sábado, 27 de outubro de 2012

Mais uns parágrafos sobre debate público

Jornalistas que comentam comentadores que comentam coisas que não viram, não ouviram ou não leram (se tivermos sorte, alguém lhes contou o que se passou em segunda mão). Com base em informação pública e em especulações assentes em presunções de má fé ou outros preconceitos vários, temos direito a ouvir toda a espécie de inflamados comentários sobre os mais variados temas, dos mais complexos aos mais simples.

O conteúdo útil desse tipo de comentários não é muito elevado, e o pouco que existe tende a dizer mais sobre os preconceitos e presunções do/a comentador/a do que sobre aquilo que ele/a está a comentar. No caso de temas particularmente complexos, em que há muitas variáveis em jogo, como se estivéssemos a jogar xadrez num tabuleiro com muitas dimensões, tende a ser particularmente confrangedor.

Outra coisa confrangedora é a incapacidade de muita gente admitir que não sabe, ou a convicção (real ou fictícia) com que fala sobre temas que pura e simplesmente não domina ou não conhece. Infelizmente, a convicção, mesmo que assente no maior dos vazios, parece vender mais que a humildade. Claro que, ao fim de algum tempo, aquilo que era visto como convicção poderá ser visto como arrogância, mas isso será uma degradação que demora tempo a acontecer.

É também curioso notar como as pessoas usam peritos, ou pessoas que se apresentam como tal, como guias para as suas próprias opiniões sobre temas que desconhecem. Claro que é impossível a toda a gente estudar tudo a um nível de profundidade imenso. Mas é importante conhecer pelo menos o suficiente do assunto para seguir o que o suposto perito diz e entender a sua posição, antes de a defender como se de uma verdade absoluta se tratasse. 

Um problema é que a pessoa pode estar convencida que sabe o suficiente para avaliar quando, na verdade, não sabe. O resultado é a defesa tenaz de uma posição relativamente à qual não se tem informação suficiente para defender daquela forma, quase com base na fé. E quanto mais pessoas fizerem isto, maior é o efeito sistémico das opiniões de comentadores e «opinion makers» e maior o seu poder no contexto do debate público democrático. Sendo que, muitas vezes, não há debate entre «opinion makers» - há quase que uma «posição oficial» defendida por um comentador atrás do outro, e repetido como se numa câmara de eco nos encontrássemos. 

Junte-se a este poder o poder da comunicação em geral para balizar e enquadrar os debates, a forma como esta não assume (em Portugal) as suas cores, tentando criar uma ilusão de isenção e objectividade absolutas, e temos um problema. Um problema que neste momento, para o bem e para o mal, está a ser resolvido pela Internet, onde a oferta de informação é variada e pode mesmo ser imediata. Discernir entre informação de qualidade e a relevar e informação sem qualidade e a não relevar é uma competência fundamental, ligada ao espírito crítico, a desenvolver neste contexto.

O espírito crítico é importante para penetrar nas, e ver além das, narrativas mediáticas que vão sendo construída e para resistir à tentação se seguir uma opinião porque se ouve essa opinião muitas vezes. Importante também é saber reconhecer quando pura e simplesmente não se sabe o suficiente para se ter convicções profundas sobre um determinado assunto, reconhecer que não basta repetir o que dizem uns peritos sem verdadeiramente saber avaliar o que esses peritos (ou supostos peritos) dizem. 

É importante saber reconhecer que presunções de má fé com base em inferências a partir de notícias de jornal não são uma boa base para convicções sobre um determinado tema. É corrosivo para um debate público saudável partir sistematicamente do pressuposto que o outro lado está de má fé e que a única explicação racional para a sua actuação é essa má fé. É também arrogante, ao assumir que a única forma racional de fazer as coisas de boa fé é a da pessoa em causa, e é uma forma profundamente anti-democrática de pensar, porque facilmente se resvala daqui para o pensamento único e a legitimação de uma única política e um único conjunto de prioridades como «verdadeiramente democráticos». 

