade. Acontece que é da sua responsabilidade. E quem fica a perder por as nossas Oposições ignorarem as suas responsabilidades é o país inteiro.

O PS, sob António José Seguro, é um case study. Avança com ideias soltas sobre a UE que não lhe são originais. Aquelas, poucas, ideias que lhe são originais são puro populismo, desenhadas para colocar o PS do «lado certo» de um certo debate, e nunca são verdadeiramente discutidas. Agora, o PS coloca-se à margem do processo de reforma e reformulação do Estado, lavando as mãos com a maior das hipocrisias da resolução estrutural de uma crise que é, e muito, obra sua.

Falar em «apostar no crescimento» significa absolutamente nada. Dizer que vai haver «project bonds» é ignorar todas as debilidades estruturais existentes na nossa economia e, na prática, pelo que se lê e ouve, é transferir o nosso modelo de endividamento insustentável para o nível europeu. Já pouco se ouve falar de «eurobonds», que aliás eram defendidos de forma hipócrita por aqueles que tanto atacam o défice democrático da UE como o querem piorar criando «eurobonds» sem uma verdadeira união política e consequente legitimação democrática.

Vivemos num circo. Mediático, político e económico. Os artistas são uma classe política habituada a fazer acrobacias e sem capacidade para sair dos seus truques de magia para conseguir votos. O BE e o PCP dedicam-se a promover sistemas económicos que falharam no séc. XX. O PS dedica-se a provar que não tem ideias, não tenta liderar a agenda política, e a jogos políticos rasteiros. O Governo é incapaz de explicar aquilo que faz, mesmo quando faz alguma coisa interessante e potencialmente popular, e deixa-se emaranhar em questões de política pura que em nada ajudam o país a sair da crise.

A comunicação social desencadeia ondas de histeria por tudo e por nada. Subitamente, depois de quase só se ouvir gente a bramir por aumentos de impostos sobre o capital, agora ouve-se falar dos efeitos negativos que essa medida terá sobre a poupança. Subitamente, os portugueses demonstraram que conseguem poupar, e como é precisamente nesse momento que o Governo decidiu, de novo, aumentar os impostos sobre o capital, já se ouve dizer o quão negativa é esta medida.

O circo não pára por aqui. O acórdão do Tribunal Constitucional foi levado em ombros, e o então Presidente do Tribunal Constitucional deu uma entrevista em que uma das medidas de que falou foi, precisamente, o aumento de impostos sobre o capital. Não vi muita gente cair em cima do referido senhor por não saber que os juízes, num regime como o nosso, falam através de decisões judiciais, não através de entrevistas em jornais em que intervêm directamente na luta política. Não vejo também muita gente criticar a Associação Sindical dos Juízes por intervir na luta política diária pronunciando-se sobre os salários dos juízes ou sobre o Orçamento do Estado em geral.

Não vejo também muita gente criticar membros das Forças Armadas que, em vez de procurarem manter e preservar a integridade e o regular funcionamento das instituições, vêm a terreiro mandar achas para a fogueira. Não vejo suficiente gente a criticar severamente conjuntos de gente que se sente no direito de partir carros, cercar o Parlamento de forma agressiva ou agredir polícias. Vejo muitas vezes o oposto - desculpabilizações e tentativas de legitimação da sua actuação, com base na victimização e na teoria do coitadinho.

Vivemos numa democracia e num Estado de Direito, mas isso não é suficiente para quem não quer saber da democracia ou do Estado de Direito. As regras e o regular funcionamento das instituições apenas interessam e apenas são legítimos se estiverem a implementar políticas com que se concorde, e podem ser colocadas e causa sem problema quando as políticas que se aplicam não são da concordância de quem se considera dono do regime (em nome do povo, naturalmente, mas esse é considerado demasiado ignorante para tomar decisões avisadas - basta ver a reacção às pessoas, comparadas a «zombies», terem aderido à promoção do Pingo Doce no dia 1 de Maio). As organizações internacionais são atacadas por entidades que se auto-proclamam de «esquerda» com argumentação xenófoba e nacionalista, contra «estrangeiros», quando Portugal é membro dessas mesmas organizações internacionais e pediu a sua intervenção.

No meio de todo o circo, o PS tenta passar por entre os pingos da chuva. O partido sobe nas sondagens, apesar de (ou, provavelmente, por) não ter um programa político. O Governo é incapaz de demonstrar que tem um programa. Aliás, ao anunciar agora, um ano e meio depois de chegar ao poder, que vai começar um debate sobre a reforma do Estado, provou que não tem um programa. Estamos portanto numa situação de crise em que o Governo está, à pressão, a tentar reformar o Estado, e o principal partido da Oposição, sem programa ou ideias, e de forma intelectualmente desonesta, não se junta a esse grande debate. Procura apenas capitalizar nas reformas impopulares que o Governo tentará implementar para ganhar as próximas eleições.