Daí a ilegalizar/inconstitucionalizar os outros, o passo não é pequeno. Basta ver a nossa Constituição, em particular a versão original de 1976.

4 comentários:

  1. «É também arrogante, ao assumir que a única forma racional de fazer as coisas de boa fé é a da pessoa em causa,»

    Se esta parte do texto me é dirigida, há aqui um erro.

    Eu não assumo a má fé do Governo porque eles tomaram a decisão A quando acredito que deviam tomar a decisão B.

    Eu assumo a má fé do Governo, entre muitas dezenas de razões, porque:

    a) Decidiu privatizar a EDP seguindo um processo contrário ao das boas práticas no que diz respeito à transparência, sujeição ao escrutínio público

    ( http://www.transparencia.pt/?p=944 )

    b) Por "coincidência" a EDP privatizada através deste método opaco optou por contratar a "a lista de agradecimentos de Passos Coelho" com os rendimentos que se conhecem.

    Ora uma inferência bayesiana permite olhar para este caso concreto como o indício fortíssimo que é. Mas seria bom que os indícios acabassem aqui..

    Por exemplo, as pessoas estavam muito preocupadas com a licenciatura de Miguel Relvas, mas pelo caminho esqueceram-se do que causou toda a polémica, as pressões que fez sobre jornalistas a propósito das relações obscuras com gente criminosa nos serviços de informações. Este mesmo Miguel Relvas não só não se demitiu nem foi demitido uma vez descobertas várias das falcatruas em que esteve envolvido, revelando a falta de pudor do Governo a este respeito, como foi ao ponto de pressionar aqueles que se iriam pronunciar sobre as pressões que ele teria efectuado.
    Hoje, graças a uma denúncia de Helena Roseta, temos uma boa noção do tipo de negociatas em que Miguel Relvas e Pedro Passos Coelho estavam envolvidos muito antes de serem governantes.

    E entre assumir a má fé de Helena Roseta e a má fé de Miguel Relvas e Pedro Passos Coelho, há inúmeras outras razões para assumir a má fé destes últimos.


    Não é de forma ligeira que se assume a má fé de alguém, mas o facto é que eu posso dar - literalmente - dezenas de razões.
    E seria um erro político gravíssimo não assumir a má fé de alguém independentemente da quantidade e força dos indícios nesse sentido. Seria um disparate tremendo.

    Outro erro seria assumi-lo apenas em resultado de uma condenação judicial nesse sentido.
    É preciso distinguir entre aquilo que é a "corrupção" e aquilo que é considerado "corrupção" num determinado quadro legal. São duas coisas diferentes. É possível ter um comportamento corrupto e legal (se o quadro legal não estiver bem desenhado) e é possível ter um comportamento corrupto ilegal e imune à condenação (se o processo for de tal ordem que a prova se torne impossível).

    Eu assumo a boa fé das pessoas como ponto de partida. E quando discuto com alguém, não importa qual a sua posição, nunca me lembro de ter concluído que a sua posição era uma que traía má fé.

    Mas quando actores políticos tomam certas decisões que os podem beneficiar, seria absurdo não colocar essa assunção em causa. Por absurdo, nem poderíamos desconfiar da boa fé de Silvio Berlusconni, que usou o seu poder para que a lei mudasse no sentido dos prazos de prescrição não suspenderem a contagem durante o período de imunidade, e assim acabou por não ser condenado por aqueles crimes (foi julgado recentemente por outros, e são 4 anos em primeira instância, vamos ver...).

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    1. Eu falei em geral, não de ti em particular. Não precisas de me explicar o que é que tu pensas, que eu já sei. Já li no ER e tu passaste várias respostas a repetir o mesmo. Se não achas que fazes isto, então não precisas de assumir que eu acho e responder longamente, repetindo de novo o que já disseste várias vezes.

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    2. Ok, ok.
      Não me lembrava de te ter explicado.
      Desculpa a repetição, nesse caso.

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