O circo significa que vemos muita gente passar pelas televisões e pela rádio bramindo contra a crise, contra os mercados, contra a Chanceler da Alemanha, contra os EUA, contra as agências de notação financeira, contra aumentos de impostos e contra cortes na despesa, mas sem dizer rigorosamente nada. Só falta música circense quando se vêem deputados levantar-se no Parlamento e ignorar olimpicamente o que o PS fez para nos trazer até aqui. Ou quando se vêem deputados do PSD e do CDS-PP falar sobre cortes na despesa quando, também eles, não fizeram nada neste sentido desde as eleições - não é apenas o Governo que está atrasado, é também a própria maioria parlamentar.

 O circo é toda a «convicção» e toda a «indignação» e toda a «revolta» que por aí se vê ter demasiadas vezes a consistência de títulos de jornais, sensacionalistas e sem espessura, desenhados para chocar mais do que para informar. Em vez de um debate público sobre a crise, esta tem-nos sugado para uma gritaria histérica em que todas as corporações estrebucham para que não lhes tirem dinheiro, em que há quem procure com todas as suas forças obrigar-nos a engolir a mesma ilusão que temos engolido ao longo de décadas. Os ataques a todas as reformas sucedem-se. Por alguma forma que ninguém entende e poucos mediaticamente questionam, resolveríamos a crise mantendo o «status quo».

Isso não faz sentido. A crise forçou-nos a ter um debate que já devíamos ter tido há muitos anos. De pouco serve que não queiramos ter o debate, agora ou alguma vez no futuro. Confrontados com a bancarrota, o debate tem de ser tido, e tem de ter uma participação alargada e o mais informada possível. O principal partido da Oposição faria uma demonstração de responsabilidade inatacável entrando nesse debate de forma construtiva e lógica. Em vez disso, temos farsas sobre a destruição do Estado Social, esse que está a ser destruído precisamente por causa do nível de endividamento a que chegámos, e que tem gerado défices constantes (e consequente dívida) desde sempre.

O PS pode escolher ser o partido de Mário Soares. Mário Soares foi Primeiro Ministro e tomou medidas duríssimas nessa posição, tendo sido atacado da mesma forma que ataca agora este Governo por tomar medidas de austeridade, demonstrando um nível de hipocrisia ímpar em alguém que também se vangloriava há pouco tempo de ter convencido o anterior Governo PS a chamar a «troika». Mário Soares nunca percebeu nada de Economia ou Finanças e sempre apostou na sua personalidade, e não propriamente na substância, para conseguir votos. É isto que o PS quer? Ser o partido hipócrita, que ataca o Governo por implementar medidas que o PS implementaria se fosse Governo, que nada parece entender de Economia e Finanças, e aposta em conversa fiada populista para conseguir votos, em vez de posições sustentadas e fundamentadas para a sustentabilidade do Estado Social que diz defender?

O Governo demorou demasiado tempo a lançar este debate. A maioria parlamentar também andou a dormir todo este tempo. Mas agora, este debate está a acontecer. E mais do que de um circo, os portugueses precisam de um principal partido da Oposição responsável. Precisam de um Secretário Geral do PS com vontade de entrar no debate mais sério e mais importante da democracia portuguesa desde o 25 de Abril de 1974 com propostas substantivas e fundamentadas, porque uma Oposição desse tipo forçará o Governo a ter propostas sustentadas e fundamentadas também.

Nós estamos em crise porque temos vivido num circo, em que a Oposição não cumpre as suas funções e os seus deveres institucionais e os Governos caem de podres, e geralmente não têm grandes ideias antes de entrarem em funções (porque, enquanto Oposição, não as preparam). Estamos a sofrer mais porque o anterior Governo entrou em funções com um programa irrealista (e mesmo surrealista, tendo em conta a crise) e demorou demasiado tempo a pedir ajuda externa e porque o actual demorou demasiado tempo a lançar um debate que já devia ter começado há anos. Estamos a sofrer mais nesta crise porque as instituições não funcionam como devem.

Em vez disso temos o circo. Com cada vez menos dinheiro para comprar pipocas e doces, apenas deixaremos de ser audiência forçada das acrobacias políticas e mediáticas se fizermos uma reforma política e económica ou se sairmos do país. A segunda hipótese não é menos nobre do que a primeira, e não é mais nobre ficar do que sair. Mas acontece que aqueles que saem geralmente são aqueles que nós quereríamos que ficassem para ajudar a mudança. Aqueles que ficam a gritar parecem muitas vezes ser aqueles que querem que tudo fique na mesma, na ilusão de que a crise é que é uma ilusão.

Restam aqueles que querem mudar alguma coisa, que ficam e que são empreendedores o suficiente para colocar em marcha o seus projectos de mudança de forma pacífica, que podem passar por formar novas empresas ou por lançar novos movimentos políticos. Esses são a esperança daqueles que querem sair do circo vigente e realmente mudar o país.

Quem diz o país, diz a União Europeia. Mas isso é um circo ainda maior. No entanto, com muitas das mesmas características.

EDITADO: Outra esperança são precisamente os que agora emigram, se voltarem com novas ideias e nova vontade fazer coisas.

2 comentários:

  1. Excelente artigo João. Concordo com tudo.

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  2. Gostei do artigo. Por acaso, tenho a agradecer-te por contextualizares a situação, assim percebo porque é que às vezes faço figura de palhaço.
    Tenho pena por perdermos os que emigram é um custo muito alto e a meu ver uma tristeza.
    Abraço

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